Por WILTON JOSÉ MARQUES
Comentário sobre o livro recém-lançado de Cilaine Alves Cunha
1.
Em parte da crítica literária atual, quando se discute o passado literário, transpira a falsa impressão de que já se disse tudo, o que faz com que obras, canônicas ou não, sejam empurradas para lugares menores ou, o que é pior, apenas deixadas de lado. Entretanto, tal postura excludente, condicionada por modismos teóricos, é logo posta abaixo quando o óbvio vem à tona, isto é, a certeza de que há sempre novas possibilidades de se revisitar o passado, dependendo somente do ajuste do olhar e da sensibilidade analítica.
Pois bem, é justamente em sentido revitalizador que Estranhezas do século romântico: Gonçalves Dias, Sousândrade, Gonçalves de Magalhães, de Cilaine Alves Cunha, entra na cena crítica, atualizando o debate. Neste livro, a autora – conhecedora, como poucos, desse mar imenso de eco incerto – oferece ao leitor, especializado ou não, a possibilidade de compreender o percurso dos aspectos teórico-estéticos que guiaram a chegada dos ventos românticos por aqui, e, mais importante, que geraram influxos definidores no processo de construção da literatura brasileira.
Em três capítulos, o livro discute temas caros ao Romantismo. Entretanto, destaque-se, que são precedidos por uma alentada introdução que reafirma o caráter plural das ideias românticas, o que, de saída, implica na impossibilidade de se pensar na existência de um único vetor que teria supostamente norteado o nosso desenvolvimento romântico. Assim, questionando, como pano de fundo, a tradicional divisão geracional dos autores, revisita as diferentes concepções historiográficas de Sílvio Romero e José Veríssimo, e ainda apresenta as concepções de literatura dos dois Gonçalves.
De imediato, fugindo da redutora leitura, entranhada na tradição crítica, que enxerga Gonçalves Dias apenas e tão somente pela lente indianista, o primeiro capítulo, o mais robusto, apresenta uma visada geral sobre a poética gonçalvina. Desde a incorporação de traços neoclássicos na fatura literária, articulados com elementos propriamente românticos, passando pela leitura de Meditação e sua critica à escravidão, e pela leitura, ancorada no conceito do sublime, dos poemas “Leito de folhas verdes” e “A tempestade”, este último, em olhar inovador, lido em perspectiva algo conciliadora como alegoria das revoltas que marcaram a primeira metade do século XIX.
2.
No segundo capítulo, apresenta uma fina leitura de O Guesa, de Sousândrade, procurando revalorizar este poema, pouco discutido pela crítica, seja a partir de afinidades literárias entre o autor e Gonçalves Dias, bem como através da ferina crítica à sociedade brasileira por meio de procedimentos como a “sátira irônica, com a ironia em eco, a paródia e o pastiche”. Passando pela discussão do conceito do gênio, do sublime, da relação com a tradição literária e da presença do medievismo, em também visada comparativa com o autor dos Primeiros cantos.
No terceiro capítulo, em leitura cerrada, trata do Ensaio sobre a história da literatura do Brasil, de Gonçalves de Magalhães, pensando-o como “um guia prescritivo de leis e normas capazes de especificar a brasilidade da literatura”. A métrica valorativa de Gonçalves de Magalhães indica sua adesão incondicional à ideologia de sentimento nacional e à noção de progresso, e, para isso, fundamenta seu pensamento no ecletismo, ao mesmo tempo que estabelece a premência da relação entre os autores e o Estado, isto é, explicita o desejo “de que o governo imperial patrocine a corporação, transformado ali em necessidade da nação”.
Em outras palavras, o livro, além de rediscutir os projetos estéticos dos autores, é uma contribuição inegável (e renovadora) para o entendimento da centralidade do movimento romântico na configuração da cultura literária brasileira. Em tempo, em par com este livro, a autora também publicou, em outra visada original, Fragmentos de humor: Álvares de Azevedo, Bernardo Guimarães e Manoel Antônio de Almeida, trazendo à baila, entre outras formas de humor, a ironia, não como elemento incidental, mas, ao contrário, como elemento estruturante das respectivas obras.
Enfim, partindo das necessárias estranhezas, a leitura conjunta dos livros é um duplo e significativo ganho para os interessados nas contradições românticas que nos formaram. Numa palavra, incontornáveis.
Wilton José Marques é professor titular de literatura brasileira da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
Publicado originalmente na Revista Pesquisa FAPESP, no. 357, nov.2025.
Referência

Cilaine Alves Cunha. Estranhezas do século romântico: Gonçalves Dias, Sousândrade e Gonçalves de Magalhães. São Paulo, Edusp, 2025, 286 págs. [https://amzn.to/47V30Xw]
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