Amarelo manga

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Por CILAINE ALVES CUNHA*

Comentário sobre o filme dirigido por Cláudio Assis.

1.

No filme Amarelo manga, de Cláudio Assis, a figuração das relações de poder entre os miseráveis desenvolve-se por meio de dois processos distintos. Numa primeira parte, relativa aos dois terços iniciais da história, privilegiam-se a descrição e a caracterização das personagens. Nessa longa sequência, interrompida com a morte de Bianor (Cosme Soares) e com a modificação no caráter de Kika (Dirá Paes), os quadros estáticos de definição de cada uma das personagens obedece a um andamento fragmentário e intercalado, de tal forma que elas vão sendo aos poucos apresentadas. Tal procedimento causa, na recepção, o efeito da lentidão, pois até aquela morte, a ação principal ainda não surgiu, e o filme ainda não disse a que veio. Na segunda parte narra-se a história propriamente, com a irrupção do conflito nuclear, relativo às mudanças na vida de Dunga (Matheus Nachtergaele) e Kika.

As curtas e entremeadas histórias de vida desenrolam-se no espaço coletivo, no bar Avenida, nas ruas da cidade e no Hotel Texas. A coletivização do espaço presta-se, analogamente à estética naturalista, à formulação de uma tese própria sobre as camadas mais pobres. Se, para Émile Zola ou Aluísio de Azevedo, o espaço coletivo refere-se, sobretudo, à vida dos trabalhadores, viciosamente e fatalmente corrompidos por razões historicamente intransponíveis, em Amarelo manga, o espaço público é ocupado por trabalhadores, pedreiros, açougueiros, vendedores etc., mas também por toda sorte de marginalizados, homossexuais, donas de casa, vendedores ambulantes, traficantes, ex-prostituta etc. Priorizando, ao lado dos trabalhadores, a vida sexual e social das minorias postas à margem da margem, o filme postula que a luta política não se trava apenas entre burgueses e proletários, mas também entre estes e o lumpemproletariado, assim como entre os gêneros, já que o sistema engole a todos. Trata-se de pensar que as minorias sexuais e o lumpemproletariado são também categorias sociológicas e sujeitos da história.

2.

Pode-se observar a conjugação de análise social e reflexão sobre as escolhas sexuais na composição dos três patriarcas do filme, Bianor, Wellington (Chico Diaz) e Isaac (Jonas Bloch). Após a morte do dono do hotel, o Padre, numa espécie de necrológico, afirma que ele morreu como nasceu, isto é, como um anônimo. Tendo em vista que a anonimização é um recurso que se presta a ampliar o nível micro para o macro, o particular para o geral, Bianor é o que é, um indivíduo que perdeu sua sexualidade, deslocando-a para a acumulação. A imagem do dinheiro guardado nos órgãos genitais configura o proprietário em geral como um indivíduo extremamente avaro, sordidamente apegado ao dinheiro.

Isaac e Wellington constituem-se como indivíduos, em certa medida, complementares. A contraposição entre um e outro fica por conta de suas distintas perversões sexuais. O traço típico que define Isaac concretiza-se de modo acentuado na cena em que pratica tiro ao cadáver. Nesse momento, a expressão de gozo enquanto alveja o morto encena a própria atividade sexual do necrófilo. Em conjunto, a cena do hotel em que bate impiedosamente no ombro de Dunga, assim como aquela em que tenta se apossar de Lígia, à revelia dela, figura o desprezo do macho violentamente cruel que pela condição do homossexual, quer pelas minorias em geral.

Wellington é também um homem exageradamente deformado em sua masculinidade, servindo-se das mulheres como instrumento de satisfação de suas necessidades. Enquanto dialoga com Dunga, afirma que, apesar de “fraca na cama”, Kika, além de muito religiosa e virtuosa, teria por grande mérito a condição de dona de casa organizada e prestativa. Da perspectiva do marido, a religião funciona como instrumento de controle da sexualidade feminina, necessária a que ele possa mantê-la nos limites da vida doméstica, prestando-lhe serviços em tempo integral. Não por acaso, um dos únicos momentos em que o casal partilha o espaço doméstico é o do almoço. Wellington realiza, assim, um tipo de especialização das tarefas femininas: se Kika é seu objeto de mesa, Dayse o é de cama.

No final do século XIX, a metáfora da carne e do corpo foi exaustivamente explorada para enfatizar a presença dominante da fisiologia na vida dos indivíduos, mas também para constituir, tal como no cortiço de Aluísio de Azevedo, o espaço coletivo como um organismo em que a massa de trabalhadores nasce, cresce e prolifera como vermes que apodrecem a carne de dentro, isto é, o organismo social.[i] Em Amarelo Manga, a imagem da carne refere-se predominantemente a Wellington, sempre às voltas com um pedaço e, em geral, sujo de sangue. Ao lado disso, na recorrente presença do machado que traz à mão inscreve-se o próprio corte da sexualidade alheia pelo canibal que devora as suas mulheres.

Wellington e Isaac distanciam-se, no entanto, pelos distintos tipos de ocupação. Enquanto este desempenha uma atividade posta à margem da vida dita economicamente produtiva, o outro se encontra formalmente inserido no mercado de trabalho. Em conjunto, essas duas personagens condensam a tese do filme a respeito da modernização econômica. Seja o trabalhador do mercado de trabalho formal, seja o que se insurge contra ele, incorrendo na ilegalidade, o proletariado e o lupemproletariado reproduzem os mecanismos de controle do sistema, encarnando a mentalidade do patriarca e assumindo a tarefa de repressão das minorias.

Não se trata, assim, de um filme regionalista limitado à representação, em chave realista, da vida dos marginais de Recife, nem tampouco do patriarca do Nordeste, conforme parte da crítica quis enquadrar à época do lançamento do filme. Tal como em qualquer país periférico do Ocidente, a consciência dos traficantes e a dos trabalhadores foi integrada e passou a reproduzir os valores e a cultura própria do sistema moderno de acumulação de mercadorias.

Equiparando moralmente a consciência de um e outro, o filme aponta a perda de sua força revolucionária, substituída pela ação racionalmente dirigida a fins. Analogamente à figura emblemática do proprietário Bianor, que instrumentaliza a mão-de-obra do trabalhador em favor da satisfação de seus interesses econômicos, Wellington e Isaac racionalizam a sexualidade da mulher em favor da satisfação de seus próprios interesses e desejos, mantendo a dominação e reproduzindo a exploração. Com isso, o patriarca, seja ele o proprietário, o operário ou o traficante, torna-se figura universal, elo ativo do sistema econômico moderno.

Uma das figuras mais positivas do filme, Dunga é um trabalhador dedicado responsável por todas as tarefas do hotel: cozinha, serve e tira a mesa, varre e atende às solicitações dos hóspedes. Esse traço de sua personalidade se enfraquece, no entanto, diante de suas preferências sexuais. Em O cortiço, de Aluísio de Azevedo, Botelho, o agregado do comendador Miranda, configura-se como um tipo vicioso, entre outros fatores devido à sua condição de homossexual.

Reparando os preconceitos do Oitocentos brasileiro, a perversão de Dunga é de outra ordem. Na cena em que prepara a carne para o almoço, seu monólogo expressa o equívoco de sua escolha sexual. Nesse momento, traça estratégias para conquistar Wellington e separá-lo de suas duas mulheres. Desdenhando suas rivais, afirma que enquanto Kika não passa de uma sonsa que se finge de santa para se dar bem na vida, Dayse seria uma viciada em “macho casado”. Feito isso, acaba por analisar sua própria interioridade. No balanço de Dunga, o “vício” ou sua atração por machos da estirpe de Wellington transforma-se, aparentemente, em neurose, já que este tipo de objeto amoroso é no mínimo paradoxal.

Tendo em vista que, ao menos teoricamente, o macho tende a refugar o homossexual e a estabelecer relação meramente utilitária com a mulher, Dunga está no mínimo procurando sarna para se coçar. Assim, seu vício não é um vício, propriamente falando, mas um erro de estratégia. Na história da luta de poder entre os gêneros e pela liberdade de escolha sexual, ele se deixa atrair por quem, em tese, se constitui como um de seus antagonistas, elegendo por adversária a mulher que, também em tese, seria sua maior aliada. Por outro lado, na oposição entre, de um lado, os dois machos, e de outro, o homossexual e a mulher, emerge outra tese de Amarelo manga segundo a qual, na vida contemporânea, a heterossexualidade masculina é forma de dominação.

Diferentemente da analogia que preside a construção de Isaac e Wellington, Kika e Lígia (Leona Cavalli) compõem-se também como figuras simetricamente opostas. Ao contrário de Lígia, a abstinência sexual da primeira delas é inconscientemente produzida, o que a configura como uma histérica que tem na religião um forte e ambíguo instrumento de autorrepressão. Protege a sua própria sexualidade das investidas do outro, mas também de si mesma, isto é, contra a livre pulsão de seus próprios desejos, na fórmula emitida por um cidadão anônimo (Cláudio Assis) de Recife, dizendo que “o pudor é a forma mais inteligente de perversão”.

Na exagerada cena em que Kika começa a vomitar diante da carne que prepara, a repugnância é indicativa do violento recalque sexual. Em diálogo com o marido, ela formula uma irracional hierarquia de valores, revelando indulgência com o assassinato, mas intransigência com o adultério. Na desproporcional comparação, o sexo emerge como critério central do juízo moral, o que reafirma sua repulsa pela vida sexual.

Ao lado de Dunga, Lígia é uma das figuras mais positivas e singulares do filme. Os critérios motivadores de retrato são tanto de ordem funcional, referente à significação da história quanto, técnica. De um lado, sua positividade brota da contraposição entre ela e o outro proprietário do filme. Diferentemente deste, Lígia, juntamente com seus funcionários, também atende aos fregueses, rompendo com a figura do comerciante que se dobra ininterruptamente sobre o caixa. De outro, ela se liga aos demais personagens também pelo fator sexual, constituindo-se tendo em vista a sua condição de mulher oprimida pelo assédio dos clientes.

Reagindo à prévia determinação de sua sexualidade por sua condição de mulher, ela imperativamente resiste a se tornar instrumento de satisfação do macho, apelando estoicamente para sua força natural, física e interior. Ao contrário de Kika, a abstinência sexual de Lígia decorre de uma escolha, fruto de uma reação adversa à sujeição, motivada pela ideia de que a vida sexual deve ser praticada como troca amorosa. Na cena em que luta com Isaac, este, analisando sua determinação, acusa-a de ter “ideias”, justapondo ebriamente ao termo a expressão “barro”. Alegando a origem comum do barro, Isaac pretende desqualificar a razão que rege as motivações da ação de Lígia. Por outro lado, na economia interna do filme, a ela cabe fechar a história tal como abriu, contribuindo também para totalizar a significação do filme.

Analogamente a Dunga e Lígia, outra figura curiosa do filme, a meio passo entre a tipificação e a singularização, é o Padre (Jones Melo). De um lado, ele está composto de acordo com os tipos religiosos anárquicos do século XIX, metaforizando a decadência dos valores e da instituição católica. Com efeito, a opção pelo ócio e pelo fechamento da igreja indica que esta já perdeu sentido na vida dos miseráveis. Analisando discursivamente a perda de função da instituição no interior das camadas pobres, o Padre também acredita que a igreja se constitui como um espaço voltado para ostentação. Obviamente que, na vida em que tudo falta, a prática social ostentatória não tem muito lugar. Mas essa análise, formulada por um indivíduo de sua condição, acaba por transformá-lo num religioso cinicamente pragmático que toma os fieis por clientes, limitando-os, no mínimo, aos membros da classe média.

Tampouco compactua com a crença humanista no poder da razão para superar a barbárie, conformando essencialmente o ser humano pelo egoísmo, pelo orgulho e pela soberba. Nesse sentido, não há missão, nem utopia alguma de salvação para quem deseroiciza a razão e incorre em niilismo. Sua singularidade reside, assim, em sua constituição como um agente de transmissão da maioria das motivações filosóficas do filme, responsável ainda por indicar aqui e ali os elementos de compreensão das metáforas da história. Vale dizer que o Padre extrapola o tipo ao se constituir como a consciência reflexiva do filme.

Um de seus monólogos expressa o critério adotado para definir o caráter das personagens: “O ser humano, hem! O ser humano é estômago e sexo. E tem diante de si uma condenação. Terá obrigatoriamente de ser livre. Mas ele mata e se mata com medo de viver”. Schopenhaueriana por excelência, a frase constitui negativamente o desejo, entendendo que sua livre realização, sem obstáculo algum, leva a uma equivalência entre o homem e a fera.[ii]

Se assim o é no plano físico, na esfera moral isso implica que não há, como queria Kant, uma disposição moral, nem uma ética imperativa que possa reger as ações humanas: “O egoísmo, de acordo com sua natureza, é sem limites: o homem quer conservar incondicionalmente a sua existência, a quer incondicionalmente livre da dor à qual também pertence toda a penúria e privação, quer a maior soma possível de bem-estar, quer todo o gozo de que é capaz e procura , ainda, desenvolver em si outras aptidões de gozo. Tudo o que se opõe ao esforço de seu egoísmo excita sua má-vontade, ira e ódio: procurará aniquilá-lo como a seu inimigo. Quer, o quanto possível, desfrutar tudo, quer tudo”.[iii]

Condenado a ter as suas ações motivadas essencialmente pela Vontade, como “coisa em si”, o ser humano organiza a vida como uma guerra permanente, quer entre seus próprios desejos, quer com os de seu semelhante.

Assim, o princípio segundo o qual as ações humanas são essencialmente regidas pelo impulso de preservação da vida e pela sexualidade determina, na primeira parte do filme, as recorrentes imagens de sexo e de comida, em boa parte casuais, desligadas da ação principal.[iv] Nesse segmento do filme, a apresentação da rotina no Hotel Texas enfatiza a preparação e a realização das duas refeições principais. No intervalo entre uma e outra, as personagens vão ganhando vida. Para tanto, o filme recorre também a um procedimento comum ao realismo-naturalismo do Oitocentos, em que seus traços característicos não brotam do interior das figuras, mas se caracterizam por meio de ideias e teorias externas à história.

Ao encarnar alguma tese autoral, a personagem acaba se transformando em títere. Zola, por exemplo, em Thérèse Raquin, procurou analisar os seus dois protagonistas a partir de um estudo dos temperamentos, entendendo que sua constituição como nervosa ou sanguínea resultaria em grande medida da hereditariedade. Não obstante, o temperamento e as perversões podem também ser socialmente desencadeados, ativadas pela cultura burguesa e pela grande fissura interior do indivíduo num mundo social e economicamente problemático.[v]

Outro fator que favorece a automatização da figura humana encontra-se no objetivo maior dessa estética, voltado para descrever objetivamente o mundo social levando em conta supostas categorias científicas. Nesse procedimento, o meio social hipertrofia-se, a ponto de a personagem se tornar resultado de fatores sociais e naturais que aí imperam. Em outra consequência dessa exagerada ênfase conferida ao mundo objetivo, a exploração das relações entre os conflitos individuais e os sociais tende a ser posta em segundo plano.

Amarelo manga, por sua vez, substitui a psicofisiologia pela psicanálise, pressupondo que o recôndito das neuroses sexuais é traço marcante dos indivíduos, conformando o mundo dos costumes e o ritmo prosaico de suas vidas. Mas ao lado disso, observa-se também uma hierarquização no filme das figuras humanas. Analogamente ao realismo-naturalismo do século XIX, Isaac, Wellington e Kika compõem-se negativamente em tipos, definidos por categorias sociológicas e por neuroses sexuais. Ao lado do Padre, que possui também uma função meta-cinematográfica, Dunga e Lígia agrupam-se positivamente, ganhando certa autonomia de princípios teóricos e conquistando uma maior individualização.

Nesses dois últimos casos, a perspectiva sociológica simpática à condição das minorias pobres acaba favorecendo a sua humanização, o que leva seus conflitos interiores a se sobressaírem com maior evidência. Com isso, o filme corrige aquela distorção do realismo-naturalismo, em que a suposta neutralidade acaba enfraquecendo a problematização das contradições sociais. Ao manejar politicamente a despersonalização de certos seres humanos, o filme evita ainda equiparar indivíduos essencialmente antagônicos.

3.

Na cena inicial do filme, Lígia levanta-se da cama e se prepara para mais um dia de trabalho. Anexado ao bar, o quarto é visto de cima, com a cama ocupando toda a largura do espaço. O plano do quarto estreito cria uma ambiência claustrofóbica, homóloga ao estado interior da personagem. Nesse momento, seu monólogo testemunha o tédio com a rotina diária do trabalho, além de antecipar o modelo de narrativa a que o filme recorre: “Às vezes eu fico imaginando como as coisas acontecem. Primeiro vem o dia. Tudo acontece naquele dia. Até chegar a noite, que é a melhor parte. Mas logo depois vem o dia de novo, e vai, e vai, e vai… E é sem parar. A única coisa que não tem mudado é o Santa Cruz que nunca mais pegou nada, mas nem título de honra. E eu não ter encontrado alguém que me mereça. Só se ama errado”.

O monólogo condensa uma dupla reflexão, dirigida quer a uma busca de compreensão do sentido da vida diária, quer ao modo pelo qual os acontecimentos do dia-a-dia dos miseráveis podem ser recortados, combinados e organizados em uma sequência coerente. A frase “Tudo acontece naquele dia” remete, de um lado, aos percalços a que uma dona de bar está sujeita no trato com seus clientes. Mas se refere também ao modelo de trama que tem na emergência do inesperado, à maneira de tragédias, seu traço maior.

Paradoxalmente, no entanto, a imagem da sucessão intermitente da rotina do trabalho pressupõe o documento realista, projetando a ideia de uma narrativa que pretende apenas registrar esse cotidiano. Com efeito, após esse monólogo inicial, a sequência de imagens relativas ao mundo do trabalho – focalizando máquinas em movimento, carregadores de feira-livre, pedreiros etc –, encerra-se com Dunga varrendo o hotel. Marcando o início da jornada diária, a sequência que vai do quarto de Lígia ao Hotel confirma a notação realista.

Não obstante, a partir da segunda parte do filme e após a morte de Bianor, o paradoxo de Lígia, segundo o qual a rotina diária do trabalho caracteriza-se também pela emergência do imprevisível, se esclarece, quando a notação realista perde sua força. Com efeito, a morte de seu Bianor e o canibalismo praticado por Kika alteram bruscamente a rotina da vida e dos costumes, acarretando mudanças profundas na vida das mulheres, dos machos e do homossexual. Aí, a substituição do trivial pelo inesperado é decisiva para que se crie a expectativa de inversão dos papeis entre o ativo e o passivo, de um lado, e o explorador e o explorado, de outro.

Nesse momento, a análise da vida social e sexual das personagens é substituída pela busca de compreensão de sua incapacidade de reagir aos grilhões dos costumes e da rotina do trabalho sobre suas ações diárias. Feito isso, à utopia de uma revolução social segue-se o registro de sua frustração. Assim, se, na primeira parte, a apresentação das personagens funciona como móvel da narrativa, o andamento das sequências da segunda parte é fornecido pela peripécia, que forja a leitura política dos desatinos no modo de ação dos marginalizados. Tendo em vista esse propósito, o filme realiza, em sua totalidade, uma fusão entre documento realista e a tragicomédia, construindo-se, à maneira das narrativas naturalistas, como um misto de documento e ficção, assim como pelo predomínio da reflexão sobre a ficção.

Entre os fatores que limitam a consciência política dos pobres, Amarelo manga destaca a leitura equivocada de Dunga a respeito das relações de poder, sejam elas de ordem política ou sexual. Ao longo da história, o único momento em que ele suspende a sua pronta capacidade de ação e de decisão ocorre quando descobre seu Bianor morto. Nessa cena, sua paralisia não se deve a fatores de ordem afetiva, mas, sobretudo, à sua carência monetária.

Como ele, a impotência de dona Aurora para tomar as providências necessárias ao enterro deve-se também à sua privação de recursos financeiros. De posse do dinheiro do dono do hotel, eis que Dunga recupera sua conduta anterior tomando todas as decisões que o momento exige. Alegoria da absoluta inutilidade do proprietário no processo de execução dos serviços, a cena inverte a relação de dependência do trabalhador ao proprietário. Com a posse, pelo trabalhador, dos meios de produção, a figura do patrão torna-se dispensável.

Em certo momento, Dunga solicita ao Padre que o ajude a resolver sua condição de desempregado gerada pela recente morte. Diante disso, a reflexão do Padre assenta-se aparentemente em lugares-comuns da religião, carregando, não obstante, uma intensa conotação política: “Por que tudo na vida tem seu tempo. Olha, Deus fez a vida com esses mistérios, que é pra gente decifrar. Se você reparar bem, a morte de Bianor é um sinal, o sinal das mudanças que queremos. Hum! Ou então não significa nada, o que é mais provável”.

Confirmando os presságios do Padre, Dunga perde a oportunidade de reconhecer que a morte do proprietário do hotel e a posse de seu dinheiro geraram a oportunidade ímpar para que realize profundas mudanças nas relações de trabalho, podendo até mesmo resultar em apropriação do patrimônio. Durante o velório, sua cegueira reitera-se, mais uma vez, no momento em que Wellington, assustado com a violência de Kika, dirige-se ao hotel. O conflito que então se instala entre os dois trabalhadores, resultado das diferenças sexuais, torna-se emblemático da divisão entre aliados potenciais numa provável luta por interesses recíprocos e contra o inimigo comum. Nesse sentido, a capacidade de trabalho de Dunga é inversamente simétrica à sua impotência para refletir e realizar leituras políticas adequadas sejam elas de ordem sexual ou social. Tendo em vista a sua frustração final com Wellington, Dunga seguirá dirigindo sua pulsão amorosa ao objeto equivocado, além de seguir determinando os rumos de sua vida exclusivamente pela esfera sexual.

Analogamente, a transformação de Kika e a o rompimento com sua conduta religiosa alcançam colocar fora de combate, a um só tempo, os dois machos do filme. A cena de Wellington chorando feito bebê substitui sua postura ativa na vida da família para a de dependente afetivo da mulher. A partir de então, ela se torna também apta a submeter Isaac e a criar as condições para que os dois exerçam livremente as suas próprias fantasias sexuais reprimidas, para além de qualquer convenção acerca do “masculino” e “feminino”. Com isso, o filme desconstrói o macho, confirmando a sabedoria popular segundo a qual a exagerada afirmação da masculinidade funciona como uma proteção contra a emergência da feminilidade latente.

Mas como na metáfora da cor amarela com que pretende pintar o cabelo, também Kika deverá pautar sua vida apenas por motivações sexuais, sem traçar, conscientemente, como Lígia, um rumo próprio. A metáfora propõe ainda que ela não alcançará sua plena liberdade sexual, pois vai de um extremo a outro, realizando um movimento de apenas 360o. Ocupando o espaço antes reservado ao macho, alcançará apenas trocar o papel de dominada pelo de dominadora e reproduzirá, assim, as relações de dominação. Se a vida dos elementos representativos dessa camada social está sujeito a um fatalismo inevitável, capaz de impedir sua pronta reação contra a opressão, isso ocorre por que tudo está a depender de suas próprias escolhas.

Assim, na ótica do filme, os conflitos humanos originários da luta de poder poderiam ser revolvidos mediante a dupla revolução sexual e social. Mas, ao final, emerge a imagem do círculo como figura do retorno do mesmo. Com isso, de mero filme naturalista que configura a vida dos trabalhadores pelo fatalismo da fisiologia ou mesmo pela alienação como emblemas da impossibilidade de mudar a ordem das coisas, Amarelo manga apresenta uma leitura lúcida da incapacidade reativa dos marginalizados.

Além dos equívocos de ordem amorosa e sexual, outro fator que anula a resistência dos marginalizados pode ser conferido na cena dos figurantes que assistem TV, permanentemente, caracterizados também como tipos nordestinos, heróis pregressos do regionalismo. Como, no entanto, o gesto de assistir TV não caracteriza o comportamento apenas do nordestino, a cena, aparentemente insignificante, conforma a tese de que, por enquanto, o poder de reação dos tipos locais está sob o controle da indústria cultural. Assim, ao invés de retratá-lo de modo idílico e pitoresco, a cena puxa o exótico para baixo, bestificado que está pelo controle midiático.

Mas o principal elemento responsável pelo embotamento da consciência dos marginalizados e, assim, por sua incapacidade de reação surge como força abstrata, abrindo e fechando a narrativa. Entre a antepenúltima cena, em que Lígia repete o monólogo, e a sequência final, em que Kika pinta o seu cabelo, reproduzem-se as imagens iniciais do mundo do trabalho e da vida cotidiana dos trabalhadores. Assim, o elo significativo entre a primeira e última parte da história, que lança uma luz sobre a precariedade da vida de cada um dos seres marginalizados, é a presença asfixiante do trabalho.

Na imagem do retorno circular do trabalho árduo, o sexo acaba funcionando como único refúgio. Configura-se, então, a tese central do ensaio-filme de Cláudio Assis. Articulando os conflitos individuais com as contradições sociais, Amarelo manga postula que o trabalho bestifica sexualmente os indivíduos, reduzindo-os à solidão e à vida animal. Circularmente, tendem a reproduzir, nas relações pessoais, o mesmo modelo das relações de trabalho, pautados por um jogo de forças assimétricas, baseadas na dominação do explorado pelo explorador.

Evitando, no entanto, compor esse quadro como um estado inelutável, a metáfora do “amarelo manga” não realiza apenas uma inversão do ouro edulcorado com que a arte oficial sempre caracterizou o país; tampouco resulta unicamente de uma crítica à estética glamourosa de certa tendência do cinema nacional que emergiu em fins de 1990 e transformou a miséria em cosmético para os olhos do mercado cinematográfico norte-americano. Trata-se, sobretudo, do amarelo “dos cabos das peixeiras, da enxada e da estrovenga. Do carro de boi, das cangas, dos chapéus envelhecidos, da charque.

Amarelo das doenças, das remelas dos olhos dos meninos, das feridas purulentas, dos escarros, das verminoses, das hepatites, das diarreias, dos dentes apodrecidos. Tempo interior amarelo féreo, desbotado, doente”. No excerto da crônica, “Tempo Amarelo”, de Renato Carneiro Campos, os instrumentos do trabalho condensam imagens de guerra e, simultaneamente, do sofrimento gerado pelo mundo da pobreza. Como feras embrutecidas pelo trabalho, a camada desprivilegiada transforma-se em uma feroz e latente força, dotando-se, como em campos minados, de um iminente potencial de explosão, o que marca uma postura crítica do filme contra a leitura sentimental da ação dessas figuras.

*Cilaine Alves Cunha é professora de literatura brasileira na FFLCH-USP. Autora, entre outros livros, de O belo e o disforme: Álvares de Azevedo e a ironia romântica (Edusp).

Referência


Amarelo manga
Brasil, 2003, 101 minutos
Direção: Cláudio Assis
Elenco: Dira Paes, Leona Cavalli, Jonas Bloch, Matheus Nachtergaele, Chico Díaz, Everaldo Pontes.

Notas


[i] BRAYNER, Sônia. A metáfora do corpo no romance naturalista. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1973.

[ii] Tendo escrito grande parte de sua obra entre os finais do século XVIII e início do XIX, o prestígio de Schopenhauer na cultura ocorreu apenas depois de 1850, num momento em que, com a consolidação da burguesia como classe dominante, a decepção com os ideais de libertação passa a imperar na cultura. Na obra de Émile Zola e no realismo-naturalismo, de um modo geral, seu pessimismo, assim como sua negação de que as faculdades humanas, de acordo com os idealistas alemães, poderia dar acesso ao conhecimento absoluto, para além da experiência, desemboca numa visão rebaixada do ser humano que o aproxima da esfera animal. Cf. ROGER, Alain. “Atualidade de Schopenhauer” in SCHOPENHAUER. Sobre o fundamento da moral. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. vii-lxvii.

[iii] SCHOPENHAUER. Dores do mundo. São Paulo: Edições e Publicações Brasil Editora, s/d, p. 114-115.

[iv] O mesmo princípio casual, desprovido de função no interior da fábula, rege a construção de Dona Aurora, figura meramente indicial, contribuindo apenas para ilustrar e reafirmar a presença dominante das pulsões primitivas na vida humana. De natureza mitológica, associada à origem do mundo em que impera a sexualidade, torna-se representante arquetípica da prostituta que, mãe de todos nós, oxigena a vida pela sacanagem. Sobre a sua construção, cf. a entrevista de Cláudio Assis, “Um olhar faca que cega”. Cinemais. Rio de Janeiro: Aeroplano, n. 35, jul/set de 20032003, p. 114.

[v] DELEUZE, Gilles. “Zola e a fissura”, em: A lógica do sentido. São Paulo, Perspectiva, 1974, p. 331.

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