Irrupções ou insurreições

Clara Figueiredo, Izmailovsky Market, Lênin_ 2067,60 rublos, Moscou, 2016
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por RAÚL ZIBECHI*

Os governos que surgiram das urnas nunca conseguiram abalar o poder do capital

Um relatório recente do Fundo Monetário Internacional (FMI) revela que as classes dominantes, às quais o organismo serve, esperam irrupções sociais no mundo todo como consequência da pandemia.

O trabalho Repercussões sociais da pandemia, publicado em janeiro, considera que a história é um guia que nos permite esperar irrupções que revelam fraturas já existentes na sociedade: a falta de proteção social, a desconfiança das instituições, a percepção de incompetência ou corrupção dos governos (https://bit.ly/3qVVhAV).

Graças aos seus amplos recursos, o FMI desenvolveu um índice de mal-estar social baseado numa análise de milhões de artigos de imprensa publicados desde 1985 em 130 países, que refletem 11 mil acontecimentos suscetíveis de causar irrupções sociais. Isto permite-lhe prever que até meados de 2022 começará uma onda de protestos, que se busca prevenir e controlar.

O importante é que o organismo diz aos governos e ao grande capital que o período que se abre nos quatorze meses posteriores ao início da pandemia pode ser perigoso para seus interesses e que devem estar preparados, mas acrescenta que cinco anos depois os efeitos das irrupções serão residuais e deixarão de afetar a economia.

A equação parece clara: as classes dominantes esperam irrupções, preparam-se para enfrentá-las e neutralizá-las, porque durante algum tempo podem desestabilizar a dominação.

Um detalhe: o estudo nem sequer menciona os resultados de eventuais eleições como riscos para o capital, talvez porque independentemente de quem ganhe, eles sabem que os governos que surgiram das urnas nunca conseguiram abalar o poder do capital.

Os movimentos anti-capitalistas devemos tomar boa nota das previsões do sistema, para não repetir os erros e prevenir ações que, a longo prazo, nos desgastam sem produzir mudanças. Proponho diferenciar irrupções de insurreições, para mostrar que aquelas não são convenientes, mas estas podem ser, se forem fruto de uma organização coletiva sólida.

As irrupções são reações quase imediatas às ofensas, como os crimes policiais; geram uma enorme e furiosa energia social que desaparece em poucos dias. Entre as irrupções, está a que ocorreu durante três dias de setembro em Bogotá, ante o assassinato pela polícia de um jovem advogado com nove fraturas no crânio.

A repressão causou a morte de mais de dez manifestantes e 500 feridos, cerca de 70 a bala. A justa ira ocorreu nos Centros de Atenção Imediata, repartições policiais nas periferias, 50 dos quais foram destruídos ou incendiados. Após três dias, o protesto desvaneceu-se e já não havia coletivos organizados nos bairros mais afetados pela violência estatal.

Há muitos exemplos como este, mas estou interessado em destacar que os estados aprenderam a lidar com eles. Expõem excessivamente a violência nos meios de comunicação, criam grupos de estudo sobre as injustiças sociais, mesas de negociação para simular interesse e podem até mesmo afastar alguns uniformizados de suas funções, enviando-os para outros locais.

O mais comum é que os governos aceitem que há injustiças, em geral, e que atribuam a violência das irrupções à precariedade do emprego juvenil e a outras consequências do sistema, sem abordar as causas de fundo.

A insurreição é algo diferente. Um corpo organizado decide o seu início, traça os objetivos e os modos, os pontos de concentração e de retirada, e no diálogo coletivo decide o momento em que a insurreição termina. O melhor exemplo é a insurreição indígena e popular de outubro de 2019 no Equador. Durou 11 dias, foi decidido pelas bases da Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador e teve a adesão de sindicatos e jovens das periferias urbanas.

A violência foi controlada pelos membros das organizações, que impediram os saques induzidos por policiais infiltrados. Decidiu-se acabar com ela em enormes assembleias em Quito, depois que o governo de Lenín Moreno anulou o pacote de medidas neoliberais que gerou a mobilização. O parlamento indígena e dos movimentos sociais, criado dias depois, foi encarregado de dar continuidade ao movimento.

Uma insurreição pode reforçar a organização popular. No Chile, onde preferem dizer revolta e não irrupção, foram criadas mais de 200 assembleias territoriais durante os protestos em quase todos os bairros populares.

