George Orwell

Imagem: Jan van der Zee
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Por HUGO S. DE OLIVEIRA*

Considerações sobre a vida e a obra do escritor e jornalista inglês

Reconhecido mundialmente por suas obras revolucionárias, o jornalista, crítico e literato George Orwell, feito famoso na cultura popular, em especial na sociedade brasileira, como cunhador de termos como o “Big Brother”, e entre os intelectuais contemporâneos através do título “orwelliano”, comumente utilizado para descrever distopias totalitaristas e autoritárias. A ressurgência constante de suas obras no mercado literário tem demonstrado que seu legado é garantido no novo milênio através de seu trabalho de ficção, ao lado de vários outros proeminentes escritores do século XX.

Apesar do rico estilo de escrita, seu exímio uso da técnica pouco comum aos romancistas de sua época, deixa claro que sua carreira nem sempre foi dedicada apenas à ficção. Muito de seu estilo, relatado pelo mesmo em seu artigo: “Politics and The English Language” (1946), posteriormente utilizado por um dos proeminentes editores chefe do jornal The Observer, como uma espécie de guia editorial. Orwell defendia o uso de uma linguagem clara e sucinta, dando pouco espaço a metáforas ou alegorias, instigando a compreensão imediata do leitor.

Para melhor compreender sua carreira e sua paixão pela literatura, no entanto, temos primeiro de nos aprofundar em sua própria história, que por diversas vezes se mostra inerente ao desenvolvimento de suas próprias narrativas de ficção e não-ficção.

Nascido no dia 25 de junho de 1903, em família inglesa de classe média na Índia colonial, Eric Arthur Blair, mais tarde reconhecido por seu homônimo George Orwell. Logo após seu nascimento foi levado junto de sua irmã ao interior da Inglaterra, terra de origem de seus pais, onde ostentavam de um status elevado devido à posição da família Blair, que mesmo figurando um cargo de pouca relevância na força policial das colônias inglesas, ainda possuía renome entre as famílias locais, apesar da defasagem monetária que os havia acometido em anos recentes.

Para o jovem Eric Blair, no entanto, sua posição social não o impedia de viver uma vida simples ao lado de crianças de classe proletária, e ter uma infância despreocupada nos campos abertos das planícies britânicas, até ser afastado das “classes inferiores” por sua mãe, de família francesa, que através de uma bolsa de estudos o inseriu no corpo de estudantes na escola de um convento católico junto de sua irmã, onde devido a sua performance aos 8 anos de idade foi aceito na escola preparatória de St. Cyprian, que se dedicava a preparar jovens garotos a ingressarem em escolas públicas. Durante seu tempo na instituição o pequeno Blair foi exposto a crianças de condição monetárias muito superiores às suas, e logo percebeu sua posição como um outsider, sendo discriminado não apenas por seus colegas, mas também pelos reitores da instituição, que não hesitavam em demonstrar seu favoritismo para com os outros alunos.

Ainda no internato, já descobrindo seu gosto pelas palavras, publicou dois poemas autorais em um jornal local. Já aos 14 anos, através novamente de bolsa de estudos garantida a ele por relações familiares, ingressou em uma das mais requisitadas instituições públicas da Inglaterra o Eton College, onde novamente se viu no meio de uma elite formada inclusive por membros da realeza. Apesar do ambiente nocivo, Eric apesar de não se distinguir como um aluno excedente, recebia tratamento mais igualitário dos professores. Foi durante seu tempo lá que teve contato com grandes autores como H. G. Wells, Samuel Butler, e junto do mais tarde renomado Roger A. B. Mynors, criou a revista experimental em formato manuscrito, intitulada Election Times, interagindo também com outras publicações, das quais não restam mais arquivos históricos como: College Days e Bubble and Squeak, sua primeira interação direta com o universo do jornalismo.

Ao fim de sua estadia em Eton College, os pais do jovem Blair de 19 anos, não acreditavam em seu potencial de ingressar em uma universidade pública através de outra bolsa de estudos. Portanto, por pressão familiar, acaba voltando à então colônia inglesa na Índia para trabalhar na polícia imperial, dando continuidade ao legado do pai.

