A ideia com a paixão – Gonçalves Dias pela crítica contemporânea

Imagem: esboço de Henri de Toulouse Lautrec
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ANDRÉA SIRIHAL WERKEMA & WILTON JOSÉ MARQUES*

Apresentação da coletânea recém-lançada.

Em 2023, comemoramos os 200 anos de nascimento de nosso primeiro grande poeta romântico, Antônio Gonçalves Dias, maranhense da cidade de Caxias, nascido a 10 de agosto de 1823, filho de pai português e mãe de ascendência indígena e negra, ao que tudo indica – fazendo do poeta um brasileiro que sentiu na pele a sua origem e a ela respondeu da maneira que lhe foi possível. De maneira poética, diríamos, pois foi a sua poesia a responsável por fixar o indianismo romântico como uma alternativa brasileira, para bem ou para mal.

No entanto, a obra de Gonçalves Dias se faz mais ampla do que sua poesia indianista, de alto nível, sem dúvida, mas apenas uma das formas visitadas pelo poeta, dramaturgo, etnógrafo, jornalista, historiador… Uma apreciação mais abrangente de sua obra, portanto, é mais do que bem vinda, e, no livro que agora apresentamos, espera-se conseguir, ao menos em parte, dirimir tais dúvidas, e, ao mesmo tempo, avaliar o seu legado dentro da história da literatura brasileira.

No Brasil romântico, a missão dos primeiros autores, e mais especificamente dos que até então cresciam à sombra programática de Gonçalves de Magalhães, foi a de configurar os elementos temáticos necessários à definição da imagem e ao discurso formador da nacionalidade brasileira. Nos anos subsequentes ao da independência política, e algo escorada na retomada de um desejado nexo histórico, cuja função primordial era a de legitimar o novo status do país, a literatura romântica exerceu um papel fundamental no duplo processo de construção e disseminação da ideia de nação entre os brasileiros. Em outras palavras, o Romantismo acabou por inventar o Brasil.

Dentro de tal perspectiva, o surgimento literário de Antônio Gonçalves Dias, que se deu com a publicação dos Primeiros cantos (1846), foi um acontecimento decisivo para a afirmação de uma desejada literatura brasileira, sobretudo ao ser logo reconhecido como um poeta nacional que era essencialmente romântico. Além de causar uma primeira sensação de mal-estar em relação à hegemonia literária de Gonçalves de Magalhães, o livro de estreia do maranhense conferiu ao Romantismo brasileiro um aspecto inovador, sobretudo ao dotar a poesia local de uma originalidade tanto na expressão do sentimento romântico em si quanto na resolução do problema da nacionalidade literária.

Ou seja, assumindo, num espaço temporal relativamente curto, importância canônica, a poesia de Gonçalves Dias, depois complementada pelos Segundos cantos (1848), Últimos cantos (1851) e o inconcluso épico Os Timbiras (1857), ao mesmo tempo em que fundava uma nova tradição poética, influenciou a formação literária dos poetas subsequentes. Foi na sua obra que as novas gerações aprenderam o Romantismo. Antonio Candido, referindo-se, por exemplo, à importância dos Primeiros cantos, salienta o fato de “o que antes era tema – saudade, melancolia, natureza, índio – se torna experiência, nova e fascinante, graças à superioridade da inspiração e dos recursos formais”.

Em linhas gerais, a poesia de Gonçalves Dias – notadamente pela imediata ressonância pública dos “poemas americanos”, incluindo-se aí tanto a paradigmática “Canção do Exílio”, cujos versos seriam incorporados ao Hino Nacional, quanto os poemas propriamente de temática indígena – foi fundamental para o delineamento de um nacionalismo propriamente literário. Ressaltamos ainda que, como membro ativo do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, o poeta também realizou várias pesquisas sobre o universo indígena: Vocabulário da língua geral usada hoje em dia no Alto-Amazonas (1851); Amazonas: memória (1855), Dicionário da língua Tupi, chamada língua geral dos indígenas do Brasil (1858) e Brasil e Oceania (1867).

No entanto, convém não perdermos de vista que a sua produção poética não se restringiu apenas e tão somente à vertente indianista, que, aliás, é numericamente pequena, pois, na maior parte de sua obra, o poeta maranhense dialogou com outros temas inerentes à estética romântica, como o amor, a saudade, a relação com a natureza, a religiosidade etc. Além da poesia, e tendo transitado pelo teatro com seus dramas românticos (Patkull, Beatriz Cenci, Leonor de Mendonça e Boabdil), Gonçalves Dias também conseguiu encontrar algumas brechas que lhe permitiram expressar, no caso de Meditação, as inerentes contradições que, desde sempre, permearam o cerne das relações de poder na sociedade oitocentista brasileira, sobretudo ao tematizar o espinhoso problema da escravidão.

A despeito da evidente influência sobre os contemporâneos, a poesia de Gonçalves Dias – talvez o nosso primeiro poets’ poet – estabeleceu, desde então, um constante e profícuo diálogo que, ultrapassando, e muito, os limites do Romantismo, chegou, inclusive, até aos dias de hoje, o que obviamente atesta sua perenidade. A qualidade que imprimiu a tudo o que deixou escrito, a capacidade de participar, literariamente, das grandes questões postas aos intelectuais do século XIX a partir de um país recém independente, não hegemônico, a naturalidade de seu Romantismo, tudo isso faz de Gonçalves Dias um autor inevitável para que se discuta a literatura brasileira como se conformou e como hoje ainda se conforma.

E talvez o melhor testemunho (e ainda atual) sobre a importância de Gonçalves Dias para a literatura brasileira seja o de Machado de Assis, que, ao discursar na inauguração do busto do poeta no Passeio Público do Rio de Janeiro, em 2 de junho de 1901, referindo-se à poesia gonçalvina e mais notadamente à “Canção de Exílio”, chancelou que “a canção está em todos nós, como os outros cantos que ele veio espalhando pela vida e pelo mundo, […] tudo o que os velhos ouviram na mocidade, depois os mais jovens, e daqui em diante ouvirão outros e outros, enquanto a língua que falamos for a língua de nossos destinos”.

Nesse sentido, e levando em conta o juízo machadiano, o principal intuito do presente livro é o de, na medida do possível, apresentar as múltiplas facetas do poeta maranhense.

Em seu artigo, Ana Karla Canarinos faz uma leitura de Meditação, notadamente pelos efeitos da escravidão na formação brasileira, tentando pensar tal obra como algo precursora da tradição do ensaísmo interpretativo da história do Brasil. Já Andréa Camila de Faria Fernandes, através da nota autobiográfica que Gonçalves Dias enviou para Ferdinand Denis, problematiza os esforços do poeta para a construção identitária de seu próprio nome como poeta nacional. Andréa Sirihal Werkema, a partir de dois motivos românticos, isto é, a saudade e a representação da subjetividade sentimental, apresenta a leitura de dois poemas emblemáticos: a “Canção do exílio” e “I-Juca-Pirama”.

Giovanna Gobbi Alves Araújo faz uma breve e acura- da leitura do épico inacabado Os Timbiras, enfatizando, entre outros aspectos, além obviamente da sobrevalorização do indígena, uma crítica severa à exploração colonial portuguesa. Gisele Gemmi Chiari, tendo como pano de fundo os caminhos do teatro brasileiro no século XIX, centra-se na discussão da obra teatral de Gonçalves Dias, cujos quatro dramas são permeados por forte matiz histórica. José Américo Miranda apresenta uma fina leitura do poema que Machado de Assis fez em homena- gem ao poeta maranhense e que foi publicado em Americanas.

Leonardo Davino de Oliveira, atestando o caráter emblemático da “Canção do exílio” para além do universo literário, discute as ressonâncias do mais famoso poema gonçalvino no cancioneiro popular brasileiro. Através do estudo de epígrafes usadas nos Primeiros cantos, Marcos Flamínio Peres resgata e problematiza a relação literária entre Gonçalves Dias e o poeta romântico francês Édouard Turquety. Natália Gonçalves de Souza Santos, também insistindo nas ressonâncias da “Canção do exílio”, apresenta duas modulações do poema gonçalvino, uma do então estudante de direito Andrade e Silva, mas conhecido como José Bonifácio, o moço, publicado em 1853, e outra do poeta piauiense J. F. da Costa, publicado em 1879.

Pedro Marques, a partir da leitura de Primeiros cantos, problematiza os sentidos e funções do conceito de “canto”, ou melhor, o “encantamento sonoro” que permeia a poética gonçalvina, um dos traços que, para Olavo Bilac, teria inscrito o poeta maranhense na posteridade. Renata Ribeiro Lima, através sobretudo do estudo de cartas trocadas com o amigo Teófilo Leal, discute as estratégias de Gonçalves Dias para, no limite, também “se inventar” como um poeta exilado. Por fim, Wilton José Marques historiciza o processo de inserção do poeta maranhense no ambiente intelectual, no emprego público e, sobretudo, na imprensa do Rio de Janeiro, entre 1846 e 1851, como estratégia de sobrevivência ancorada em alguns providenciais favores.

Andréa Sirihal Werkema é professora de literatura brasileira na UERJ. Autora, entre outros livros, de As duas pontas da literatura: crítica e criação em Machado de Assis (Relicário).

Wilton José Marques é professor de teoria literária e literatura brasileira na UFSCar. Autor, entre outros livros, de Gonçalves Dias: o poeta na contramão (EdUFSCar).

Referência


Andréa Sirihal Werkema & Wilton José Marques (orgs). A ideia com a paixão: Gonçalves Dias pela crítica contemporânea. São Paulo, Alameda, 2023, 382 págs. [https://amzn.to/3QoC0px]


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