Por GABRIEL DANTAS ROMANO*
Prólogo do romance recém-lançado
Eu estava sentado na recepção da academia quando vi o céu, de repente, escurecer. Era por volta das três da tarde ainda e, de um minuto para o outro, o dia tinha virado noite. Lembro que aquele fenômeno causou um efeito em mim, tomei a situação como um prenúncio apocalíptico. Parecia que a própria composição da atmosfera queria nos alertar, anunciar o resultado das práticas nocivas e degradantes que o sistema econômico perpetra contra a natureza.
No dia seguinte, tentei comentar sobre o episódio com um amigo.
– Você viu o que aconteceu?
– Sim – respondeu ele. – Estão falando que isso é fumaça da Amazônia. Mas como a fumaça ia vir de lá para cá? É cada uma que inventam…
Somos de São Paulo e logo percebi que era mais uma tentativa de minimizar qualquer preocupação que ameaçasse a reputação do presidente dele. O ano de 2019 foi um ano de muitos retrocessos, principalmente para a política ambiental. Todos nós colhemos muito rápido os frutos negativos resultantes disso, embora muitas pessoas prefiram não compreender. Foi o ano do “dia do fogo”, quando produtores rurais se mancomunaram para incendiar um dos maiores patrimônios ambientais do planeta, a Floresta Amazônica, na intenção de ampliar a área de pastagem e cultivo agrícola.
Por si só, degradar uma entidade ecológica que regula o regime de chuvas – e assim torna o clima mais propício para a continuidade de vida na Terra – é uma ameaça grave a toda humanidade. Mas os fazendeiros só tiveram a liberdade de consumar o crime com a conveniência do Estado, que há pouco tinha desmontado todas as políticas de proteção ambiental. Tornou-se muito confortável infringir as leis, já que o governo não iria interferir, a não ser para auxiliar.
Por dias seguidos, labaredas crepitavam sobre as árvores, consumiam as plantas e incineravam o ecossistema. Colunas de fumaças se alçavam ao céu. Logo depois, no dia 19 de agosto de 2019, nuvens escuras se formaram em conjunção às partículas de fuligem e bloquearam completamente a passagem de luz.[i] A atmosfera ficou metamorfoseada, assumindo os contornos de um anúncio apocalíptico.
– Ah sim. Você conhece o conceito de circulação atmosférica? – Foi tudo o que eu me limitei a responder.
Eu lembro dele ter adotado um tom enfatuado, na intenção de ridicularizar qualquer preocupação fora do circuito de interesses comerciais. Para algumas pessoas, esse é o único tipo de preocupação que compensa manter. O tal amigo falava como se isso tudo fosse uma hipótese absurda, um alarmismo inverossímil, coisa de gente histérica ou intriga da oposição… Para ele, não teria como a fumaça dos incêndios lá da Amazônia chegar até São Paulo. Então, precisei lhe relembrar que circulação atmosférica existe, que o globo terrestre rotaciona e que a Terra não é plana…
Por que temas tão simples do ensino fundamental, como massas de ar, fugiram da cabeça de um homem de classe média com diploma de pós-graduação?
Primeiro, vivemos numa sociedade que não valoriza a atividade intelectual. Se numa sala de aula o aluno fala “para que vou estudar isso?” ou “para que isso vai servir na minha vida?”, ele corre o risco de se tornar um adulto que não consegue se apropriar do conhecimento pedagógico para decodificar os fenômenos que a humanidade presencia, nem articular o conteúdo básico que aprendeu para interpretar a própria realidade.
O sistema educacional hoje, ao invés de preparar os alunos para a vida pública, busca apenas formar mão-de-obra tecnicamente capacitada para o mercado de trabalho. Como não é instruído para exercer a cidadania, o estudante sai da escola inapto para usufruir e participar da esfera social comum, ainda muito precária no Brasil. Assim, descarta grande parte do conteúdo que poderia ajudá-lo a entender os fenômenos da atualidade.
Numa democracia participativa, o exercício intelectual seria demanda natural da vida pública, preceito básico para a tomada de decisões coletivas. Porém, não é esse tipo de atividade mental que nossa formação social requer. Nossa inserção na sociedade não se dá pela cidadania plena, mas sim por operações mercadológicas, como a oferta da força de trabalho a um mercado e o consumo de bens comerciais. De resto, podemos dar continuidade a uma rotina alienada, apartada da realidade, sem pensar além do campo de visão limitado que as atividades corriqueiras nos propiciam.
Por outro lado, também está tão dado que estamos separados dos meios de decisões e das máquinas de influência política que, por natureza, não convém raciocinar sobre os problemas que não estamos aptos a resolver, nem assimilar esses fenômenos a uma forma mais coerente e profunda de compreender o mundo.
O indivíduo moderno, como átomo isolado que pressupõe ser, sabe que não tem acesso à estrutura dominante que direciona a sociedade, então apenas prossegue a rotina alienada. Para muitos, trabalhar para participar de uma esfera de consumo, o único lugar que o capitalismo te destina a viver “livremente”, é o horizonte de vida estabelecido.
Mas, se o sono da razão produz monstros, a coruja de Minerva precisa levantar voo. A postura do meu amigo também é exemplo de uma era em que a desinformação ocorre em massa. Quando não se valoriza a intelectualidade, o raciocínio não é acionado para compreender os fenômenos que presenciamos; e as ideias de fácil digestão, que não demandam esforço cognitivo, são consumidas e reproduzidas sem terem sua veracidade questionada.
Apenas vivemos, experimentamos os acontecimentos da vida sem raciocinar corretamente sobre eles e sem produzir um entendimento rigoroso, complexo, a partir disso. Um exemplo? A própria pandemia. Todos presenciamos essa fase atroz, sofremos na pele o seu impacto, e testemunhamos a perda de milhões de vidas… Mas refletimos corretamente sobre tudo isso?
A crise sanitária foi fruto de uma má interação com a natureza, de uma prática abusiva com a vida silvestre. E até agora, passar por essa experiência sombria não nos fez alterar a estrutura desse relacionamento. Mesmo depois da catástrofe ter se desenrolado, animais continuam confinados sob tratamento abusivo de antibióticos, as florestas são desmatadas, o degelo expõe novos vírus à atmosfera e assim por diante… Nenhuma mudança substancial foi provocada, e ainda aguardamos o despertar de uma nova consciência, a despeito de todo sofrimento vivido.
Muitos esperançavam que a emergência pandêmica pudesse alterar de alguma forma o paradigma das sociedades, ou contribuir para uma mudança de perspectiva. Alguns chegaram a anunciar a vinda do novo comunismo. Mas os “intelectuais” nunca estiveram tão equivocados. Continuamos direcionados pelo mesmo modelo falho de organização socioeconômica que desencadeou o problema.
O mesmo acontece com as mudanças climáticas. Vivemos dia após dia, sentimos vividamente em nossa pele, todos os efeitos do aquecimento global. Mas ainda não raciocinamos corretamente a respeito disso, não assimilamos esse fato a uma forma mais coerente de entender a realidade. Pelo contrário, continuamos expostos a uma sobrecarga de informações avulsas e desconexas, que se perdem no fluxo contínuo de notícias instantâneas, e não manuseamos ou interligamos os acontecimentos para produzir uma macrocompreensão do fenômeno, um entendimento unitário.
Assim, os eventos climáticos aparecem como tragédias isoladas e não como sintoma de um problema maior, fruto da reprodução de um sistema. O grande público, sem um esforço intelectual coletivo eficiente, já não consegue produzir uma compreensão conexa e coerente dos fenômenos que presencia.
É nesse contexto que entra o papel transformador da pedagogia. Precisamos articular os dados soltos e as informações desconexas, reuni-los para compor um quadro dentro de um entendimento analítico, ciente das transformações e dos elementos que compõe nossa realidade como um todo coerente. Não podemos mais prosseguir como espectadores apáticos, pois os problemas de nossa época demandam um novo posicionamento perante o ciclo reprodutivo da vida social, não só fisicamente, mas intelectualmente também.
Em um sentido mais idealizado, uma educação efetiva pode favorecer o pleno exercício da cidadania. Ela deve nos preparar para o convívio público, nos fazer enxergar novas formas de sociabilidade, e não apenas nos instruir de maneira conformada para o mercado de trabalho. Sem o entendimento necessário, nunca iremos visualizar corretamente os problemas, e sem visualizá-los, não podemos resolvê-los. Como Paulo Freire dizia: “Se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda”.
Talvez, na mais otimista das hipóteses, se meu amigo tivesse claro em sua cabeça como funciona a circulação da atmosfera, ele entenderia muito bem que, ao se deslocarem, as massas de ar trazem consigo as características de onde vieram. Com as habilidades necessárias, ele visualizaria o fenômeno semiapocalíptico em toda sua magnitude, e teria a possibilidade de entender sua gravidade. No caso, a fuligem era tanta, tamanha a proporção do incêndio, que não tinha opção a não ser se conjugar ao vento…
Eu tinha 21 anos quando a fumaça usurpou a luz do céu. Eu sabia que, cedo ou tarde, teria que explorar o efeito psíquico que o episódio produziu em mim, de forma intelectual ou artística. Todos os anseios que acumulei por anos precisavam ser canalizados…
Gabriel Dantas Romano é graduando em história na Universidade de São Paulo (USP).
Referência
Gabriel Dantas Romano. Fúnebre névoa. São Paulo, edição do autor, 2023.
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