A ação coletiva massiva e contundente deve reforçar a organização, porque é a única coisa que pode garantir sua continuidade a longo prazo. As classes dominantes aprenderam há muito tempo a enfrentar as irrupções, porque sabem que são efêmeras. Se nos organizarmos, as coisas podem mudar, mas não conseguiremos nada se acreditarmos que o sistema cairá de um só golpe.

*Raúl Zibechi, jornalista, é colunista do semanário Brecha (Uruguai).

Tradução: Fernando Lima das Neves.

 

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Luiz Roberto Alves Lincoln Secco Ricardo Abramovay Flávio R. Kothe Leonardo Sacramento Leonardo Boff Osvaldo Coggiola Paulo Nogueira Batista Jr Eugênio Bucci Slavoj Žižek Marcelo Guimarães Lima Luiz Eduardo Soares Valerio Arcary Bruno Machado Boaventura de Sousa Santos Manchetômetro Rafael R. Ioris Vanderlei Tenório Marcelo Módolo Paulo Fernandes Silveira Rodrigo de Faria Alexandre de Lima Castro Tranjan Ladislau Dowbor Sandra Bitencourt Marcos Silva Paulo Sérgio Pinheiro José Raimundo Trindade Eduardo Borges Thomas Piketty Eleutério F. S. Prado Lucas Fiaschetti Estevez Marjorie C. Marona José Costa Júnior Marcus Ianoni Claudio Katz Ronaldo Tadeu de Souza Luiz Werneck Vianna Salem Nasser Alexandre Aragão de Albuquerque Henry Burnett Ricardo Musse João Feres Júnior Carla Teixeira Francisco Pereira de Farias Fernando Nogueira da Costa Paulo Capel Narvai Ricardo Fabbrini Annateresa Fabris José Micaelson Lacerda Morais Marilena Chauí Vinício Carrilho Martinez Heraldo Campos Alysson Leandro Mascaro Antonino Infranca Marcos Aurélio da Silva Celso Favaretto José Dirceu Fábio Konder Comparato Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Julian Rodrigues Gilberto Lopes Leonardo Avritzer Everaldo de Oliveira Andrade Rubens Pinto Lyra Luciano Nascimento Plínio de Arruda Sampaio Jr. Eugênio Trivinho Carlos Tautz Eleonora Albano Luís Fernando Vitagliano André Márcio Neves Soares Celso Frederico Igor Felippe Santos Lorenzo Vitral Remy José Fontana Luiz Renato Martins Mariarosaria Fabris Valerio Arcary Luiz Marques Priscila Figueiredo Michael Roberts Manuel Domingos Neto Mário Maestri Andrés del Río Kátia Gerab Baggio Matheus Silveira de Souza Denilson Cordeiro Dênis de Moraes Luis Felipe Miguel Andrew Korybko Airton Paschoa Érico Andrade Fernão Pessoa Ramos Otaviano Helene Flávio Aguiar João Paulo Ayub Fonseca Anselm Jappe Sergio Amadeu da Silveira Bruno Fabricio Alcebino da Silva Dennis Oliveira Leda Maria Paulani Maria Rita Kehl Ronald Rocha Bento Prado Jr. Antônio Sales Rios Neto Juarez Guimarães Chico Alencar José Luís Fiori Ronald León Núñez Francisco Fernandes Ladeira Tales Ab'Sáber Afrânio Catani Tadeu Valadares Jean Pierre Chauvin Francisco de Oliveira Barros Júnior Jean Marc Von Der Weid Yuri Martins-Fontes Antonio Martins Milton Pinheiro Bernardo Ricupero Walnice Nogueira Galvão Henri Acselrad Gerson Almeida Armando Boito Michel Goulart da Silva Ricardo Antunes Jorge Luiz Souto Maior Vladimir Safatle João Sette Whitaker Ferreira Marilia Pacheco Fiorillo João Carlos Salles João Carlos Loebens Ari Marcelo Solon Benicio Viero Schmidt João Lanari Bo Paulo Martins Atilio A. Boron Gilberto Maringoni Elias Jabbour Gabriel Cohn Michael Löwy Daniel Brazil Caio Bugiato José Geraldo Couto Eliziário Andrade Luiz Carlos Bresser-Pereira Samuel Kilsztajn Tarso Genro Jorge Branco Chico Whitaker André Singer Liszt Vieira José Machado Moita Neto Daniel Costa Luiz Bernardo Pericás Daniel Afonso da Silva Renato Dagnino Alexandre de Freitas Barbosa Berenice Bento João Adolfo Hansen

NOVAS PUBLICAÇÕES