Por LARA FERREIRA LORENZONI & MARCELO SIANO LIMA*
Reflexões sobre o terror da necropolítica brasileira
Existe pena de morte no Brasil? Formalmente, no plano prescritivo, não. Material e concretamente, depende: se o indivíduo tiver a cor errada no local e hora certos, sim. Não importa se a pessoa praticou ato violador da lei, se colocou em risco ou atentou contra a vida/integridade física de alguém. Se estava armado, desarmado, de pé, sentado, algemado e rendido. A questão não é sobre o que se faz: é sobre o que se é.
São muitos e variados “casos isolados” nesse sentido perpetrados pelo braço estatal responsável pela chamada segurança pública. Não são coincidências. Todos têm uma dimensão política e representam um projeto histórico, colonial e racista de poder, que passa necessariamente pelo extermínio de determinados grupos previamente desumanizados e considerados de vida indesejada, portanto, passíveis de aniquilamento, físico ou virtual. No contexto brasileiro, a população negra é o alvo número um desse massacre, que, ressaltamos, é parte de uma política não escrita de Estado, uma necropolítica.
E não se avente qualquer desvio de ordem mental, qualquer perversidade patológica dos executores. Há uma estrutura genocida de sociedade que ultrapassa a condição individual. Estamos todos nela inseridos. É o projeto de uma civilização calcada na barbárie em que apenas alguns, os escolhidos, merecem viver, enquanto outros inevitavelmente devem ser colocados no altar sacrificial do deus mercado.
Afinal, sabe-se: os recursos materiais são escassos, as benesses da modernidade não são para todos e os direitos e garantias fundamentais estão devidamente privatizados, embalados em plástico como produtos comercializáveis para quem pode pagar. Ao mesmo tempo em que se oferecem, negam-se, de forma cínica, a Constituição, as leis e todas as maravilhas, objetos mágicos e luzes de led do capitalismo para a grande massa dos excluídos.
Nessa conjuntura tétrica, execuções extrajuduciais e hiperencarceramento são, de fato, expedientes ordinários dos órgãos de segurança pública e dos operadores do direito. E isso é legitimado pela forma complacente com que se comporta parte considerável do corpo social. O extermínio não só é tolerado, mas desejado e enaltecido enquanto lenitivo para uma sociedade adoecida pelo medo, pelo ódio e pela vingança. Como já disse Eduardo Galeano, “não há valium que possa atenuar tanta ansiedade nem prozac capaz de apagar tanto tormento. A prisão e as balas são a terapia dos pobres”.
Ora, o que são algumas centenas de corpos humanos empilhados todos os dias nas ruas e nos campos? Apenas mais uma parte da paisagem. A letalidade de nossas polícias não é somente delas, e sim, de todos e todas envolvidos na arquitetura branca colonizadora, na medida em que a violência é elemento estruturante de nossa sociabilidade.
Ao Estado e suas agências de segurança compete, nesse teatro de horrores, o papel de verdugos imediatos, porém, o algoz igualmente nos habita, eis que a consumação do suplício é a manifestação final de uma lascívia sanguinária e coletiva latente. Sendo assim, é uma mortandade previamente respaldada. Por isso, em vez de letalidade policial, acreditamos ser mais precisa a expressão “letalidade social”. Ninguém aperta o gatilho sozinho, a câmara de gás está a céu aberto para a vista e regozijo de todos, nas palmas das mãos pelo feed do instagram ou como prato principal servido pelo noticiário televisivo da hora do almoço.
Na sociedade da guerra, sobre o “inimigo” recai, de forma cruel, sistemática e em proporções dignas de um industrialismo fordista, toda a pujança do Estado e de suas agências. Lei e morte são forças intimamente aliadas nesse espetáculo mórbido em que, atuando pelas vias fétidas do direito penal subterrâneo, pequenos soberanos armados decidem quem merece viver e quem deve morrer.
Somos uma sociedade, em termos civilizacionais, perdida? Bem, não cremos, mas afirmamos que somos, sim, uma sociedade que, por não assumir as profundas e graves diferenças e as cruéis características de sua formação, por não ter Memória, por se negar a reconhecer a brutalidade como elemento constituinte, se afasta do campo de reflexão e, portanto, da necessária inflexão: a ruptura com o ciclo de horror e a implementação da segurança dos direitos.
A banalização do mal precisa ser superada como paradigma da sociabilidade e das agências do Estado brasileiro. Para a concretização dessa redenção histórica, devemos aprofundar não só a compreensão da luta de classes como o motor de toda e qualquer transformação, mas também o racismo e o genocídio enquanto insígnias primordiais da formação social brasileira.
Reconhecer o outro como fim em si mesmo, com valor em si mesmo, colocá-lo na condição de sujeito, pautar a vida como pedra angular, a existência biológica e simbólica de todas, todos e todes. Esse é o primeiro passo em direção ao grande salto imaginativo nos paraquedas coloridos de um mundo de vida, igualdade e inclusão.
*Lara Ferreira Lorenzoni, advogada, é doutoranda em Direitos e Garantias Fundamentais pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV).
*Marcelo Siano Lima é doutorando em Direitos e Garantias Fundamentais pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV).
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