Lucidez em tempos de ciência capturada

Imagem: JEFERSON GOMES
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Por JOÃO DOS REIS SILVA JÚNIOR*

O mal-estar na ciência capturada não é falha individual, mas índice social: é a experiência da alienação dupla descrita por Lukács, onde o pesquisador perde tanto o produto de seu trabalho quanto o tempo legítimo para pensar

“A colonialidade não se limita à exploração econômica; ela organiza o saber, hierarquiza a experiência e governa a própria produção do sentido” (Aníbal Quijano).

O escândalo que não surpreendeu

O escândalo envolvendo a Elsevier não foi um acidente, nem um desvio ocasional em um sistema que funcionava bem. Retratações em massa, falhas reiteradas na revisão por pares, editorias pressionadas por volume, conflitos com bibliotecas universitárias e contratos rompidos apenas tornaram visível aquilo que já vinha sendo vivido silenciosamente no cotidiano da ciência contemporânea. O espanto foi maior fora do campo acadêmico do que dentro dele. Para muitos pesquisadores, tratou-se menos de uma revelação do que de um reconhecimento tardio.

Não houve surpresa histórica. A surpresa só se sustenta enquanto persiste a crença de que a ciência ainda se organiza segundo uma racionalidade interna relativamente autônoma, regulada primordialmente por critérios epistemológicos. Uma vez abandonada essa crença, o episódio aparece como aquilo que de fato é: a manifestação aberta de uma ciência plenamente integrada à lógica do capital fictício.

O que entrou em crise não foi a ética científica em abstrato, mas a ilusão de que a ética ainda poderia regular um sistema cujo princípio organizador já não é a verdade, mas a circulação acelerada.

O escândalo não revelou a corrupção de um ideal; revelou a consolidação de uma forma. A forma de uma ciência que deixou de produzir conhecimento como finalidade e passou a produzir sinais de desempenho, visibilidade e crescimento. A morte anunciada não foi a da ciência, mas a da ideia de que ela poderia permanecer relativamente imune à racionalidade dominante do capitalismo contemporâneo.

A transformação da produção de artigos científicos em medida de emergência permanente não é figura de linguagem. Trata-se de uma mutação objetiva no regime temporal da ciência. O capital fictício não se organiza pela produção material imediata, mas pela conversão de expectativas futuras em valor presente. Para que esse circuito funcione, é necessário um fluxo contínuo de sinais que indiquem vitalidade, atividade e expansão. O artigo científico passa a cumprir exatamente essa função.

Publica-se não para concluir, mas para sinalizar continuidade. Publica-se não para resolver problemas, mas para permanecer visível. A interrupção do fluxo deixa de ser condição da reflexão e passa a ser interpretada como falha. O silêncio, que sempre foi parte constitutiva do pensamento, converte-se em risco institucional. A ciência passa a operar sob um regime de urgência contínua, no qual o tempo nunca basta e o presente está sempre em atraso em relação ao futuro exigido.

Essa emergência deixa de ser exceção e se converte em norma administrativa e moral. Não publicar é irresponsável. Publicar menos é improdutivo. Pensar demais é ineficiente. O artigo deixa de ser forma de exposição do pensamento e se transforma em instrumento de sobrevivência institucional. A produção científica passa a se organizar como gestão de risco, e não como elaboração crítica.

O capital fictício e a inumanização do trabalho intelectual

A pressão exercida pelo capital fictício sobre o pesquisador não se limita à intensificação do trabalho. Ela altera qualitativamente a experiência do trabalho intelectual. O pesquisador trabalha no tempo presente, mas é avaliado por projeções futuras. Escreve agora, mas seu valor depende do que ainda não aconteceu. O reconhecimento nunca coincide com o esforço efetivo.

Essa defasagem estrutural produz uma experiência contínua de atraso. Trabalha-se muito e sente-se que nunca é suficiente. Publica-se e a sensação é de ter chegado tarde. Cumpre-se tudo e a meta já é outra. O presente do trabalho intelectual passa a ser vivido como déficit permanente. O trabalho torna-se inumano não por ser fisicamente extenuante, mas por se tornar temporalmente incompatível com a própria condição do pensamento.

Pensar exige retorno, hesitação, amadurecimento. O capital fictício exige antecipação contínua. O resultado é uma forma de sofrimento que não decorre da incapacidade individual, mas da impossibilidade estrutural de coincidir com a medida exigida. O pesquisador internaliza essa defasagem como culpa. Trabalha mais para compensar uma insuficiência que não pode ser superada. A pressão externa converte-se em autovigilância permanente.

Essa situação produz uma forma específica de alienação. De um lado, a alienação do produto do trabalho intelectual. O artigo publicado deixa rapidamente de pertencer ao autor. Circula em plataformas que ele não controla, gera valor simbólico e econômico que ele não apropria, sustenta editoras, rankings e sistemas de avaliação. O pesquisador produz conhecimento, mas recebe métricas.

De outro lado, uma alienação historicamente mais profunda: a alienação do próprio tempo de pensar. O pesquisador deixa de reconhecer o presente como tempo legítimo da atividade intelectual. A leitura cuidadosa passa a parecer desperdício. A escrita densa, risco. A reflexão longa, atraso. O trabalho deixa de ser vivido como processo e passa a ser experimentado como corrida interminável.

Essa alienação dupla não é patologia individual. Ela é funcional. Um trabalhador que não se reconhece nem no produto nem no tempo de seu trabalho é facilmente governável. O sofrimento aparece como falha pessoal, quando é expressão de uma forma social historicamente determinada.

A mediação estética e a fragmentação da consciência

É nesse ponto que a contribuição de György Lukács se torna decisiva. A forma não é neutra. Ela organiza a percepção do real. Quando a totalidade social é fragmentada pela reificação, a forma dominante tende a naturalizar essa fragmentação como evidência sensível.

O artigo científico fragmentado, serializado e padronizado não é apenas um instrumento técnico. Ele é uma forma estética compatível com a fragmentação da totalidade social. Cada texto aparece como unidade autônoma, desconectada do processo histórico que lhe dá sentido. A totalidade desaparece da experiência sensível do pesquisador. O mundo social passa a ser percebido como soma de tarefas, prazos, métricas e metas.

Essa estética da fragmentação impede a passagem da vivência ao entendimento histórico. O pesquisador sente o mal-estar, mas não consegue recompor suas mediações. A forma dominante educa a sensibilidade para aceitar a fragmentação como natural. A crítica perde capacidade de síntese justamente porque a totalidade deixou de ser perceptível.

Nos países dependentes, esse processo assume forma agravada. A dependência não é atraso nem falha de modernização. Ela é forma ativa de organização do presente. A universidade dependente é moderna, mas subordinada. Produz intensamente, mas decide pouco. Publica para fora, valida fora, reconhece fora.

A arquitetura da dependência opera externalizando o critério de valor. O que conta como ciência legítima é definido fora e depois internalizado como exigência local. A modernização científica avança junto com a perda de autonomia cognitiva. Cresce-se sem se emancipar. A inserção internacional se faz ao preço da subordinação epistêmica.

A colonialidade do saber, tal como formulada por Aníbal Quijano, atua no interior da subjetividade do pesquisador. Aprende-se a desconfiar das próprias perguntas, a ajustar os objetos, a traduzir a realidade local em linguagem aceitável. A dependência deixa de ser apenas externa e passa a operar como autocontrole cognitivo.

Boaventura de Sousa Santos mostrou como essa episteme dominante produz ausências. Aquilo que não se conforma aos critérios hegemônicos simplesmente deixa de existir como conhecimento válido. Problemas históricos locais, tradições intelectuais próprias e temporalidades longas de reflexão são sistematicamente desqualificados. Publica-se muito para dizer pouco. Circula-se intensamente para não deslocar nada.

O artigo científico como investimento

Sob a hegemonia do capital fictício, o artigo científico converte-se em investimento rentável. Editoras capturam gratuitamente o trabalho intelectual, validam-no por meio de revisão por pares não remunerada e o transformam em mercadoria por meio de plataformas proprietárias. O valor não está no conteúdo, mas na expectativa futura que o texto projeta.

Universidades compram pacotes editoriais não porque leem tudo, mas porque precisam estar associadas ao circuito de prestígio. O artigo funciona como título simbólico. Circula, valoriza-se, sustenta rankings e avaliações. A ciência torna-se uma das formas mais estáveis de valorização fictícia contemporânea.

A lucidez não é virtude moral nem solução técnica. Ela é categoria crítica. Capacidade de recompor mediações, de perceber a totalidade contra a aparência fragmentada do presente, de devolver inteligibilidade histórica ao sofrimento vivido como falha individual. Aqui ecoa a crítica de Paulo Eduardo Arantes ao tempo bloqueado do presente.

É desse ponto que emerge o lamento dos pesquisadores sérios. Não como nostalgia de um passado idealizado, mas como consciência histórica de uma perda real de sentido. Trabalha-se muito, publica-se incessantemente, e o pensamento se vê comprimido. Tornar visível essa arquitetura não dissolve o problema, mas rompe o silêncio que o sustenta.

Em um mundo acadêmico organizado para converter tudo em métrica, desempenho e expectativa, insistir na totalidade, na mediação e na lucidez talvez seja o último gesto possível de fidelidade à própria ideia de ciência.

A lucidez não é virtude moral nem solução técnica. Ela é categoria crítica, no sentido forte do termo. Designa a capacidade de recompor mediações que a forma social dominante se empenha em dissolver, de perceber a totalidade histórica contra a aparência fragmentada do presente e de devolver inteligibilidade social a um sofrimento vivido, cotidianamente, como falha individual.

Ser lúcido, nesse contexto, não significa compreender mais, mas compreender contra: contra o ritmo imposto, contra a naturalização da urgência, contra a internalização da culpa como forma de governo do trabalho intelectual. Aqui ecoa, com força particular, a crítica de Paulo Eduardo Arantes ao tempo bloqueado do presente, esse agora contínuo em que tudo se move sem que nada efetivamente se transforme, e no qual o futuro aparece apenas como repetição ampliada das exigências do presente.

É desse ponto que emerge o lamento dos pesquisadores sérios. Não como nostalgia de um passado idealizado, nem como resistência conservadora à modernização científica, mas como consciência histórica de uma perda real de sentido. Trabalha-se muito, publica-se incessantemente, acumulam-se indicadores, projetos e relatórios, e, ainda assim, o pensamento se vê comprimido, reduzido a fragmentos administráveis, privado do tempo necessário à elaboração crítica.

O mal-estar não decorre da falta de competência ou de empenho, mas do excesso de adaptação a uma racionalidade que transforma o conhecimento em desempenho e o pesquisador em gestor de sua própria insuficiência.

Esse lamento raramente se converte em protesto articulado porque a arquitetura que o produz também o fragmenta. Cada pesquisador experimenta sua exaustão como problema privado, sua dificuldade como falha pessoal, seu desencanto como inadequação individual.

A estrutura desaparece da experiência imediata. Tornar visível essa arquitetura não dissolve o problema, não restitui automaticamente ao pensamento seu tempo próprio, nem humaniza por si só o trabalho intelectual. Mas rompe o silêncio que o sustenta, desloca o sofrimento do registro psicológico para o plano histórico e restitui ao mal-estar sua condição de índice social.

Em um mundo acadêmico organizado para converter tudo em métrica, desempenho e expectativa futura, insistir na totalidade, na mediação e na lucidez talvez seja o último gesto possível de fidelidade à própria ideia de ciência. Não como promessa de superação imediata, mas como recusa a aceitar que o pensamento só possa sobreviver ao preço de abdicar de si mesmo.

*João dos Reis Silva Júnior é professor titular do Departamento de Educação da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Autor, entre outros livros, de Educação, sociedade de classes e reformas universitárias (Autores Associados) [https://amzn.to/4fLXTKP].

Referências


ARANTES, Paulo Eduardo. O novo tempo do mundo: e outros estudos sobre a era da emergência. São Paulo: Boitempo, 2014.

BAMBIRRA, Vânia. O capitalismo dependente latino-americano. Rio de Janeiro: Graal, 1978.

LUKÁCS, György. Estética. São Paulo: Martins Fontes, 1966. v. 1.

LUKÁCS, György. História e consciência de classe. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

MARINI, Ruy Mauro. Dialética da dependência. México: Era, 1973.

QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, Edgardo (org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Buenos Aires: CLACSO, 2000. p. 117–142.

QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder e classificação social. Journal of World-Systems Research, v. 11, n. 2, p. 342–386, 2005.

SANTOS, Boaventura de Sousa. A universidade no século XXI: para uma reforma democrática e emancipatória da universidade. São Paulo: Cortez, 2004.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. Novos Estudos CEBRAP, n. 79, p. 71–94, 2007.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010.


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