Por REBECA TRINDADE, IZABELA SIMAS & RENATO FRANCISQUINI*
Comentário e reflexões sobre o Projeto de Lei 2.630/20
Introdução
No ensaio “Verdade e Política”, Hannah Arendt[i] sustenta que a política é o campo da competição entre narrativas. O regime democrático é, por definição, uma forma de governo em que a validade das normas propaladas pelo Estado depende de seu reconhecimento por parte de cidadãos livre e iguais. A legitimidade do governo se assenta, em última instância, na “opinião” dos governados, titulares da soberania popular. A formação democrática da opinião pública constitui, portanto, fundamento essencial do regime democrático. Para que o processo deliberativo ocorra a contento, devem estar disponíveis ao público informações sobre os fatos e eventos e uma diversidade de opiniões e pontos de vista sobre os temas de interesse da sociedade.
O horizonte atual da comunicação política apresenta inúmeros desafios para a construção democrática da opinião pública e da vontade política. De um lado, temos a desigualdade de acesso aos meios de comunicação tradicionais, que marginaliza certos grupos sociais e ideias que não se coadunam ao status quo. De outro, após a emergência das redes e mídias sociais, assistimos à proliferação de discursos de ódio e à disseminação de notícias falsas e desinformação.
As inovações nas tecnologias da informação estenderam ao cidadão comum um papel mais relevante na coleta e na circulação de bens simbólicos, permitindo uma participação maior no processo da formação da opinião pública. Os cidadãos tornaram-se, dessa forma, disseminadores de informações e interpretações necessárias à instituição de julgamentos políticos (e outros). As transformações tecnológicas tiveram impactos significativos sobre o papel democrático da imprensa. Parte da literatura interpretou este processo como uma oportunidade para o fortalecimento da democracia, sobretudo no que toca à transparência dos atos das autoridades políticas e à pluralidade de pontos de vista. Os recursos multifuncionais e a alta capacidade de adquirir informações sem uma estrutura de mediação, reduziria os custos de participação e poderia mesmo ampliar a diversidade de perspectivas presentes na esfera pública.
Entretanto, nem tudo são flores no universo da comunicação mediada. Inúmeros episódios recentes foram marcados por denúncias envolvendo o compartilhamento em massa de mensagens com conteúdo desinformativo, manipulação de fatos e revisionismo histórico. Seja em processos eleitorais, como nos EUA (2016) e no Brasil (2019), seja na crise causada pela pandemia da COVID-19, o impacto do impulsionamento artificial de conteúdos é inegável. Suspeitas de crimes eleitorais envolvendo redes de disseminação de fake news foram e continuam sendo investigadas – sem haver, todavia, responsabilização civil ou consequências políticas mais graves.
Mentiras deliberadas
Segundo Recuero e Gruzd[ii], a esfera pública tem sido invadida por uma série de informações inautênticas, que têm o propósito explícito de intervir sobre a construção da opinião pública, favorecendo interesses comerciais e políticos. Diferentemente de interpretações equivocadas ou erros factuais, tais conteúdos apresentam um claro interesse em desinformar. Himma-Kadadas[iii] assinala que os grupos que se engajam na disseminação de mentiras deliberadas promovem uma espécie de guerra informativa, com estratégias e mecanismos próprios. A fim de distorcer a realidade e fortalecer determinadas alternativas políticas, os conteúdos se valem de uma narrativa jornalística e dos componentes estéticos de materiais noticiosos.
Em artigo de 2018 para o site da Bloomberg, David Biller[iv] sugeria que o contexto de forte polarização política, aliado à intensificação do uso das redes sociais como fonte privilegiada de informações, sinalizava que o pleito daquele ano no Brasil poderia ser impactado de forma definitiva pelo recurso às notícias falsas. Para além do que já fora conhecido no período eleitoral, há, hoje, indícios da atuação contínua de uma estrutura ligada à presidência da República para a disseminação de informações falsas e discursos de ódio, cujas redes de financiamento vêm sendo descortinadas pelas instituições de controle do Estado e da sociedade. As vítimas não são apenas políticos de oposição, como Fernando Haddad e Manuela D’ávila. A jornalista Patrícia Campos Mello, da Folha de São Paulo, e o influenciador digital, Felipe Neto, foram alvos recentes das redes ligadas ao grupo Bolsonaro.