Em seu posto em Burma, na Índia, suas tarefas incluíam não apenas o policiamento rotineiro, mas também o acompanhamento de padres pelo interior, incumbidos de catequizar a população local. Apesar de sua desenvoltura em absorver a cultura e língua local, Blair passava boa parte de seu tempo confinado ao lado de livros. Conviver diretamente com as práticas colonialistas então impostas no país pelo Raj Britânico, deu a Eric o impulso necessário para que mais tarde, no ano de 1927 retorna a seu país natal devido a uma infecção com o vírus da dengue, se decidisse a rejeitar seu emprego na força policial colonial.

Sua estadia na Índia no entanto serviria de inspiração para a criação do romance Burmese Days, e dos artigos A Hanging (1931), publicado na revista literária The Adelphi, uma descrição mórbida e extremamente detalhada de um ato de execução testemunhado pelo mesmo. Além, do mais reconhecido, Shooting an Elephant (1936), publicado inicialmente na revista literária New Writing, uma publicação antifascista no formato de livro, mais tarde também veiculado pela rádio BBC (1948). No artigo ainda sob o nome de Eric Blair, ele escreve em primeira pessoa o ato de, contra sua vontade, ter de atirar em um elefante agressivo sob pressão da população local. E descreve a morte do animal, considerado por lendas budistas como um ser sagrado que representa a pureza; como um processo lento e tortuoso. O artigo após sua morte teve várias adaptações em livros, e até mesmo filmes. A obra ficou marcada como origem de uma de suas mais famosas citações: “When the white man turns tyrant, it is his own freedom that he destroys”.

Após seu retorno então à Inglaterra, o jovem Blair decide dedicar sua vida à escrita, e contrariando a vontade dos pais se muda para a cidade de Londres, onde vive por volta de um ano como um “tramp“, uma espécie de mendigo, decidido a experienciar a vida às margens da sociedade em seu próprio país. Seu tempo nas ruas e albergues de Londres culminaram no artigo The Spike (1931), publicado anos após, na revista The Adelphi.

Em 1928 decide se mudar para Paris vivendo em proximidade a uma de suas tias por parte da família da mãe, no entanto, rejeitando o apoio financeiro de seus familiares na Inglaterra, vive como lavador de pratos em restaurantes publicando alguns artigos em jornais locais em seu tempo livre, como o Monde, uma publicação comunista, na qual estreou sua carreira na França com o artigo La Censure en Angleterre. Assim como alguns sucessivos artigos ao Le Progrès Civique, denunciando a então já latente falta de emprego, e as precárias condições de vida dos pedintes em Londres de acordo com suas experiências nas ruas das metrópoles europeias. Mais tarde, sua experiência entre os pobres e desalojados, levaria a formulação de seu primeiro livro, Down and Out in Paris and London.

Nele o autor se propõe a fazer uma descrição direta das realidades vividas pela população marginalizada, que varia constantemente entre narrações em primeira pessoa, e transcrições de histórias contadas por moradores de rua e todas as cores de indivíduos com que conviveu em seus empregos provisórios em restaurantes e hotéis, assim como nos albergues e hospedarias. Incluindo relatos chocantes de situações, muitas vezes retratadas pelos personagens com naturalidade espantosa.

O valor mais relevante da obra talvez se encontre em sua descrição das dinâmicas sócias inerentes a pobreza e suas consequências na mentalidade do indivíduo, como os efeitos da fome, a vergonha causada pelas roupas velhas e sujas em locais públicos; efeitos que invariavelmente acarretam a segregação da classe baixa entre suas superiores. Em contrapartida, demonstra em relatos raros, o poder que a profissão de jornalista exercia no imaginário popular do início do séc. XX, quem sabe resista ainda um pouco do brio com que eram vistos os profissionais da área no século atual. Suas obras subsequentes, sejam de ficção ou não-ficção, demonstrariam sua obsessão pela pobreza e pela população comumente marginalizada da sociedade.

Após sua jornada pela pobreza, em uma tentativa de retornar a alguns dos confortos de que gozava, consegue voltar à pequena cidade de residência de seus pais, onde passa cinco anos escrevendo, e trabalhando como professor particular. No entanto, não deixou de enviar seu trabalho aos jornais, em 1931 teve o artigo intitulado Hop Picking publicado pelo New Stateman, onde graças a equipe editorial no ano seguinte conseguiu seu primeiro agente literário, Leonard P. Moore. A versão inicial de Down and Out in Paris and London, no entanto, foi rejeitada duas vezes, inclusive pelo ilustre editor e escritor T. S. Elliot.

Ainda dedicado a suas aventuras junto aos menos afortunados, Eric foi preso deliberadamente no fim do ano de 1931, esperando passar as datas festivas em cárcere, contudo, foi liberado após dois dias na justificativa de que “mau comportamento e bebedeira”, não figuravam justa causa para uma pena séria. Sua tentativa falha levaria a produção do artigo Clink, publicado no ano seguinte pelo The Adelphi.

Retornando a morada de seus pais, no ano seguinte, voltou a lecionar em pequenas instituições privadas, até que o agente literário Leonard Moore indicou a Blair que Victor Gollancz, fundador do Left Book Club, e de uma prestigiosa editora que até hoje carrega seu nome; estava preparado para publicar seu primeiro livro sob o nome de A Scullion’s Dairy. Para evitar que sua imagem como um marginal manchasse o nome de sua família, Eric Blair enviou uma carta a seu agente e seu editor sugerindo quatro pseudônimos diferentes, entre eles estava George Orwell. Inspirado no santo patrono da Inglaterra St. George, assim como o nome do rio de um de seus locais favoritos no interior, o rio Orwell.

Na pior em Paris e Londres, foi então publicado pela primeira vez em 1933, rendendo boas reviews até mesmo do então reverente suplemento literário do jornal The Times, logo depois sendo publicado pela Harper & Brothers nos Estados Unidos. Dependendo de um emprego complementar, Orwell se dispôs a lecionar em uma instituição de ensino básico em Londres. Durante este período, porém, desenvolveu um caso de pneumonia devido à exposição aos elementos, e após se recuperar completamente apenas no ano seguinte, com a aprovação de seus familiares, nunca mais lecionou.

Ainda em Londres, sob recomendação de uma de suas tias, conseguiu emprego na livraria Booklover’s Corner, vivendo com seus empregadores, tinha tempo para escrever e preparar seu próximo lançamento: Burmese Days, livro de não-ficção detalhando os aspectos mais escusos do Raj britânico na Índia, e A Clergyman’s Daughter, uma história de manipulação e corrupção do poder religioso, para o controle de uma garota inocente, que após sofrer um abuso sob as mãos de um homem de poucos escrúpulos, sofre de uma amnésia e é forçada devido ao surgimento de boatos que mancham sua imagem a trabalhar nos campos e viver entre os marginalizados, ambos ainda tratando da temática de pobreza e injustiça social, e dominação e abuso de poder; enquanto mantinha contato direto com vários dos escritores do The Adelphi.

Em 1935 conseguiu publicar ambas as histórias através da editora de Gollancz, resultando em ótimas avaliações pelo New Stateman. Ainda no mesmo ano conhece a mulher que se tornaria sua esposa Eileen O’Shaughnessy, mestranda em psicologia, também na livraria teve contato com outros escritores envolvidos no ativismo político através do partido Independent Labour Party. Nessa época o autor não demonstrava a convicção política que demonstraria mais tarde em sua vida. Também no mesmo ano começou a trabalhar constantemente com reviews e críticas literárias para a revista The New English Weekly, dedicada prioritariamente a avaliações literárias, assim como a discussão de atualidades, já nos meados do século XX, Orwell publica um artigo defendendo o cultivo de alimentos orgânicos.

Deixando seu emprego em 1936, por razões financeiras, forçado a se mudar novamente de Londres, Orwell escreveu ao então renomado autor Jack Hilton em busca de guia, ou mesmo de uma possível estadia; não podendo ajudá-lo, o autor lhe recomendou a cidade de Wigan. Viajando pelos meios mais baratos, Orwell ao alcançar a cidade, dormindo em albergues; começou a perambular pelas vizinhanças questionando a qualidade de vida dos trabalhadores da mina de carvão da cidade, visitando a mina e pesquisando sobre a história da cidade na biblioteca local.

Sua pesquisa o levou a várias outras cidades mineradoras, onde participava de reuniões comunistas misturadas com premissas antissemitistas, incluindo até mesmo membros do grupo intitulado com Blackshirts, uma liga fascista britânica. Sem ter uma morada fixa, o autor buscou novamente a ajuda de sua tia que possuía uma pequena residência na vila de Wallington, onde o autor escreveu o livro Keep the Aspidistra Flying, retratando a vida de um escritor de poesia que precisa de dinheiro para a cirurgia de seu filho, mas prefere prostituir a própria mulher do que manchar sua imagem voltando a seu emprego como escritor de conteúdo promocional, o título se refere a uma planta frágil, então comum nas moradas da burguesia na Inglaterra, que veio a representar a soberba da classe média, publicado pela editora Victor Gollancz Ltd. em 1936.

Residindo na casa de tia, enquanto cuidava de algumas lojas de suprimentos básicos, começou a produção do livro de não-ficção The Road to Wigan Pier, um documento considerado autobiográfico que retrata a vida dos mineiros, em que pela primeira vez Orwell defende abertamente o socialismo, o qual o autor argumenta, seria a única solução para as condições deploráveis dos trabalhadores. A obra foi razão de controvérsias em grande parte, pois em uma segunda seção, o autor elenca o que acredita serem os motivos pelos quais o povo comum não defendia o socialismo, e acabava partindo em busca de modelos mais radicais como o fascismo. Após sua publicação, com certa ressalva por parte do editor Gollancz, ainda no mesmo ano, Orwell passou a ser investigado pelo Special Branch, facção da polícia britânica dedicada ao anti-terrorismo, operação que continuou por grande parte do restante de sua vida.

Ainda no mesmo ano realizou seu casamento, porém pouco tempo após o evento, com a notícia de guerra surgindo na Espanha, e a formação do estado Nazista, Orwell decide deixar sua vida pacata no vilarejo e vai lutar na Guerra Civil Espanhola ao lado dos democratas. Em dezembro de 1936 viaja à Espanha e se alista entre os ávidos lutadores antifascistas. Após muitas idas e vindas pelos fronts de batalha, e mesmo uma visita de sua esposa, Orwell continua lutando até ser atingido por um tiro de espingarda no pescoço, declarado incapacitado para combate. Voltando com sua esposa para a Inglaterra em julho de 1937, para se recuperar da ferida, que por milímetros não acabou com sua vida.

Logo entrando em conflito com o editor Gollancz, devido a críticas do autor aos comunistas na Catalunha, após entrar em contato direto com os membros mais relevantes do partido e da frente revolucionária na guerra, e presenciar seus métodos e táticas de manipulação através da propaganda. A desavença acabou o aproximando da editora que publicaria seus trabalhos mais reconhecidos, através do editor Fredric Warburg da então Secker & Warburg, ainda ativa nos dias atuais sob o nome de Harvill Secker. Voltando a residência de sua tia, desejando se mudar para a Índia para trabalhar no jornal The Pioneer, ativo até os dias atuais sob o nome de The Daily Pioneer.

Contudo, complicações de saúde levaram a sua internação sob a suspeita de tuberculose, o que o impediu de fazer a viagem, o afastando por um tempo do universo do jornalismo. Se dedicando a escrever sobre suas experiências na Guerra Civil Espanhola, resultando na obra: Homage to Catalonia, que publicado em 1938 pela Secker & Warburg, não obteve sucesso publicitário até após a morte do autor.

Devido a sua saúde frágil, Orwell acabou recebendo anonimamente no fim de 1938, do escritor Leopold H. Meyers, uma viagem paga de 5 meses ao Marrocos, para que recuperasse sua saúde longe do inverno Inglês. Lá o autor escreveu o livro Coming Up for Air, narrativa em primeira pessoa, de um comerciante que após lucrar com seus serviços, decide voltar à sua terra natal no interior da Inglaterra, porém ao chegar, descobre tudo mudado devido às dinâmicas capitalistas, exceto a igreja e o vicário. Foi publicada assim que voltou de sua viagem pela Victor Gollancz Ltd., apesar de contar com uma crítica direta às discussões comunistas ocorridas no Left Book Club.

Com a chegada da 2ª Grande Guerra, sua esposa, Eileen, começa a trabalhar no departamento de censura do Ministério da Informação em Londres, enquanto Orwell, novamente interessado em lutar nas linhas de frente, inscreveu seu nome para serviço, porém foi rejeitado em razão de suas complicações pulmonares. Retornando a residência de sua tia, aproveitando seu tempo para escrever os artigos publicados na coletânea Inside the Whale, voltando mergulhar de cabeça no universo jornalístico escrevendo reviews de livros e filmes para o então New Adelphi, assim como as revistas The Listener da BBC, e a Time and Tide, então uma das primeiras revistas literárias feministas da Inglaterra.

Em 1940, deu início a sua carreira duradoura no jornal Tribune, de preceitos socialistas criado por dois membros do parlamento com posicionamentos antifascistas, em apoio à guerra. Assim como a revista Horizon, também de cunho político esquerdista, e ainda decidido a contribuir com o exército, Orwell se inscreveu na milícia local Home Guard, onde escrevia documentos que serviam como uma espécie de guia para os soldados britânicos. Assim como artigos defendendo a posição política da Inglaterra no conflito europeu, como o artigo “The Lion and The Unicorn: Socialism and the English Genius”, publicado na primeira edição de uma série de livros intitulada Searchlight Books, em 1941.

No mesmo ano passou a contribuir para a revista norte-americana Partisan Review, publicada pelo partido comunista de Nova Iorque, em agosto de 1941 foi contratado pelo boletim noticiário Eastern Service da rádio BBC, trabalhando na seção de contra-propaganda nazista para a Índia, serviço que ele considerava imprescindível. Sendo convidado em 1942 a escrever para o jornal The Observer, uma subprodução do The Guardian, estes empregos seriam de onde viriam as contribuições mais importantes de Orwell ao jornalismo, ambos advindos da necessidade do governo de controlar a população através do uso de propaganda nos conflitos da II Guerra Mundial.

Mantendo agora uma rede de contatos repleta de ativistas políticos da esquerda, Orwell se dedicava completamente a sua visão social e política do mundo, e mais tarde, no ano de 1943, deixou seu emprego na BBC, não apenas para trabalhar em seu projeto do que seria um de seus mais famosos livros Animal Farm, mas também pois dizia crer que seu programa tinha baixa audiência na Índia, onde tinha mais relevância. Perto do fim de 1943 foi promovido a editor do Tribune, iniciando a sua própria coluna.

Em 1944 A Revolução dos Bichos, como o título veio a ser traduzido no Brasil, estava pronto para publicação, contudo enviando-o a Gollancz, o editor se recusou a publicá-lo devido a sua crítica à Rússia comunista. O mesmo ocorreu com várias outras editoras, até a publicação pela Secker & Warburg em 1945, apesar de um incidente que fez com que ainda outra editora prestes a enviá-lo as prensas se recusasse, após uma visita de Orwell a um agente do então Ministério da Informação britânico, que rejeitou a publicação, mais tarde se descobriu, ironicamente, que o mesmo era um agente soviético.

Animal Farm, uma de suas obras mais referenciadas ainda em vida, trata de uma fazenda em mal estado onde os animais, após um discurso inflamado inspirado pelo sonho do porco conhecido pelos outros animais como Major, organizam uma revolução contra seu fazendeiro humano, porém acabam terminando com a fazenda em um estado pior do que o inicial, sob uma ditadura imposta pelos porcos cujo líder tomara o título de Napoleão; a história é uma sátira direta da Revolução Russa que levou a ditadura stalinista, e portanto, recebeu grande atenção de figuras de vulto no governo da Inglaterra que já se preocupava com a possibilidade de um conflito direto com a potência comunista da União Soviética.

No meio tempo, Orwell e sua esposa Eileen decidiram adotar uma criança, já em um apartamento em Londres, em 1945 o autor recebeu a proposta de trabalhar como correspondente de guerra para o jornal The Observer, emprego que almejava desde o início das batalhas, e viajou a Itália e à Alemanha após sua libertação pelos Aliados. Enquanto viajava, sua esposa se decidiu a passar por uma cirurgia de remoção de útero, e acabou morrendo durante a anestesia, deixando sós Orwell e o bebê recém adotado. Retornando a Londres para cobrir as eleições de 1945, o ano seguinte à morte de sua esposa foi um dos períodos em que mais contribui com os diversos meios noticiosos que o empregavam, totalizando mais de 130 artigos. Também se tornando a figura central de um clube de jornalistas, incluindo homens e mulheres esquerdistas, imigrantes de vários dos países afetados pelo nazismo, chamado Shanghai Club.

Escondendo suas recorrentes crises de saúde pulmonar, e desejando se afastar da rotina da cidade, em especial da grande metrópole de Londres, em 1946 Orwell se muda para Jura, uma pequena ilha escocesa, também deixando de lado sua intensa carreira jornalística por um tempo. Vivendo em uma pequena propriedade rural com sua irmã Avril, assim como uma babá responsável pelo cuidado de seu filho, Orwell deu início à sua mais aclamada obra 1984. Ainda no mesmo ano, contudo, agora um escritor de grande fama, teve de voltar à Londres para lidar com problemas de direitos autorais com ambas as editoras que haviam publicado seus livros mais bem-sucedidos.

Retornando no ano seguinte à ilha de Jura, para trabalhar em sua próxima grande publicação; infelizmente um passeio de barco com sua família acabou levando a um acidente, que apesar de não fatal, levou o autor a desenvolver um caso grave de tuberculose no final de 1947. Apesar de apoio até mesmo do então ministro da saúde da Inglaterra para aquisição de um remédio experimental, seu caso levaria mais tarde a sua morte. Terminando o manuscrito de 1984 em dezembro de 1948, teve de ser internado no ano seguinte, em uma pequena vila com o nome de Cranham. Mesmo internado e impossibilitado de se movimentar sozinho, Orwell ainda se casou com Sonia Brownell, que serviu inclusive de inspiração direta para uma das protagonistas de 1984.

Em junho de 1949, 1984 foi publicado já como um sucesso entre os críticos, tratando de uma distopia onde o mundo foi dominado por três grandes superpotências, onde o protagonista Winston Smith, incapacitado da tarefa de alterar os registros históricos de acordo com a vontade do “partido” e eliminar qualquer registro verdadeiro remanescente, vivendo sob a vigilância constante da figura ambígua do “Big-Brother” que, supostamente, lidera o superestado de Britania composto pela junção da Inglaterra com os continentes americanos, ou pelo menos é isso que diz o partido. A trama é uma suma do trabalho de sua vida, explorando o poder da propaganda, e o alcance do domínio estatal sobre a vida dos indivíduos que o compõem, alterando os fatos, colocando a população em uma condição de medo constante através de uma guerra sem fim com um adversário, que apesar de mudar frequentemente, é sempre tido como o mesmo.

No dia 21 de janeiro em 1950, o autor veio a óbito devido à sua doença, deixando uma última mensagem em entrevista à BBC, onde diz imaginar que um estado totalitário como o descrito em sua obra provavelmente nunca virá a acontecer, é todavia, inevitável que nossa sociedade se dirija cada vez mais a algo muito similar ao totalitarismo inconsequente as emoções humanas. Hoje vemos a distopia de Orwell se materializar através dos mecanismos de Inteligência Artificial, de maneira oposta ao descrito pelo autor, utilizando de base não apenas do medo, mas do prazer.

Seu início de carreira pelo jornalismo, em grande parte, se limitou a trabalhos literários, enquanto seus livros continham o cerne de sua posição política. Com o tempo, porém, em específico com as guerras das quais buscava avidamente participar, seu envolvimento com o jornalismo, assim como seus trabalhos de ficção, foram se tornando cada vez mais políticos. Como fica claro em seu artigo “Why I Write”: “The Spanish War and other events in 1936-37 turned the scale and thereafter I knew where I stood. Every line of serious work that I have written since 1936 has been written, directly or indirectly, against totalitarianism and for democratic socialism, as I understand it”.

Nunca saberemos que outras histórias poderiam surgir de sua genialidade, é certo, que seu legado não deixou a desejar, e considerando que em seu artigo autobiográfico, ser lembrado era sem dúvida uma de suas motivações, com certeza a mesma de tantos outros autores, o que o diferencia, no entanto, é a sua coragem de admiti-lo, somada ao desprendimento com sua própria pessoa. Em seus últimos dias enquanto formulava sua herança inclui um pedido para que não escrevessem qualquer forma de biografias sobre si. E por pura ironia seu nome foi logo eternizado por um de seus primeiros biógrafos, Prof. Sir. Bernard Crick, que usou do dinheiro arrecadado com a obra para criar a instituição de apoio a jovens escritores: The Orwell Foundation.

*Hugo S. de Oliveira é graduando em jornalismo na Unesp.

 

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