Por FABIO DE OLIVEIRA MALDONADO*
Apresentação à edição brasileira do livro recém-lançado de Jaime Osorio
Jaime Osorio, sociólogo chileno radicado há muito no México, vem se consolidando como um dos sociólogos marxistas mais importantes da América Latina. Com uma vasta e importante obra publicada, o autor ainda é pouco conhecido do público brasileiro, mesmo entre aquele seleto e especializado grupo acadêmico que se dedica a compreender os problemas do continente. Nada mais normal, diríamos.
Se é verdade que as ciências sociais podem servir de mecanismo privilegiado para encobrir e reproduzir os interesses concretos das classes dominantes, não é menos correto dizer que, operadas pelo pensamento crítico, acabam se constituindo geometricamente na antítese desses interesses, isto é, tornam-se um elemento essencial para identificar a raiz dos problemas econômicos, políticos e sociais, contribuindo para que se encontrem as vias de sua superação. Na periferia do sistema, em particular na América Latina, a necessidade de se constituir um pensamento crítico vigoroso emerge de modo ainda mais urgente. É nesse sentido mais profundo que Simón Rodríguez decretou: “ou inventamos ou erramos”.
Jaime Osorio é herdeiro direto dessa tradição crítica do pensamento latino-americano, historicamente marginalizada pelos círculos intelectuais estabelecidos – as tantas “Ruas do Ouvidor” que sempre existiram pela América Latina. Mais diretamente, é um dos intelectuais que se vinculam à segunda geração da Teoria marxista da dependência.
Assim como grande parte da geração de intelectuais e militantes revolucionários de sua época, teve que sair do Chile para ir para o exílio após o golpe de Estado de 11 de setembro de 1973 e a longa noite contrarrevolucionária que se abateu sobre o país andino. Foi no exílio no México – país que abrigava estudantes, intelectuais e militantes vindos de diversos países latino-americanos – que Jaime Osorio ganhou notoriedade como intelectual vinculado à Teoria marxista da dependência, se tornando um dos principais discípulos e parceiros intelectuais de Ruy Mauro Marini.
Entre o final da década de 1960 e a primeira metade da década de 1970, a teoria da dependência constituiu-se um paradigma no estudo do capitalismo latino-americano, superando qualitativamente a abordagem elaborada pelos teóricos desenvolvimentistas – identificados principalmente com a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) – e a sociologia da modernização.
Por seu turno, diferenciando-se da vertente eclética assentada sobre a matriz weberiana (representada, em especial, na obra de Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto), a teoria marxista da dependência introduzia a perspectiva da dependência como um complemento (e mesmo aprimoramento) à teoria do imperialismo, caracterizando-se por uma reflexão totalizante do sistema capitalista mundial. De acordo com essa corrente teórica, refletir sobre a dependência implica, também, entender as consequências da ação do imperialismo nos países periféricos ou, de forma mais ampla, as consequências da expansão do sistema capitalista em direção a esses países.
Trata-se, então, do exercício de se passar do singular ao geral a partir das particularidades, num processo de construção de relações hierarquizadas que se especificam e determinam, de sorte que a síntese resultante (a totalidade) apareça não mais como uma junção de eventos difusos e sem coerência, mas como um conjunto de relações que se apresentam organizadas no pensamento.
Metodologicamente, a apreensão e síntese no pensamento é alcançada mediante a produção de categorias que auxiliam na apreensão dessas relações hierárquicas e de sua dinâmica. Em suma, esse movimento significa não apenas a caracterização do singular e do particular, mas também a maneira como o universal é informado por essas. Daí a necessidade da categoria “dependência” como complemento e aprimoramento do imperialismo. Desse modo, abre-se a possibilidade para que o desenvolvimento e o subdesenvolvimento possam ser entendidos de forma integrada e enquanto contemporâneos de um mesmo processo histórico.
Em relação à teoria marxista da dependência, entre as inúmeras contribuições deixadas, Jaime Osorio se destaca, em especial, pela construção teórica da categoria de “padrão de reprodução do capital” – elaborada a partir dos caminhos metodológicos iniciados por Ruy Mauro Marini. Resumidamente, essa categoria busca conhecer as faces que o capitalismo pode assumir em uma determinada sociedade, dentro de um determinado período histórico, indicando os setores e os ramos que atraem uma maior quantia de investimento e que se constituem nos núcleos dinâmicos da acumulação e reprodução capitalista.
Analisando uma região ou um país em um determinado período histórico, pode-se observar que o capital privilegia setores que, naquele momento, serão mais rentáveis ao seu processo de valorização. Desse modo, o padrão de reprodução do capital consiste numa categoria com certo nível de abstração que revela a periodização do movimento repetitivo de valorização do capital, levando em conta o eixo dinâmico da acumulação capitalista em uma determinada região, país, cidade etc.
Sob essa ótica, as disputas interburguesas e intraburguesas, bem como a dinâmica da luta de classes, passam a serem mais bem compreendidas. Em suma, se a análise de determinado ciclo do capital pode ser comparada com a de uma foto, em que se pode observar a imagem congelada da passagem do capital em suas distintas fases, o padrão de reprodução do capital consistiria na análise sequencial de diversas fotos, configurando-se num filme que permite identificar as regularidades de determinado período histórico.
Contudo, essa descoberta “criativa” (se quisermos trazer Simón Rodríguez para perto) acontece no final da década de 1970 e início da década seguinte, momento em que a teoria da dependência estava em um acentuado declínio – após atingir o auge e se tornar um paradigma das ciências sociais latino-americanas na primeira metade da década de 1970. O cerco das ditaduras militares aos intelectuais e militantes, a avassaladora ascensão do neoliberalismo e o debate sobre o autoritarismo e sobre a transição democrática acabaram deslocando o debate latino-americano – que, desde os anos 1940, girava em torno do desenvolvimento e do subdesenvolvimento –, tendo um impacto decisivo para o declínio, e mesmo ostracismo, desse paradigma teórico.
Contudo, não foi apenas a teoria da dependência que entrou em declínio nesse período. No bojo da crise do capitalismo e de seus impactos desde meados dos anos 1970, as pesquisas e programas de estudo das ciências sociais tomaram outro rumo, com o reposicionamento do positivismo enquanto um dos polos predominantes ao lado do pós-modernismo, que surge com imenso vigor como alternativa científica às ciências “totalizantes”.
É justamente em função da consolidação dessas perspectivas, com o predomínio do empirismo, da fragmentação e da dispersão das análises dali derivadas, que Jaime Osorio busca recolocar a perspectiva marxista no centro das preocupações das ciências sociais com seu trabalho Fundamentos da análise social: a realidade social e seu conhecimento.
Publicado originalmente em 2001 pela editora Fundo de Cultura Econômica, do México, com uma segunda edição, revisada e corrigida, publicada pela mesma editora em 2016 (a partir da qual a presente publicação se baseia), o livro que o público brasileiro agora tem em mãos propõe o resgate da preocupação científica em apreender a inteligibilidade do mundo social a partir da articulação dos seus mais diversos elementos. Em outras palavras, passa necessariamente pela polêmica com o positivismo e com o pós-modernismo.
Nesse sentido, Jaime Osorio observa que, em certa medida, a totalidade é tomada pelo pós-modernismo como uma versão acadêmica do totalitarismo, entendida como um esforço filosófico que estaria esgotado e faria parte da modernidade, isto é, do passado. Para o pós-modernismo, o estudo do particular, do contingente e do indeterminado é um dos principais aspectos de sua proposta epistêmica. Em realidade, o problema não estaria no estudo das particularidades e singularidades, mas na falta de articulação dessas com o geral.
Já o positivismo e o neopositivismo recusam a noção de totalidade por outras razões. Apesar de conceberem a existência de uma ordem e de um sentido na vida social, sendo o papel da ciência identificá-los, não existiria nenhuma racionalidade capaz de englobá-los numa explicação geral. Para Karl Popper, por exemplo, a realidade não tem limites, de modo que a totalidade, seja lá como se constituir, não poderia ser apreendida pela atividade científica.
Aqui, como aponta Jaime Osorio, existe uma confusão entre conhecer tudo e conhecer o todo (que estaria associado à ideia de completude). Como observa o autor, para conhecer o todo não é necessário conhecer todos os seus átomos – ou, em outras palavras, para conhecer o bosque não é preciso conhecer cada uma de suas árvores. Tal confusão se dá na medida em que essa perspectiva toma o todo como uma “mera” junção de todas as coisas.
A totalidade, ao contrário, é um todo articulado, estruturado e hierarquizado, composto por partes. Mas a totalidade é mais do que a soma das partes, contendo também suas relações. Com efeito, em nossa época, a atividade histórica unificadora da totalidade é o capitalismo – com destaque para a relação capital-trabalho – que se desdobra num sistema mundial hierarquizado e desigual.
Por outro lado, a totalidade enquanto atividade histórica (entendida não como um ser estático, mas como um ir sendo), é constituída pela negação, pela contradição interna, de modo que se configura em uma universalidade diferenciada, não homogeneizante. Sendo este o caso, a realidade é posta em movimento pela negação de si própria, de sorte que ao se pôr em movimento negando o que já é, coloca-se a si a possibilidade da mudança. Dito de outro modo, é um ente que está em constante processo de ir sendo outro de si. Eis, então, a negação como imanência do ser.
É nessa linha que Marx propunha que o limite da produção capitalista consiste no próprio capital, já que seu movimento de reprodução carrega em si sua negação na forma de crises econômicas que abrem fissuras, que podem resultar em seu revolucionamento e superação (Aufhebung). O capital é o responsável por criar seu próprio coveiro, a saber, o proletariado, sujeito que encarna a negação social e política do próprio capitalismo.
Contudo, para que seja conhecida cientificamente enquanto totalidade complexa, a realidade social deve ser decomposta. Nas ciências sociais, esse processo de decomposição para sua apreensão ocorre a partir de três dimensões: (a) os níveis de análise, (b) o tempo e (c) o espaço; de sorte que cada um deles requer um conjunto categorial particular.
Os níveis de análise se referem, em um primeiro momento, aos processos de abstração e concreção da reflexão que buscam superar aquilo que está imediatamente dado na percepção, isto é, as representações que aparecem de forma caótica e que geralmente operam de forma distorcida. Esse método de conhecimento parte de representações iniciais (o concreto representado), com a separação e análise dos elementos simples para, então, decifrar e revelar as articulações específicas da realidade que se deseja explicar.
Esse é o processo de abstração ensinado por Marx, que consiste em distanciar-se da realidade imediatamente dada para separar e analisar seus elementos simples – considerados fundamentais no tecido que organiza e dá sentido à realidade social –, para depois fazer o caminho de retorno, incorporando novos elementos e novos processos rumo a uma totalidade enriquecida, e engendrando, assim, uma realidade mais concreta que apareça de maneira organizada, hierarquizada e explicada. Em outras palavras, esse processo resultará num concreto explicado, que é uma síntese de múltiplas determinações.
Para Jaime Osorio, partindo do nível mais abstrato ao mais concreto, o marxismo permite a distinção dos seguintes níveis: modo de produção, modo de produção capitalista, sistema mundial, padrão de reprodução do capital, formação econômico-social e conjuntura. Cada um desses níveis de análise compõe um sistema categorial integrado e inter-relacionado, de modo que os níveis mais concretos se alimentam das noções, categorias e tendências dos níveis mais abstratos, ainda que devam conceber noções, categorias e tendências próprias, que deem conta da particularidade analítica referida.
Por outro lado, ao serem bem-sucedidos na apreensão das particularidades, os níveis mais concretos incidem sobre os níveis mais abstratos, redefinindo sua reflexão. Dessa forma, o marxismo conta com um corpo teórico que em todos os níveis está em permanente movimento, se condicionando e se retroalimentando. Ainda assim, ressalva o autor, cada nível tem sua lógica e regularidade, o que exige categorias e metodologias próprias, bem como instrumentos técnicos de coleta de informação.
Já a dimensão temporal não se refere a qualquer tempo, digamos o tempo natural, cronologicamente representado em segundos, minutos, horas, dias, semanas, meses, anos, décadas, séculos e milênios, que são medidos e controlados pelo relógio ou pelo calendário. Essa dimensão se refere ao tempo social, que é heterogêneo e descontínuo, que se condensa e se dilata. É nesse segundo sentido que se torna possível entender a realidade social enquanto unidade dos diferentes tempos sociais, que comporta processos que se apresentam no curto prazo (sendo a noção de conjuntura uma temporalidade específica desse processo), na média duração e ainda em processos de longa duração.
Com efeito, não obstante as diferenças, essas temporalidades se vinculam estreitamente, formando uma unidade do tempo social. Essa intersecção temporal, como nos diz Osorio, é um problema central para a análise, que deve identificar a significação e incidência do tempo curto no tempo de longa duração e vice-versa.
A terceira dimensão da totalidade é a espacial, que nos remete ao vínculo da sociedade com a natureza em espaços geograficamente delimitados, de modo que as condições geográficas desempenham um papel central na própria construção da história social. Nos é lícito pensar, por exemplo, que, sob a perspectiva daquilo que se produz, é diferente ocupar um espaço numa região tropical e um espaço numa região temperada no Sul, ainda que ambos os espaços se localizem em regiões periféricas.
Da mesma maneira, a reprodução da força de trabalho se distingue em uma e outra localidade – no primeiro caso, a força de trabalho usa vestimentas mais leves e mantém uma alimentação menos gordurosa, ao passo que, no segundo caso, a força de trabalho deve utilizar uma vestimenta mais grossa, manter uma alimentação mais rica em gordura e ainda ter habitação apropriada para suportar as baixas temperaturas.
Nesse sentido, o autor nos diz que a dimensão espacial contém três níveis principais de análise: os processos sociais que se desenvolvem (i) em espaços macrorregionais; (ii) em espaços regionais; (iii) em espaços locais. A abordagem sistêmica do capitalismo se aplica ao primeiro caso; a abordagem de uma região integrada política ou economicamente ou de um Estado-nação condiz com o segundo nível; e o terceiro nível se refere a alguns espaços microrregionais, onde são mantidas relações econômicas, sociais e culturais.
Independentemente da unidade de análise adotada, esta integra uma estrutura que lhe dá inteligibilidade, o que implica responder duas questões: de que maneira um processo mais geral se manifesta e se expressa nos processos particulares (ou unidades menores) e de que maneira os processos particulares incidem e afetam os processos mais gerais dos quais são integrantes. Como é possível notar, a riqueza do processo de decomposição da realidade social consiste na abertura e na flexibilidade com que permite a passagem de uma dimensão de análise à outra, ou de um nível de análise ao outro, para que se chegue à reconstrução da totalidade.
Não se furtando de debater criticamente com as abordagens que relativizam a existência de uma verdade e negam a possibilidade da existência de uma totalidade cognoscível, a obra tem como uma de suas grandes contribuições a atenção e o cuidado com que apresenta os caminhos pelos quais o processo de reflexão científica deve seguir em direção ao concreto.
O leitor prontamente é levado a entender a relevância do processo de abstração, bem como suas necessárias mediações, para que o investigador social esteja apto a apreender a realidade social em suas múltiplas determinações. É sob essa perspectiva epistêmica e metodológica que Fundamentos da análise social retoma a polêmica com as correntes empiristas, reafirmando a necessidade da unidade teórico-metodológica para a reconstrução dos dados e dos fatos.
Isso, por um lado, nos coloca a questão da ideologia enquanto expressão do pensamento que ilumina um aspecto restrito da realidade, deixando encoberto todo o restante, o que, por outro lado, aponta para o problema da divisão e especialização disciplinar, com seus debates acadêmicos cada vez mais restritos, encerrados pelos altos muros da fragmentação do pensamento, que progressivamente vão interditando as pontes de diálogo com as demais disciplinas, transformando cada campo de conhecimento numa verdadeira ilha.
Dessa forma, a construção do sistema categorial da obra marxiana se desenvolve no sentido de criar pontes para revelar as articulações que organizam a sociedade. Suas categorias são, portanto, “abertas”. É nesse sentido que podemos dizer que existe um corpo categorial em que a transdisciplinaridade é um componente constitutivo de sua própria construção.
Com efeito, o livro retoma a preocupação de uma real comunicação disciplinar, que reponha qualitativamente a transdisciplinaridade não como uma bricolagem esquemática das mais diversas áreas do pensamento social – como muitas vezes ocorre nas abordagens interdisciplinares –, mas como uma junção do diverso a partir de uma ciência aberta, com um princípio unitário que conceba a possibilidade de apreensão das regularidades e da dinâmica da realidade social.
Exatamente por ser uma ciência aberta, o fato de o processo de abstração tornar possível a intelecção dessas regularidades não deve suprimir a apreensão dos fatos singulares, mas, ao contrário, deve incorporá-los em sua reflexão mais geral para que possam ser dotados de sentido e, portanto, mais bem compreendidos. Como bem coloca Jaime Osorio, não existe no método marxista uma oposição entre as ciências nomotéticas e idiográficas, isto é, na relação entre o lógico e o histórico. Assim, não existe proeminência de um sobre o outro, da teoria sobre a história, ou da história sobre a teoria; ambas caminham juntas.
A breve apresentação de alguns pontos tratados em Fundamentos da análise social: a realidade social e seu conhecimento confirma o feliz acerto em publicar este rigoroso trabalho de Jaime Osorio no Brasil. Como se não bastasse, a obra nos brinda não apenas com um excelente material de consulta para que estudantes, professores e militantes políticos entrem em contato com os fundamentos da cognição e análise da realidade social, mas se constitui também em um trabalho que busca reestabelecer a centralidade do marxismo para as ciências sociais, especialmente na América Latina – tarefa urgente e indispensável.
Ora, não poderia haver melhor momento histórico para esse empreendimento, seja em função do itinerário proposto, da acessibilidade da linguagem, do alcance da reflexão, ou do horizonte apresentado.
*Fabio de Oliveira Maldonado é mestre pelo programa de pós-graduação em Integração da América Latina da Universidade de São Paulo (USP).
Referência

Jaime Osorio. Fundamentos da análise social: a realidade social e seu conhecimento. Tradução: Fabio de Oliveira Maldonado. São Paulo, Expressão Popular, 2025, 228 págs. [https://amzn.to/42iV5PY]
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