O reconhecimento da gravidade da situação, com consequências nefastas para a democracia e as instituições, parece ter chegado, afinal, aos poderes Judiciário e Legislativo. O Supremo Tribunal Federal vem enfrentando o esforço de desconstruir a estrutura de disseminação em massa de informações falsas. Através do inquérito das fake news, aberto para investigar ameaças aos ministros do Tribunal, o STF determinou o bloqueio e a exclusão de contas identificadas com os ataques às instituições democráticas. O Congresso Nacional, por sua vez, no intuito debarrar a onda de conteúdos desinformativos, instalou uma CPI para investigar essas redes e vem discutindo medidas legais para regular a comunicação em redes sociais e por meio dos serviços de mensageria privada na internet.
Projeto de Lei das Fake News
O Projeto de Lei 2.630/20, de autoria do senador Alessandro Vieira (CIDADANIA/SE), pretende instituir a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet. Aprovado no Senado Federal, o projeto segue agora em tramitação na Câmara dos Deputados, sob relatoria do deputado Felipe Rigoni (PSB-ES). No intuito de prevenir que as redes sociais e serviços de compartilhamentos de mensagens sejam manipulados ou causem danos pessoais ou coletivos, os legisladores pretendem desencorajar a criação de contas inautênticas, disseminadores e redes de disseminação não rotuladas, bem como estabelecer a identificação de conteúdo patrocinado e/ou com alcance massivo.
A regulação incide, notadamente, sobre a distribuição em massa de conteúdo e as estratégias de impulsionamento artificial, cujos responsáveis deverão ser observados pelas empresas provedoras destes serviços. Em seu artigo 14, o projeto torna mandatória a declaração ao provedor quandoda utilização de disseminadores artificiais, cabendo às empresas a fiscalização e a exclusão das contas que não cumpram a norma. Embora não esteja explícito na proposta, o objetivo de tais regras parece ser o de identificar as cadeias de transmissão de informações falsas ou conteúdos que violem a lei.
No entanto, o projeto limita também de forma significativa o compartilhamento de conteúdo pelos próprios usuários. Em seu artigo 13, a proposta estabelece em 5 o número de usuários ou grupos para os quais uma conta poderá encaminhar mensagens (número que será reduzido a 1 em período eleitoral). Nesse mesmo sentido, determina-se que os destinatários de mensagens em massa autorizem o seu recebimento ou a inclusão em um grupo antes da entrega do conteúdo.
A regulação alcançaas contas de pessoa jurídica do poder público. Estas contas devem disponibilizar recursos para reportar desinformação, além de rotular conteúdos patrocinados. As publicações por parte de perfis oficiais deverão ser públicas. O Estado deve promover ainda a capacitação de seus servidores para o uso seguro desses recursos e criar campanhas educativas sobre a importância de combater a desinformação (Cap. III, arts. 19-24).
Boa parte da responsabilidade pelo controle e verificação dos conteúdos desinformativos deverá recair sobre as empresas que administram os aplicativos. Uma preocupação presente no PL volta-se, portanto, à transparência das ações realizadas por tais empresas. Aos provedores caberá disponibilizar, entre outras, informações sobre contas removidas, reclamações recebidas, número de contas inautênticas e disseminadores vedados, bem como a identidade dos patrocinadores de conteúdos. Devem também estar disponíveis dados sobre o engajamento e as interações relativas aos conteúdos que violem as leis. O artigo 7º, VIII, §1º determina que “os relatórios e dados disponibilizados devem apontar a relação entre disseminadores artificiais, contas e disseminação de conteúdos, de modo que seja possível a identificação de redes articuladas de disseminação de conteúdo”.
Liberdade de expressão, privacidade e regulação
Desde o início do processo deliberativo no Senado Federal, o PL foi objeto de inúmeras críticas.A produção de boas leis demanda tempo para o debate e apresentação de alternativas. Contudo, a urgência com que o tema se apresenta na esfera pública brasileira exige, ao mesmo tempo, agilidade na busca de soluções institucionais para lidar com as ameaças à democracia. As empresas, a sociedade civil organizada e especialistas de diversas áreas alertam para o risco que a proposta de regulação representa para valores e princípios constitucionais como o direito à privacidade e à livre expressão de ideias.
Em seu artigo 4, o projeto faz um esforço importante no sentido de definir termos controversos, como a ideia de desinformação, que serão objeto da legislação. A proposta procura ainda construir mecanismos que confiram transparência à atuação dos provedores e regula o uso de redes sociais pelos atores do poder público – carentes, hoje, de um controle mais efetivo, com consequências nefastas –, submetendo-os aos princípios da administração pública, impedindo-os, por exemplo, de restringir o acesso às suas publicações.
No entanto, há ainda inúmeras questões a serem revisitadas no processo de tramitação do na Câmara dos Deputados. A literatura que debate o alcance e os limites da liberdade de expressão possui uma forte presunção contra a regulação da livre expressão de ideias quando baseada no conteúdo do discurso. Essa preocupação se justifica pelo risco de que às instituições de controle seja facultada a exclusão de mensagens por discordarem do seu ponto de vista, exercendo um controle político sobre o debate público. Nesse aspecto, inquieta o espaço conferido pelo PL à discricionariedade nos instrumentos de moderação a serem constituídos pelas empresas. Ainda que o objetivo não seja explicitamente o controle do conteúdo, em determinadas circunstâncias, os provedores dos serviços regulados pela lei estão dispensados até mesmo de notificar os usuários sobre a exclusão de conteúdos (art. 12, § 2).
Ainda que o artigo 12 determine que os provedores de aplicação forneçam aos usuários a possibilidade de recorrer das decisões quanto à restrição de conteúdos,carecem de uma definição mais clara os requisitos para a apelação e como estas serão julgadas. O grande número de recursos e a complexidade dos critérios usados para definir as violações à legislação poderão dificultar a autorregulação e conferir um poder arbitrário às empresas responsáveis pelos aplicativos.
A fim de minimizar a possibilidade de arbítrio, o projeto institui uma espécie de regulação em duas etapas (ou uma autorregulação regulada). Além dos provedores, que exerceriam uma espécie de autorregulação, haveria ainda a criação de um Conselho de Transparência e Responsabilidade na Internet, instituído pelo Congresso Nacional com participação do Estado, das empresas e da sociedade civil. O Conselho seria responsável por acompanhar o cumprimento das medidas previstas na lei, tendo como atribuição “a realização de estudos, pareceres e recomendações sobre liberdade, responsabilidade e transparência na internet” (art. 25).
Em parecer, a conselheira federal da OAB, Sandra Krieger Gonçalves, afirma que este conselho teria propósito de “definir, inclusive e meritoriamente, o que é desinformação. Na essência, o que aparentemente é apenas um órgão consultivo parece criar, na verdade, uma agência reguladora da informação, o que é, de todo olhar, temerário para um Estado Democrático de Direito”[v]. A alternativa, para a conselheira, seria conferir ao Judiciário a prerrogativa de responsabilização civil dos disseminadores de notícias falsas.
A experiência, todavia, talvez não recomende conferir às cortes prerrogativa exclusiva sobre essa matéria. Os juízes não estão isentos de parcialidade, sobretudo ao julgar questões sensíveis relacionadas à livre expressão de ideias e o debate político. Ademais, em temas controversos, é de se esperar um profundo desacordo entre os magistrados na interpretação da lei. O Conselho, por certo, merece aperfeiçoamento e um debate mais aprofundado e detido poderia contribuir para isso. A multiplicação de mecanismos de regulação, que poderiam exercer um controle mútuo, e a constituição de critérios tão objetivos quanto o tema permite talvez representem caminho mais adequado ao problema da discricionariedade.
As críticas ao projeto lançam dúvidas ainda sobre o artigo 10, que trata sobre o armazenamento dos registros de mensagens encaminhadas em massa. A manutenção desses registros permitiria aos provedores e às autoridades rastrear a origem de conteúdos denunciados e, eventualmente, sancionar os usuários considerados responsáveis por sua disseminação. Além dos problemas técnicos envolvidos na estruturação desse sistema, a retenção dos metadados de rastreabilidade representa também um risco para a proteção da privacidade. Há extenso debate sobre a conveniência de se confiar às empresas a posse de dados que podem ser mobilizados para o favorecimento de interesses comerciais e políticos. Ademais, não podemos descartar a possibilidade de que informações pessoais sejam usadas pelas autoridades do Estado de maneira indiscriminada. O esforço recente por parte do grupo ora no Palácio do Planalto para controlar a Polícia Federal e a Procuradoria Geral da República causam espécie e inspiram cuidados adicionais. Em sua formulação atual, o PL estaria em contradição até mesmocom a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (nº 13.709), aprovada pelo Congresso em 2018.
Conclusão: o debate público não pode ser gerenciado
Não pretendemos, com as considerações apresentadas acima, sugerir que a proposta seja simplesmente abandonada ou sumariamente rejeitada. Reconhecemos a premência de se estabelecer normas e critérios mais claros para normatizar as interações em redes sociais e serviços de trocas de mensagens privadas, de modo a evitar a corrupção da formação da opinião pública e a fraude eleitoral. O contexto atual da comunicação mediada na internet demanda da sociedade e das instituições regras para coibir os crimes de ódio. Urge também elaborar mecanismos institucionais para impedir que o dinheiro ou o poder político controlem a circulação de informações. Devemos ser previdentes, entretanto, ao elaborar tais normas e conferir às empresas ou ao Estado o poder de regular a expressão e a comunicação de ideias.É fundamental que tais regras não constituam estruturas de gerenciamento do debate público ou queensejem a censura de ideias e opiniões ouponham em risco o direito à privacidade.
*Rebeca Trindade é graduanda no curso de Ciências Sociais da UFBA; Izabela Simas é graduanda no curso de Ciências Sociais da UFBA; Renato Francisquini é professor do Departamento de Ciência Política da UFBA.
Notas
[i]Arendt. Hannah. “Verdade e Política”. In: _______. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Editora Perspectiva, 2007.
[ii] Recuero, Raquel; Gruzd, Anatoliy. Cascatas de Fake News Políticas: um estudo de caso no Twitter. Galáxia, São Paulo, n. 41, p.31-47, Ago. 2019. Disponível em: <https://www.scielo.br/pdf/gal/n41/1519-311X-gal-41-0031.pdf>. Acesso em 07 de Julho de 2020.
[iii] HIimma-Kadakas, M. Alternative facts and fake news entering journalistic content production cycle. Cosmopolitan Civil Societies: An Interdisciplinary Journal Vol 9 No 2 (2017). Acesso em 05 de Julho de 2020.
[iv]Biller, D. 2018. Fake News Risks Plaguing Brazil Elections, Top Fact-Checkers Say. Disponível em: https://www.bloomberg.com/ news / articles / 2018 – 01 – 09 / fake – news – risks – plaguing – brazil – elections – top – fact – checkers – say.
[v] AGÊNCIA ESTADO (Itatiaia). Em debate no Congresso, Projeto de Lei das Fake News divide Ordem dos Advogados do Brasil. 2020. Disponível em: https://www.itatiaia.com.br/noticia/em-debate-no-congresso-nacional-projeto-de-lei-das-fake-news-divide-oab. Acesso em: 18 ago. 2020.