Inteligência artificial (de)generativa

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Por RICARDO ANTUNES*

Sabemos que a tecnologia foi resultado da inventividade humana. Com o advento do capitalismo, a tecnologia foi se metamorfoseando e adequando ao modus operandi do capital. Toda “inovação” é para de fato valorizar mais e, assim, acumular muito mais!

1.

A era da expansão dos algoritmos e da Inteligência artificial, qualquer previsão sobre o futuro do trabalho corre o risco de ser mais um embuste. Impulsionada pela financeirização do capital, a Inteligência artificial é explícita em seu objetivo: transferir para as máquinas inteligentes tudo que hoje é realizado pelo trabalho humano.

Alguém poderia dizer: mas isso não é bom? Não teremos trabalhos mais qualificados, mais “criativos”, vivenciando um mundo laborativo mais humano e mais tempo de vida?

A resposta está nas atividades que se expandem nas sombras da Inteligência artificial, com seus microtrabalhos ultraprecarizados, especialmente (mas não só) no Sul global. Realizando jornadas ilimitadas, excluídos de todos os direitos do trabalho, recebendo níveis de remuneração indigentes, de modo a gerar informações para a Inteligência artificial. E quem encontra trabalho nas startups está experimentando uma “invenção” chinesa (o S-996): jornadas das 9 da manhã às 9 da noite, 6 dias de trabalho, totalizando 72 horas semanais. Eis os novos experimentos que se expandem neste “admirável mundo do trabalho” na era da Inteligência artificial.

A síntese é límpida: eliminação de “trabalho vivo”, em uma gama enorme de atividades, substituídos pelo “trabalho morto”, como se vê na ciberindústria. Mas, atenção, há luz no fim do túnel para os descartáveis e os supérfluos: sobreviver por meio do trabalho uberizado, que se expande globalmente nas plataformas digitais.

Plataformas que se utilizam do mito do “empreendedorismo” visando proletarizar ao limite, mas se recusando a reconhecer a condição de assalariamento; impondo, através do “comando invisível dos algorítmicos”, jornadas prolongadas, além de vedar peremptoriamente qualquer forma de proteção do trabalho. Tendência que defini, em O privilégio da servidão, como “nova era de escravidão digital” (Boitempo, 2020). E que os CEOs, esses novos predadores digitais, consideram como sendo “moderna”.

Um aparente paradoxo aflora, e um novo espectro se avizinha: com a expansão acelerada da Inteligência artificial generativa, sem controle e sem regulamentação, estamos presenciando, em plena era digital, a retomada de modalidades pretéritas de trabalho, pautadas pela trípode exploração, expropriação e espoliação, vigente no início da Revolução Industrial.

O crowdsourcing, hoje, é uma variante digital e algorítmica do velho outsourcing, no qual homens, mulheres e crianças trabalhavam à margem da legislação protetora do trabalho, com jornadas ilimitadas e condições de trabalho desumanas.[i]

Estamos, então, frente à Inteligência artificial generativa? Ou adentramos perigosamente na fase da Inteligência artificial degenerativa, concebida e plasmada pelo sistema de metabolismo antissocial do capital?

Sabemos que a tecnologia foi, desde sua gênese, resultado da inventividade humana, que nasceu com o primeiro microcosmo familiar. Com o advento do capitalismo, a tecnologia foi se metamorfoseando e adequando ao modus operandi do capital. Toda “inovação” é para de fato valorizar mais e, assim, acumular muito mais!

Podemos assim vaticinar o resultado em relação ao trabalho: um novo espectro ronda o mundo do trabalho, o espectro da uberização. Mas erra quem pensa que não há resistência.

2.

Foi durante a campanha eleitoral de 2024 que nasceu o movimento VAT [Vida Além do Trabalho], contra a jornada 6X1, contemplando dimensões centrais da vida cotidiana, que resumo a seguir:

(i) a redução da jornada de trabalho se configura como uma ação central da classe trabalhadora para minimizar a lógica destrutiva do capital, uma vez que acarreta, de imediato, a redução do desemprego; (ii) constituiu-se em antídoto real à exploração, tanto absoluta como relativa do trabalho, como no início da Revolução Industrial (com o ludismo).

(iii) Opõe-se, em alguma medida, ao despotismo fabril das eras taylorista/fordista e toyotista e, hoje, ao trabalho uberizado. Vale recordar o excepcional breque dos apps, de 31 de março e 1 de abril (dia da mentira) de 2025, contra o despotismo algorítmico, mais invisível, mais interiorizado, que invade sorrateiramente nossa vida e nosso trabalho.

(iv) lutar contra o 6×1 possibilita também vislumbrar outro ponto crucial: uma vida desprovida de sentido no trabalho é incompatível com uma vida cheia de sentido fora do trabalho,[ii] (v) o que nos leva a sonhar com o fim das barreiras entre tempo de trabalho e tempo livre e, ancorados em outra forma radicalmente distinta de Inteligência artificial, vislumbrar uma nova sociabilidade emancipada, autodeterminada, com indivíduos livremente associados, fora dos constrangimentos do capital.

(vi) Por fim, ao lutar pela redução da jornada, poderemos indagar: produzir o quê? E para quem?

Assim, o mundo do trabalho se entrelaça, decisivamente, com outro imperativo crucial de nosso tempo: impedir a destruição da natureza, como nossos povos originários nos ensinaram.

*Ricardo Antunes é professor titular de sociologia na Unicamp. Autor, entre outros livros, de O capitalismo pandêmico (Boitempo).

Publicado originalmente no Jornal da Unicamp.

Notas


[i] Ver Icebergs à Deriva: o trabalho nas plataformas digitais, (Antunes, R., Organizador, Boitempo, 2023) e Uberização, Trabalho Digital e Indústria 4.0 (Antunes, R., Organizador Boitempo).

[ii] Ver Os Sentidos do Trabalho, edição especial de 25 anos (Boitempo, 2025), particularmente o capítulo X.

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