Rupturas e desdobramentos da Semana de Arte Moderna

Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por JULIAN RODRIGUES*

Comentário sobre o livro de Maria Lúcia Fernandes no mês em que a Semana faz 104 anos

Ai, que preguicinha boa! Imagina ter que sair de uma gostosa rede para aprender a tocar um tal de alaúde (já viram um?). E sair escrevendo manifestos tão inteligentes quanto pretensiosos – com a quase absoluta certeza de que, a partir de então, nada mais haveria de ser como antes. Tempos velozes, futuristas.

Pensem na ousadia iconoclasta que provocou um bafão de dimensões épicas – em pleno Theatro Municipal de São Paulo. Sim, o “h” permanece lá até hoje (quem duvidar é só ir ao site oficial). O espetacular prédio (que mimetiza teatros parisienses) tornar-se-ia motivo de orgulho para os caipiras aristocratas/cafeicultores – futuros industriais de uma cidade que se expandia rapidamente. 

São Paulo possuía no início da década de 1920 algo como 600 mil habitantes, 2% de um universo de 30 milhões. Para efeito de comparação, entre os cerca dos atuais 203 milhões de brasileiros – 11,5 mi, quase 6%, moram em Sampa. Mais ou menos o dobro da atual população do Rio de Janeiro. Há um século, nossa então capital tinha 1,2 mi de habitantes. Era o epicentro político e cultural do país. Basicamente São Paulo era uma província pretensiosa que rapidamente estava a enriquecer seus fazendeiros em impressionante velocidade. 

Essa pequena digressão visa ressaltar o inusitado. Por que o Modernismo explode aqui em São Paulo e não no Rio de Janeiro – que houvera passado por uma grande reforma urbanística, conduzida por Pereira Passos, a qual demoliu cortiços, expulsou os pobres para longe do centro, abriu largas avenidas e muito mais (o modelo foi a radical reforma parisiense conduzida por Haussmann em fins do século XIX). Aliás, sempre me impressionou como o centro do Rio – e de Buenos Aires – nos lembram imediatamente Paris.

A Semana escandalosa ainda tem algo a nos dizer?

O sensaboroso Graça Aranha, então consagrado escritor, foi o padrinho da Semana de 1922. Nosso mestre Alfredo Bosi em seu canônico História Concisa conta que o jornalão dos Mesquita noticiou e saudou efusivamente o evento, destacando a importância do Municipal assistir espetáculos de representantes “das mais modernas correntes artísticas”.

Isso tudo é muito conhecido e estudado (ou não!) nos bancos escolares do ensino médio às pós-graduações. É inescapável a constatação de que o movimento modernista deu “régua e compasso” para parte significativamente não só da literatura como das artes como um todo. Do tropicalismo de Caetano ao teatro de Zé Celso: música, artes plásticas, arquitetura e até mesmo a indústria cultural. Há cem anos o modernismo é paradigma que nos estrutura e ajuda a construir nossa identidade como país. 

Todos esses temas e muitos outros estão presentes no mais recente livro da professoraMaria Lúcia Fernandes: Rupturas e desdobramentos – reverberações críticas da Semana de Arte Moderna, no publicado ano passado.

As 274 páginas trazem dez ensaios organizados em duas seções: i. A Semana e a busca da identidade brasileira; ii. Reverberações críticas da Semana. 

Eu tive o prazer (e o privilégio) de ser aluno de Maria Lúcia no curso de Letras na Universidade Federal de Viçosa, em meados dos anos 1990 – hoje Fernandes é professora livre docente na UNESP, em Araraquara.

Fernandes sustenta que a Semana não foi imprescindível para a constituição do Modernismo. Em ótima e sarcástica tirada, chega a classificar as apresentações no Municipal como um “happening dadaísta” (os mais jovens chamariam de lacração).

O que mais gostei foi que o conjunto de ensaios dialogam estruturalmente entre si. Na primeira metade do livro, Maria Lúcia trata fundamentalmente dos founding fathers, tantas vezes descritos como antagônicos, quando no fundo são dois polos de um mesmo movimento inicial.

Tímido, apolíneo, professor de classe média, Mário (impressionantemente erudito) é uma parte do “cânone”. Dionisíaco, espalhafatoso e burguês Oswald é outra. Maria Lúcia escreve sobre ambos.  

O homem que criou um herói sem nenhum caráter tinha a ambição intelectual de buscar “uma expressão estética brasileira” e “incorporar a fala impura de sua [nossa] gente”. 

Já o marido de Pagu, seu Oswald, engajou-se – assim como Patrícia – política e ideologicamente: ambos foram comunistas. Oswald de Andrade nos legou uma obra esteticamente experimentalista, “misturando poesia e prosa”. Manejou técnicas como recorte e colagem, trazendo elementos do futurismo europeu para nossa literatura.

Maria Lúcia,drummondianamente, não se afasta do tempo presente. Dá as mãos às mulheres, negros e indígenas ao tratar de autores e autoras contemporâneas como Cuti (Luiz Silva) escritor negro; Denilson Baniwa (artista indígena) e às poetas Angélica Freitas e Luiza Romão. Confesso que senti falta de uma reflexão sobre a produção contemporânea de autores LGBTI (ou que escrevam dando ênfase à diversidade sexual e de gênero).

À guisa de conclusão, diria que o livro é rigoroso – mas didático. Conversa com os especialistas, estudantes, jornalistas, mas pode ser degustado por todas as pessoas que curtem nossa literatura, ainda que talvez ainda seja mesmo um “galho secundário da portuguesa, por sua vez arbusto de segunda ordem no jardim das Musas”como o mestre dos magos, ícone mor, um paradigma vivo, a definiu azedamento há algumas décadas.

*Julian Rodrigues, jornalista e professor, ativista do movimento LGBTI e de Direitos Humanos, mestre em ciências humanas e sociais (UFABC) e doutorando em América Latina (Prolam/USP).

Referência


Maria Lúcia Outeiro Fernandes. Rupturas e desdobramentos – reverberações críticas da Semana de Arte Moderna (Pontes Editores). [https://amzn.to/3UsrGAt]


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • Um estudo do caso Ailton Krenak1974__Identidade ignorada 21/07/2024 Por MARIA SILVIA CINTRA MARTINS: Prefiro sonhar com Krenak o parentesco com a natureza e com as pedras do que embarcar na naturalização do genocídio
  • Clarice Lispector no cinemacultura a paixão segundo g.h. 22/07/2024 Por LUCIANA MOLINA: Comentário sobre três adaptações cinematográficas da obra de Clarice Lispector
  • O princípio de autodestruiçãoLeonardo Boff 25/07/2024 Por LEONARDO BOFF: Qual ciência é boa para a transformação mundial?
  • Filosofia da práxis como poiésiscultura lenora de barros 24/07/2024 Por GENILDO FERREIRA DA SILVA & JOSÉ CRISÓSTOMO DE SOUZA: Fazer filosofia é, para o Poética, fazer filosofia contemporânea, crítica e temática
  • Que horas são no relógio de guerra da OTAN?José Luís Fiori 17/07/2024 Por JOSÉ LUÍS FIORI: Os ponteiros do “relógio da guerra mundial” estão se movendo de forma cada vez mais acelerada
  • Apagão digitalSergio Amadeu da Silveira 22/07/2024 Por SÉRGIO AMADEU DA SILVEIRA: A catástrofe algorítmica e a nuvem do “apagão”
  • A disputa de Taiwan e a inovação tecnológica na ChinaChina Flag 20/07/2024 Por JOSÉ LUÍS FIORI: A China já é hoje a líder mundial em 37 das 44 tecnologias consideradas mais importantes para o desenvolvimento econômico e militar do futuro
  • A produção ensaística de Ailton Krenakcultura gotas transp 11/07/2024 Por FILIPE DE FREITAS GONÇALVES: Ao radicalizar sua crítica ao capitalismo, Krenak esquece de que o que está levando o mundo a seu fim é o sistema econômico e social em que vivemos e não nossa separação da natureza
  • A radicalidade da vida estéticacultura 04 20/07/2024 Por AMANDA DE ALMEIDA ROMÃO: O sentido da vida para Contardo Calligaris
  • A questão agrária no Brasil — segundo Octávio IanniJose-Raimundo-Trindade2 19/07/2024 Por JOSÉ RAIMUNDO TRINDADE: As contribuições de Ianni podem auxiliar a reformular o debate agrário brasileiro, sendo que as obras do autor nos apontam os eixos para se repensar a estrutura fundiária brasileira

PESQUISAR

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES