Gaza – dois anos depois

Imagem: Mohammed Ibrahim
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Por LUCYANE DE MORAES*

Diante do espetáculo da barbárie, o ato radical de escutar tornou-se o primeiro passo para desmontar a arquitetura do extermínio e sua racionalidade perversa

“A violência dos opressores que os faz também desumanizados, não instaura uma outra vocação – a do ser menos. Como distorção do ser mais, o ser menos leva os oprimidos, cedo ou tarde, a lutar contra quem os fez menos” (Paulo Freire).

1.

Há dois anos, quando quase nada era divulgado sobre a tentativa de extermínio étnico já em curso – exceto notícias escassas difundidas por veículos independentes –, em um impulso de indignação, semanas após o início dos ataques à Faixa de Gaza, escrevi o artigo “Razões da guerra”,[i] no qual reiterava – por princípio – a necessária reflexão sobre o valor atribuído à substantivação da violência instrumental, bem como à reprodução de padrões hegemônicos considerados modelo.

O artigo, escrito em 1º de novembro de 2023, imediatamente após o segundo ataque a Jabalia – o maior dos oito campos em Gaza, que abrigava por volta de 116 mil descendentes palestinos refugiados –, apontava para a brutalidade da ofensiva que ocasionou a morte de 50 pessoas, ferindo outras centenas, justificada pela morte de apenas um guerrilheiro do Hamas, crime exemplar contra a população civil, deliberadamente impetrado.

A investida do Estado sionista que mata, quando não expulsa centenas de milhares de palestinos de suas casas, o faz na tentativa igualmente delituosa de apagar a existência de um povo escolhido para o extermínio, eliminando ao mesmo tempo os rastros de seu passado e memória histórica…

Em contrapartida, os (contra) ataques do Hamas (grupo surgido na Primeira Intifada), se devem desde sempre à Nakba – expressão árabe que define o desterro da população palestina – à limpeza étnica levada a termo pelo governo de Israel entre os anos de 1948 e 1967 e que perdura, causando a segunda maior diáspora forçada da história, ficando a dever somente aos dois longos séculos de escravidão africana. A violência do oprimido é estratégia de liberdade; a do opressor, instrumento de não-libertação. Reside aí, justificada, diferença!

Há exatos dois anos, o artigo “Razões da guerra” dizia respeito a isso: à denúncia “da voz de comando que silenciava os inocentes”, com a finalidade precípua de evidenciar o emudecimento das mídias dependentes das pautas econômicas liberais que agem sob o escudo de uma suposta legalidade política hegemônica.

2.

Passados dois anos, os mesmos detentores majoritários da comunicação de massa, sempre no encalço de inimigos (denominados ditadores ou terroristas) escolhidos para chamar de seus, noticiam a barbárie (com o velho cinismo que lhe é peculiar), validando o discurso do ódio, da guerra e, soy acontecer, da mentira premeditada como verdade, fazendo da manipulação um modelo de informação que institui a violência e a espetacularização punitiva como forma de linguagem, em seus mais diversos sentidos.

A despeito de toda indignação, há dois anos não era possível sequer imaginar a extensão da atrocidade, da terra arrasada, da expiação física, dos abusos à integridade e do aniquilamento por fome, com consequências há muito não vistas, totalizando mais de 70 mil mortes televisionadas. Sadismo, terror e barbárie justificam a desumanidade estandardizada, para além de manifestações de anomia. Horror! Indiferença! Infâmia! Aviltamento! Cansaço!

Solidária às vítimas das hostis e descomedidas ofensivas militares do exército de Israel, no texto “Razões da guerra” registrei a preocupação em justificar meu “lugar de fala” – um lugar social de prática discursiva – relacionando-o à opressão do povo palestino e sua forçosa inquidade social, em oposição aos comandos fascistas e seus líderes extremistas de direita que degeneram o conceito de história.

No intuito de valorizar instâncias ligadas à percepção dessas vozes silenciadas por grupos hegemônicos, que exercem direitos supremacistas por meio de políticas econômicas – negação contínua ao histórico direito a terra e afirmação do ininterrupto extermínio étnico – hoje, mais do que ontem, o controverso “lugar de fala” abre espaço para o “lugar de escuta”. Desnecessário ratificar a obviedade do direito do povo palestino à autodeterminação, como a qualquer outro, mesmo o de Israel.

Se outrora parecia incerta a ideia de poder contar com fontes confiáveis que afiançasse a verdade contrária à mentira dos fatos, cabe afirmar agora que o apagamento de corpos e o silenciamento de vozes não foram normalizados e tampouco aceitos no Ocidente. A brutalidade na Palestina tem sido objeto da constatação de todo o mundo. Se a tentativa foi instituir a inumana violência como algo aceitável, as vozes silenciadas foram ouvidas. Os gritos emudecidos fazem eco hoje em todo e qualquer lugar do planeta.

O “lugar de escuta” constitui, portanto, o ponto de partida para a compreensão do mundo; para o princípio de negação dos fatos produzidos como aparência; para a afirmação do que se sabe e se quer negar, indo de encontro à indiferença das relações desiguais que contribuem para o banimento silencioso de vozes oprimidas.

3.

Evoca-se com isso um princípio filosófico que predomina nos pensamentos grego, helenístico e romano relativo ao «cuidar de si» (epiméleia heautoû), destacando aquele relacionado à escuta. No interior da práxis filosófica atribuída aos antigos – como ler, escrever, memorizar e meditar – a ação da escuta, balizada por Platão, Epicuro, Epicteto, Pitágoras, Plutarco e Marco Aurélio, entre outros, diferencia-se como forma primeira e privilegiada de apropriação da verdade pelo sujeito, tanto como processo de domínio de si mesmo quanto de compreensão de ascéticas forças contrárias. Ao ouvir se aprende mais a refletir do que a falar.

Em tempos de pares binários e de razão irracional (tempus dialecticae minimae) é compreensível que não se tenha dado devida atenção à emblemática ação da escuta, uma vez que a ação das palavras se resume à práxis das ideias.

A verdade histórica, indiferente a versões equívocas ou interessadas, pressupõe sem mais reativar a escuta em seu sentido original e profundo, prática essa que permite transformar o formado, tornando o verídico desinteressado um princípio, o ethos da própria existência. A escuta, como ativo prioritário do cuidar de si, possibilita modificar a relação consigo e com o Outro.

Se for verdade que numa sociedade opressora – onde não há lugar de escuta – o anseio do oprimido é tornar-se opressor, está então determinado, pelo menos em termos históricos, o holocausto planejado pelo exército de Israel, desde sempre – e em priscas eras – voltado para o extermínio do seu Outro. No que tange à correção do pensar, necessário fazer de novo menção a Hegel e sua dialética do senhor e do escravo, naquilo que o primeiro, visto como “para-si”, determina o segundo como coisa, isto é, enquanto um “ser-para-o-outro”.

Dois anos depois, a despeito de um duvidoso final de conflito – a ver para crer – a guerra contra os palestinos em Gaza é, em particular, a mais insana de todas as outras, tanto por seu quantificado número de vítimas quanto por seu qualificado esmero racional. Isso ocorre em meio a um genocídio televisionado, ao vivo, mediante a institucionalização da barbárie. Os que detêm o poder são designados “vencedores”. Aqueles que nada detêm são tão-somente nomeados “vencidos”.

Em dois anos, a ofensiva israelense investiu contra Gaza pelo menos 20 mil vezes. Cerca de 50 milhões de toneladas de escombros deverão levar até duas décadas para serem retirados, salvo os já declarados interesses imobiliários. Deserto de ruínas. Tragédia humanitária. A hecatombe continuada contradiz a consciência alheia e a própria história.

*Lucyane de Moraes é doutora em filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais. Autora do livro Theodor Adorno & Walter Benjamin: em torno de uma amizade eletiva (Edições 70/Almedina Brasil) [https://amzn.to/47a2xx7]

Nota


[i] Postado originalmente, em 01/12/23, na revista portuguesa InComunidade, espaço de pensamento e criação que aborda áreas como política, economia, direito, ciência; cf: https://www.incomunidade.pt/razoes-da-guerra-lucyane-de-moraes/, o artigo foi posteriormente também publicado, em 25/12/23, pelo site A terra é redonda: https://aterraeredonda.com.br/razoes-da-guerra/


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