Lázaro, o lazarento

Rosto de Senwosret III, ca. 1878-1840 ac
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por THIAGO BLOSS DE ARAÚJO*

O espetáculo midiático em torno de sua caçada e de sua morte revela a sua origem: a identificação. Uma identificação que é insuportável

Nas últimas semanas o Brasil foi afligido por um serial killer, que ao calar da noite se movia sorrateiramente, destruía famílias e ameaçava a ordem. Ele causou medo, ao espalhar a morte entre a comunidade pacífica.

Esse serial killer sou eu, você, seu vizinho, alguns jogadores de futebol e o presidente da República. São todos aqueles que, ao calar da noite, foram encontrados em festas clandestinas ou, em plena luz do dia, aglomeravam de forma desnecessária em plena pandemia. Foram todos aqueles responsáveis por espalhar um vírus de forma sorrateira, irresponsável, contribuindo com as mais de 500 mil mortes por covid-19. Todos nós, sem exceção, acordamos um dia com a triste notícia do falecimento de alguém querido no dia anterior.

Lázaro é um sujeito que enraíza um adjetivo, “larazento”, cujo significado no dicionário, dentre tantos, é “insuportável”. O espetáculo midiático em torno de sua caçada e de sua morte – que envolveu quase três centenas de policiais – revela a sua origem: a identificação. Uma identificação que é insuportável.

O tal serial killer do Distrito Federal, cujo extermínio foi desejado por todo o país, representa o infamiliar, aquilo que para Freud nos é extremamente estranho, distante, insuportável e, ao mesmo tempo, próximo e familiar. Em seus atos brutais, repetidamente explorados pelos veículos de comunicação, ele dá contornos à nossa própria brutalidade.

Imagine se Lázaro não fosse assassinado e, logo após a sua prisão, concedesse uma entrevista ao Fantástico. Imagine se ele dissesse, em rede nacional, que o certo “era metralhar a população de Goiás”, que “não estuprou uma mulher porque ela não merecia”, que não liga para as pessoas que matou, pois “não é coveiro” ou que se pudesse “teria matado 30 mil pessoas”, coisa que a ditadura militar não fez. Certamente nos teria causado ojeriza. Uma ojeriza pela identificação.

A construção midiática de um serial killer cumpre uma função social específica, ao personificar o mal-estar que atualmente nos é tão normal, familiar e insuportável. A cobertura televisiva de um corpo alvejado por 40 tiros, sendo escorraçado em uma ambulância tal como um objeto descartável, encena como algo distante e alheio as tantas mortes evitáveis que foram enterradas às pressas em valas comuns, como objetos perigosos, da qual somos responsáveis direta ou indiretamente. Por outro lado, aquela cena nos lembra aquilo que podemos nos tornar (ou já nos tornamos): descartáveis.

Deste modo, a morte de Lázaro, o lazarento, o insuportável, trouxe-nos uma segurança denegada, por dar contornos pessoais de raça, classe e regionalidade à nossa violência social difusa e familiar, jogando-a para um lugar distante, no meio do mato de Goiás, na infamiliaridade de uma figura imaginária produzida pela indústria cultural. Com o desfecho de sua morte, até nos esquecemos que existe pandemia no país, que temos um presidente genocida e que Lázaro servia aos interesses do poder econômico dos latifundiários do Centro-Oeste, todos responsáveis por mortes silenciadas no país.

Por isso, não é de se estranhar que mal os rojões silenciaram e muitos já esqueceram o motivo da comemoração.

*Thiago Bloss de Araújo é doutorando na Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da UNIFESP.

 

 

 

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

MAIS AUTORES

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Renato Dagnino Rafael R. Ioris Ricardo Abramovay Andrés del Río Michael Roberts Michael Löwy Jorge Branco Benicio Viero Schmidt Carlos Tautz Eduardo Borges Chico Whitaker Paulo Capel Narvai Eugênio Trivinho Bruno Fabricio Alcebino da Silva Tarso Genro Eleutério F. S. Prado Boaventura de Sousa Santos Everaldo de Oliveira Andrade Érico Andrade Eleonora Albano Valerio Arcary Francisco Pereira de Farias Luciano Nascimento Marcus Ianoni Dennis Oliveira Ronald Rocha Matheus Silveira de Souza Henry Burnett Eliziário Andrade Antonino Infranca Ricardo Antunes Alexandre de Lima Castro Tranjan Carla Teixeira Priscila Figueiredo João Carlos Loebens Manchetômetro Vladimir Safatle João Carlos Salles Bruno Machado João Feres Júnior Michel Goulart da Silva Alexandre Aragão de Albuquerque Ronald León Núñez Andrew Korybko João Adolfo Hansen Salem Nasser Remy José Fontana Daniel Brazil Celso Frederico Francisco Fernandes Ladeira Ronaldo Tadeu de Souza Jorge Luiz Souto Maior José Micaelson Lacerda Morais Plínio de Arruda Sampaio Jr. Rodrigo de Faria Alexandre de Freitas Barbosa Henri Acselrad Daniel Costa Claudio Katz Sergio Amadeu da Silveira Chico Alencar Paulo Sérgio Pinheiro João Sette Whitaker Ferreira Ari Marcelo Solon José Luís Fiori Valerio Arcary Luiz Eduardo Soares Jean Pierre Chauvin Caio Bugiato André Singer José Geraldo Couto Ricardo Musse Maria Rita Kehl André Márcio Neves Soares Gerson Almeida Luiz Bernardo Pericás Walnice Nogueira Galvão Eugênio Bucci Milton Pinheiro Mário Maestri Afrânio Catani José Raimundo Trindade Leonardo Sacramento Marjorie C. Marona Igor Felippe Santos Paulo Martins Atilio A. Boron João Paulo Ayub Fonseca José Dirceu Tadeu Valadares Anselm Jappe Ricardo Fabbrini Liszt Vieira Marilena Chauí Lucas Fiaschetti Estevez Ladislau Dowbor Julian Rodrigues Vinício Carrilho Martinez Antonio Martins Leda Maria Paulani Leonardo Boff José Machado Moita Neto Armando Boito Leonardo Avritzer Thomas Piketty Heraldo Campos Otaviano Helene Airton Paschoa Flávio Aguiar Annateresa Fabris Marcos Silva Marcelo Guimarães Lima Osvaldo Coggiola Flávio R. Kothe Juarez Guimarães Daniel Afonso da Silva João Lanari Bo Fernão Pessoa Ramos Samuel Kilsztajn Fernando Nogueira da Costa Antônio Sales Rios Neto Luiz Marques Kátia Gerab Baggio Luiz Renato Martins José Costa Júnior Rubens Pinto Lyra Elias Jabbour Manuel Domingos Neto Luiz Carlos Bresser-Pereira Bento Prado Jr. Marcos Aurélio da Silva Gilberto Lopes Jean Marc Von Der Weid Lorenzo Vitral Paulo Nogueira Batista Jr Vanderlei Tenório Gabriel Cohn Luis Felipe Miguel Luís Fernando Vitagliano Slavoj Žižek Luiz Werneck Vianna Dênis de Moraes Marcelo Módolo Celso Favaretto Yuri Martins-Fontes Sandra Bitencourt Tales Ab'Sáber Marilia Pacheco Fiorillo Mariarosaria Fabris Luiz Roberto Alves Berenice Bento Paulo Fernandes Silveira Fábio Konder Comparato Bernardo Ricupero Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Gilberto Maringoni Lincoln Secco Francisco de Oliveira Barros Júnior Denilson Cordeiro Alysson Leandro Mascaro

NOVAS PUBLICAÇÕES