Lições sobre Dom Quixote

Frank Stella, Contracapa, 1982
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por ERIVELTO DA ROCHA CARVALHO*

Considerações a respeito do livro de Vladimir Nabokov sobre Miguel de Cervantes

A publicação da tradução brasileira do estudo de Vladimir Nabokov sobre o Quixote de Miguel de Cervantes foi antecedida pela dos demais estudos do autor sobre literatura, escritos no tempo em que o romancista russo se dedicava a dar aulas em universidades e colleges norte-americanos. Antes de se transformar em nome reconhecido internacionalmente através de títulos como Lolita e Pálido fogo, Vladimir Nabokov se dedicou a ensinar literatura em diversas localidades americanas a partir de um programa de estudos que abordava a história do romance moderno, o que lhe levou a organizar o curso oferecido na Universidade de Harvard durante o ano acadêmico de 1951-1952.

A edição brasileira das suas Lições sobre Dom Quixote é a transposição por completo da edição norte-americana de Fredson Bowers, publicada em 1984 com prefácio de Guy Davenport. O livro de Nabokov apresenta-se, sem dúvida, como valiosa referência para perceber a mudança na perspectiva dos estudos cervantinos no século XX mas, para além disso, oferece outras pistas para pensar a recepção de Miguel de Cervantes no Brasil e fora dele.

Vladimir Nabokov, crítico e escritor

Se bem é verdade que existe um movimento nitidamente crítico neste estudo sobre o Quixote, é difícil não notar em como a recepção do clássico espanhol passa também pela própria construção que o escritor russo faz de sua própria persona literária como autor de romances.

Nesta perspectiva, Vladimir Nabokov se enquadra no grupo daqueles muitos criadores em que crítica e inquietude artística caminham de perto, não sendo um caso excepcional no que se refere aos romancistas que se dedicam a glosar Miguel de Cervantes e inserem seu comentário no quadro geral da crítica do romance no século XX. Se, por um lado, sua leitura de Cervantes tende a refutar a versão romântica hegemônica presente nos críticos que ele menospreza (como os hoje esquecidos Audrey Bell e Joseph Krutch); por outro lado, a atenção que dispensa ao romance de Miguel de Cervantes não deixa de indicar o lugar que este tópico assume no seu vasto programa de leituras de romance, o que servirá fatalmente de ponto de apoio na armação dos seus dois romances mais conhecidos.

Em certa medida, a obsessão pela Lolita do livro homônimo é paralela àquela que Dom Quixote tem por Dulcineia, e também em Pálido fogo conta-se mais uma vez a história de um manuscrito encontrado, estratagema presente no Quixote e elemento recorrente na hora de estruturar determinado tipo de estrutura romanesca. Ambos os temas tem uma evidente ressonância cervantina e convergem com o viés artístico assumido pela leitura nabokoviana do Quixote em suas aulas, ainda que esse viés apareça implicitamente e não seja anunciado como tal. De qualquer forma, lendo as suas notas de aula, não é difícil deduzir que elas são notas de um romancista sobre a obra de outro romancista.

Na sua leitura de Miguel de Cervantes pesa o combate contra os magos encantadores do romantismo, aqueles que só querem ver compaixão na obra do escritor espanhol, mas, em particular, também conta o olhar lançado em direção à intuição e o gênio artísticos do Manco de Lepanto. Este último ponto se desdobra na maneira como Vladimir Nabokov vê a tradição das leituras sobre Miguel de Cervantes, para além da sua crítica à saturação da exegese romântica.

É interessante perceber presenças e ausências de alguns vetores da crítica sobre Miguel de Cervantes no século XX na reconstrução da concepção artística da poética cervantina presente na leitura nabokoviana. Nesta perspectiva, por exemplo, as notas da edição de Bowers revelam o professor que, nas suas aulas, vai construindo sua visão do Quixote a partir de referências espanholas ou norte-americanas como as dos hispanistas Salvador Madariaga e Rudolph Schevill, cujas apresentações e notas sobre o clássico cervantino cumprem com o objetivo funcional de situar a obra trabalhada nas seis aulas do Memory Hall da prestigiada universidade norte-americana.

Em contraste com a presença destas leituras funcionais que dão o “caminho” para chegar a uma obra, é chamativa a ausência (talvez pela dificuldade de acesso; seguramente também, em outros casos, pela de idioma, mas talvez simplesmente pelo desinteresse do autor) de algumas referências de leituras ou interpretações de Miguel de Cervantes já formuladas quando do curso em Harvard, tais como as de Unamuno, Américo de Castro e Ortega y Gasset; outras paralelas como as de Bataillon, Bakhtin e Auerbach; e, ainda, outras elaboradas pela leitura crítica de escritores como as de Jorge Luis Borges e Thomas Mann, para captar aqui o espectro geral de ausências passíveis de serem rastreadas (neste último caso, mesmo a posteriori).

Evidentemente, longe de ser um simples cômputo de faltas, essas ausências indicam de forma geral os limites e as opções estratégicas assumidas por Vladimir Nabokov, que se apresenta diante do público como uma espécie de “guia” funcional de Miguel de Cervantes, ao mesmo tempo em que guarda encoberto a figura do romancista que já era (em russo) e que chegaria a ser (em inglês).

Mistificação e crueldade

A percepção geral da leitura nabokoviana do Quixote é de que mais do que um romance que fizesse ainda sentido para sua época (a do crítico), a obra de Miguel de Cervantes continuava tendo relevância pelo seu poder artístico muito peculiar e, muito mais ainda, pela difusão que alcançara com a passagem do tempo. O escritor russo tende a situar a Cervantes numa escala abaixo em termos de importância literária quando o compara a Shakespeare, por exemplo. Como afirmará em uma de suas aulas, Dom Quixote seria “apenas” um fidalgo na corte do Rei Lear. As comparações com essa peça em específico do dramaturgo inglês aparecem por vezes nas aulas, sempre com vantagem para as situações e os personagens do drama elisabetano.

Isso não impossibilita que o leitor do seu estudo perceba o elemento que distingue a sua leitura de boa parte das interpretações (românticas ou não) do Quixote: Nabokov dedica uma seção central do seu estudo, sem dúvida a mais interessante, a tratar do que chama de crueldade do mundo cervantino, universo formado não apenas pela forma literária de Miguel de Cervantes, mas também pelo fundo de injustiça e desumanidade que o autor russo vê na Europa do início da Idade Moderna e especialmente na Espanha de Cervantes e Felipes. Por algumas vezes, ele traça um paralelo entre a brutalidade presente na sociedade de corte e aquela dos regimes autoritários do seu tempo, entre os quais inclui o regime soviético com o qual nunca chegou a simpatizar.

A crueldade é a marca principal do Quixote para Vladimir Nabokov, o que faz o autor afirmar que esta obra se apresenta como uma enciclopédia da crueldade onde as pobres almas de seus dois protagonistas são dissecadas. Na leitura que faz do comentário do autor russo em O controle do imaginário e a afirmação do romance (2009), Luiz Costa Lima chama a atenção para o fato de que a crueldade é apenas a outra face da moeda ante a agudeza da burla presente no Quixote.

O recorrente tema da tensão entre tragédia e comédia em Miguel de Cervantes (que se repete desde as primeiras leituras românticas), pode, em certa medida, ser comparado com o que existe a partir do século XX entre crítica e criação, tensão que não fica restrita à obra do autor espanhol. Em certo sentido, a verdadeira crítica de arte no século XX é a escrita pelos artistas em suas obras ou nas releituras que fazem das obras de seus pares. Para o romance, isso não deixa de ser diferente.

Crítica e criação

Como aponta Davenport no seu prefácio, no que pese o interesse de Vladimir Nabokov em se desmarcar da visão romântica tradicional sobre Cervantes, mesmo assim o autor russo rende-se ao seu culto destacando a piedade como brasão e a beleza como estandarte (signos que assim cifram o romancista espanhol). Em sua introdução ao mundo de Miguel de Cervantes em Harvard, está presente o professor rigoroso que critica os comentaristas que só querem ver a compaixão no Quixote, mas também está o romancista que simpatiza com determinadas passagens e alguns dos truques do jogo de espelhos forjado pelo autor espanhol. Trata-se este, sem dúvida, de um leitor que está muito mais preocupado com suas leituras de Tolstói ou Gógol, mas que ainda assim reserva um espaço particular ao texto cervantino no quadro geral da história literária.

Talvez este seja um ponto que faz com que a leitura e o livro de Vladimir Nabokov percam em interesse próprio: suas leituras do Quixote estão atreladas a suas aulas sobre a literatura russa e universal, em especial à tradição do romance moderno (publicadas no Brasil pela mesma editora que lançou o estudo aqui comentado). Por este viés, Miguel de Cervantes deixa de ter um interesse intrínseco e passa a ser um degrau para alcançar autores mais próximos ao comentarista, como os russos já citados, mas também outros, em especial alguns do mundo anglófono, como James Joyce ou Charles Dickens. A comparação negativa em relação à Shakespeare deixa ver a primazia que o autor de origem russa dá às culturas de língua inglesa, apesar do valor que reconhece em Cervantes como romancista.

Ao situar sua visão do Quixote no quadro geral da história do romance e da modernidade em crise, Nabokov aproxima-se de um ensaio que é contemporâneo da publicação original das suas lições, que é A arte do romance (1986) de Milan Kundera. Sua crítica à prosa cervantina (em sua forma fragmentária e carente de prévio plano) certamente cairia bem para críticos estritos da estirpe de Paul Groussac (evocado por Nabokov em seu livro), mas faria sorrir a ficcionistas menos apegados a forma como Borges (que, segundo determinados críticos, teria aludido ao mesmo Groussac para criar a figura de Pierre Menard).

Por fim, apesar das restrições a Miguel de Cervantes e ao seu tempo, apesar das restrições às leituras românticas do Quixote, Vladimir Nabokov termina por reconhecer no romancista espanhol uma qualidade artística única, irrepetível. Se essa é ou não é a matéria das grandes obras, é algo sobre o qual a crítica deverá ainda continuar se debruçando por tempos e tempos. E o leitor brasileiro poderá tirar a prova lendo o próprio Cervantes e também a tradução do estudo de Nabokov levada a cabo por Jorio Dauster.

*Erivelto da Rocha Carvalho é professor de literatura espanhola e hispano-americana na Universidade de Brasília (UnB).

Referência


Vladimir Nabokov. Lições sobre Dom Quixote. Tradução: Jorio Dauster. São Paulo, Fósforo, 2023, 302 páginas. [https://amzn.to/4fEOUea]


Veja todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Arquétipos e símbolos
Por MARCOS DE QUEIROZ GRILLO: Carl Jung combinou a literatura, a narração de histórias e a psicanálise para chegar às memórias inconscientes coletivas de certos arquétipos, promovendo a reconciliação das crenças com a ciência
Apelo à comunidade acadêmica da USP
Por PAULO SÉRGIO PINHEIRO: Carta para a Agência USP de Cooperação Acadêmica Nacional e Internacional – AUCANI
O marxismo neoliberal da USP
Por LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA: Fábio Mascaro Querido acaba de dar uma notável contribuição à história intelectual do Brasil ao publicar “Lugar periférico, ideias modernas”, no qual estuda o que ele denomina “marxismo acadêmico da USP
Fundamentos da análise social
Por FABIO DE OLIVEIRA MALDONADO: Apresentação à edição brasileira do livro recém-lançado de Jaime Osorio
O martírio da universidade brasileira
Por EUGÊNIO BUCCI: A nossa universidade precisa se preparar e reforçar suas alianças com suas irmãs do norte. O espírito universitário, no mundo todo, só sobrevive e se expande quando sabe que é um só
A ampliação do Museu de Arte de São Paulo
Por ADALBERTO DA SILVA RETTO JR.: O vão livre do MASP será um espaço inclusivo ou excludente de alguma forma? A comunidade ainda poderá ali se manifestar? O famoso “vazio” continuará sendo livre, no mais amplo sentido do termo?
Minha infância nos porões da Bela Vista
Por FLORESTAN FERNANDES: “Eu morava lá na casa dele e queria sair de lá, eu dizia que passava mal, que comia mal, dormia mal e tudo ia mal, e ela não acreditava”
Ideologias mobilizadoras
Por PERRY ANDERSON: Hoje ainda estamos em uma situação onde uma única ideologia dominante governa a maior parte do mundo. Resistência e dissidência estão longe de mortas, mas continuam a carecer de articulação sistemática e intransigente
O fenômeno Donald Trump
Por DANIEL AARÃO REIS: Donald Trump 2 e seus propósitos “iliberais” devem ser denunciados com a maior ênfase. Se a política de potência se afirmar como princípio nas relações internacionais será funesto para o mundo e para o Brasil em particular
Como funciona a cabeça de um entreguista?
Por JEAN PIERRE CHAUVIN: A reeleição de Donald Trump voltou a atiçar sem-corações e dementes entreguistas. Certamente haverá quem defenda o “tarifaço” trumpista, como se confirmasse a virtude de um estadista
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES