Literatura e resistência

Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por FERREIRA GULLAR*

Comentário sobre o livro de Alfredo Bosi

Embora este livro de Alfredo Bosi não tenha sido escrito, ao que tudo indica, segundo um plano preestabelecido, creio que mantém uma peculiar unidade e, talvez mesmo por não seguir um plano, oferece-nos uma leitura ainda mais abrangente, rica de reflexões, ilações e descobertas.

O livro obedece a uma metodologia de leitura que vai do geral ao particular, do passado à atualidade e, com isso, nos ensina como as questões que envolvem literatura e ideologia, história e criação individual, estão na base mesma de nossa formação cultural.

No século XIX, os conceitos de nação e progresso, decorrentes da ascensão da burguesia, estavam presentes, a partir de certo momento, nas literaturas da Europa, mas em países como o Brasil, onde não havia burguesia, ganharam coloração específica e um peso maior: revelavam nossa carência e implicavam nossa afirmação como povo. Isto agravou a necessidade de submeter-se a apreciação da obra literária às exigências ideológicas do nacionalismo e de entender-se o processo literário não como a história das obras e sim como simples momentos de um processo evolutivo.

Bosi nos mostra como isto ocorre e de que modo a valorização dos fatores formais e as novas concepções estéticas tornaram insustentável a subestimação por parte dos teóricos, da autonomia da criação artística propriamente dita. Os primeiros passos neste sentido foram dados, no Brasil, por pensadores surgidos com o modernismo, como Mário de Andrade e Tristão de Athayde, cuja reflexão se amplia e aprofunda, mais tarde, com Otto Maria Carpeaux, Antonio Candido e, acrescento eu, o próprio Alfredo Bosi.

Coerente com sua tese de que o fundamental da história da literatura é a obra como criação individualizada, dedica-se à análise de alguns livros em que exemplarmente se manifesta a atitude de resistência do autor em face das forças que negam o humanismo, como a opressão e a discriminação racial ou social. Também aqui parte da precedência histórica, ao focalizar primeiramente O reino deste mundo, obra em que o padre Antônio Vieira resiste às acusações do Santo Ofício e reafirma a profecia do advento do Quinto Império.

Passa daí ao Uraguai, de Basílio da Gama, autor que é levado, contraditoriamente, a defender o extermínio dos índios pelo colonizador ao mesmo tempo que condena o colonialismo. Em O emparedado, de Cruz e Sousa, constata o inconformismo com a discriminação do negro, tido pela pseudociência da época como biologicamente inferior ao branco. Essa discriminação assume caráter mais evidentemente social no romance Isaías Caminha, do mulato Lima Barreto.

Já nas Memórias do cárcere, de Graciliano Ramos, na década de 1950, a resistência ganha a forma de testemunho dos arbítrios da ditadura Vargas contra o direito de pensar e agir politicamente. É um momento em que ela se expressa não apenas no tema mas também na própria escrita, no estilo literário. Bosi amplia a discussão do problema ao mergulhar na “era dos extremos” – a época atual – quando alguns pretendem apresentar a obra literária, já não como criação primeira e sim como mera citação ou pastiche – o que ele refuta.

Não seria possível, numa simples “orelha”, tentar resumir a riqueza de conhecimento e ideias que este livro contém. Por isso mesmo, só me resta apontar ao público o único caminho possível para usufruí-la: lê-lo.

*Ferreira Gullar (1930-2016) foi escritor, poeta e dramaturgo. Autor, entre outros livros, de Poema sujo (Companhia das Letras).

Referência


Alfredo Bosi. Literatura e resistência. São Paulo, Companhia das Letras, 2002, 304 págs.

 

Veja todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

O marxismo neoliberal da USP
Por LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA: Fábio Mascaro Querido acaba de dar uma notável contribuição à história intelectual do Brasil ao publicar “Lugar periférico, ideias modernas”, no qual estuda o que ele denomina “marxismo acadêmico da USP
Apelo à comunidade acadêmica da USP
Por PAULO SÉRGIO PINHEIRO: Carta para a Agência USP de Cooperação Acadêmica Nacional e Internacional – AUCANI
Carinhosamente sua
Por MARIAROSARIA FABRIS: Uma história que Pablo Larraín não contou no filme “Maria”
Ideologias mobilizadoras
Por PERRY ANDERSON: Hoje ainda estamos em uma situação onde uma única ideologia dominante governa a maior parte do mundo. Resistência e dissidência estão longe de mortas, mas continuam a carecer de articulação sistemática e intransigente
Arquétipos e símbolos
Por MARCOS DE QUEIROZ GRILLO: Carl Jung combinou a literatura, a narração de histórias e a psicanálise para chegar às memórias inconscientes coletivas de certos arquétipos, promovendo a reconciliação das crenças com a ciência
A biblioteca de Ignacio de Loyola Brandão
Por CARLOS EDUARDO ARAÚJO: Um território de encantamento, um santuário do verbo, onde o tempo se dobra sobre si mesmo, permitindo que vozes de séculos distintos conversem como velhos amigos
Fundamentos da análise social
Por FABIO DE OLIVEIRA MALDONADO: Apresentação à edição brasileira do livro recém-lançado de Jaime Osorio
O martírio da universidade brasileira
Por EUGÊNIO BUCCI: A nossa universidade precisa se preparar e reforçar suas alianças com suas irmãs do norte. O espírito universitário, no mundo todo, só sobrevive e se expande quando sabe que é um só
O fenômeno Donald Trump
Por DANIEL AARÃO REIS: Donald Trump 2 e seus propósitos “iliberais” devem ser denunciados com a maior ênfase. Se a política de potência se afirmar como princípio nas relações internacionais será funesto para o mundo e para o Brasil em particular
A nova indústria cultural
PorBRUNO BONCOMPAGNO: O monopólio é a tendência unívoca do capitalismo. A outra tendência do capital é desenvolver maneiras de maquiar sua dominação do cotidiano
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES