Marcel Proust — o tempo como expressão de si

Majd Masri. Oculto n. 2, 2022
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Por RONALDO TADEU DE SOUZA*

Proust não quis escrever um livro que meramente descrevesse a passagem das coisas que enredam a convivência entre os indivíduos

“Horizonte de exterioridade radical: excesso; expropriação; um lugar outro absoluto”
(Denise Ferreira da Silva, A dívida impagável).

Do final do volume seis para o início do volume sete, de A Fugitiva para o O Tempo Redescoberto, respectivamente, do Em Busca do Tempo Perdido, consta a seguinte passagem. “— Tudo isso já vai longe — conclui —. Nunca mais pensei senão em Robert, desde que ficamos noivos. E, veja você, nem se quer esse capricho de infância é o que mais censuro a mim mesma… […] O dia inteiro, na mansão de Tansoville, um pouco rustica demais, com jeito de pouso entre dois passeios ou durante um aguaceiro, uma dessas casas cujas salas lembram caramanchões, e onde, nas paredes dos quartos, aqui as rosas do jardim, os pássaros das arvores ali, aproximavam-se e nos faziam companhia — cada um por sua vez —, porque as forravam velhos papeis, nos quais cada rosa se destacava tanto que poderia, se fosse viva, ser colhida, cada pássaro engaiolado e domesticado, sem nada das grandes decorações dos quartos de hoje, nas quais, sobre fundo prateado, todas as pereiras da Normandia se vem perfilar em estilo japonês, para alucinar as horas que passamos na cama, o dia inteiro eu ficava em quarto, que dava para a folhagem verde do parque e os lilases da entrada, para as folhas verdes das grandes arvores à beira da agua, brilhantes de sol, e para a floresta de Méséglise. Só olhava, afinal, com prazer tudo isso, porque dizia de mim para mim: “é bonito ter tanto verde na janela do meu quarto” até o momento em que, no vasto quadro verdejante, reconheci, pintado ao contrário em azul-escuro, por estar mais longe, o campanário da igreja de Combray, não uma imagem de campanário, mas o próprio campanário, que, pondo assim sob meus olhos a distância das léguas e dos anos, viera, em meio da luminosa verdura e com tom inteiramente outro, tão sombrio que parecia apenas desenhado, inscrever-se no losango de minha janela. E se saia um instante do quarto, no fim do corredor orientado de modo diverso, percebia, como uma banda escarlate, o revestimento de uma saleta, simples mousseline, mas vermelha, e prestes a incendiar-se se a tocava um raio de sol”.

O destino da expressividade desse trecho de Marcel Proust, que como disse, encontra-se na passagem do volume seis para o volume sete do Em Busca do Tempo Perdido, está nos quadros de vida extasiados do narrador. Daí que o tempo não possa ser mais que — o instante do palavreado de cada frase do parágrafo, da imanência das metáforas mesmas e do átimo de articulação dos sinais. Na verdade, o que Marcel enuncia é a possibilidade de duração das coisas constitutivas de nossa vivência não serem estabelecidas pelo enquadramento exterior de um mundo não-autêntico; dos fatos de irreconciabilidade com os modos de vida impuserem as suas determinações.

Notemos no que segue o conteúdo de sentidos da última frase da alínea, nela altercam-se os elementos “mousseline” e “um raio de sol”. De modo que a posição de fineza inerte do tecido usado para a feitura de indumentárias é perturbada pela presença incandescente dos artifícios da natureza. Entretanto, o personagem-narrador propõe um jogo de inversões latentes; aquilo que não é factível de ser engendrado pelo impulso do humano, passa no ponto da frase a momentos de apropriação pela pujança do si-de-Marcel, e o que está na ordem dos expedientes de manuseia (humano) transforma-se em objeto naturalizado.

Quando Marcel Proust faz seu protagonista (que também tece o enredo rememorativo do tempo ao qual se procura) locucionar que um feixe de sol arde a urdidura da vida (“prestes a incendiar-se se tocava um raio de sol”) de tal maneira a imaginar no significado da construção a proximidade terrenal posta pelo caráter em-si de Marcel — sem antes instituir adjetivações, “brilhantes” e “simples”, exprimindo ora a afluência de percepções variadas, ora o basilar inamovível — que se representa como algo metamorfoseado em ordenação fixa e não-meneado para os deslocamentos interativos, mas prestes a arrebentar pelo extravasamento do eu, ele desejou que seu romance fosse lido enquanto seivas de temporalidade exuberante da outridade em-nós.

Com efeito; a estrutura da prosa proustiana, pelo recurso do narrador, transfigura-se em articulação imediata — que no desespero de Marcel para forjar a ele através da apreensão do passado pela recordação inverte e reverte (novamente) o signo vivencial das coisas humanas e da natureza.

No interior do parágrafo a sequência de elaboração da loquacidade de-si é estendida ao exagero aprazível que percorre todo o Em Busca do Tempo Perdido. “Só olhava, afinal, com prazer tudo isso, porque dizia de mim para mim […]”. O segredo dessa frase está no derramamento do eu sobre ele mesmo. Proust, não pretendeu circunscrever o-si de Marcel ao subjetivismo burguês (evidências de convenções esnobes); por toda a trama fraseada infunde-se cogitações da experiência — o dizer de “mim para mim” metamorfoseia a maciça forma gramatical-pronominal oblíqua em lirismo fascinado pelo arrostar (mesmo) entusiasmado do narrador.

Não estamos mais na presença de um movimento circular que se dobra sobre si; ergue-se na sentença traços de figuras ideais que dizem de-si para-si como se esse fossem, e para Marcel Proust o eram…, a realidade derivada do próprio significado intrínseco da composição literária. Ora, não é fortuito o influxo de secularidade que o “afinal” faz entremear na construção. Por certo, o “olhar com prazer” que enquanto tal transmitiria excitabilidade de autolouvação (sempre esnobes), passa na conformação do trecho, a simbolizar momentos de encantamento intensificado pela temporalidade de nossos sentimentos. No andamento deste fraseado proustiano — as palavras são ondulações fogosas que exprimem a inquietude existencial de Marcel.

O personagem de Marcel Proust, que forja seu eu na outridade, a expressão de si, pulsava poeticidade. Pois, ele transmuta a unidade da natureza — em formas históricas de subjetividades. Pássaros; árvores; folhagem; água; sol; floresta; aguaceiro (da chuva). Isolados: são elementos determinados de um modo ordenado sem vida, configurando posições de parca intuição estética. Não ocorreu a Marcel a apropriação dessas circunstâncias naturalizadas sem que ele se deixe de precipitar sobre elas, realidades encantadas.

Na articulação imanente do parágrafo está densificada toda a constelação poética do Em Busca do Tempo Perdido; o juízo que transcorre em cada entrecho é pontilhado de ilusões viventes — é como se a natureza não representasse mais a si, e sim a esperança sonhadora do narrador na felicidade de-si no-outro de-si. No entanto, Marcel Proust somente consegue com que a natureza se faça diversa dela mesma porque na execução do romance há a postulação indeterminada da linguagem.

De modo a compor formas universais de essência literária articuladas com a individualidade do narrador que ergue a cada ação elaborada — infinitudes de significados. Assim, aos pássaros estão “ali nas árvores” (não em-si-mesmos); as folhas verdes são trazidas por Marcel para o ângulo peculiar da janela do quarto — “o dia inteiro eu ficava em meu quarto, que dava para a folhagem verde” —; a água de componente químico com destino derradeiro passa a cintilar peculiaridades estruturando o tempo em pequenos instantes — ora ela está próxima de “grandes árvores”, ora irradia por si os raios “brilhantes do sol” —; o sol sempre disposto no cosmo adquire, pela vivacidade do enredo proustiano feições próprias de um outro da presença — os momentos “brilhantes de sol […] só olhava, afinal, com prazer tudo isso”. No derramamento de poeticidade do trecho, percorre autopercepções de dissolubilidade de tudo aquilo que se põe distante da verdade do tempo.

Pois, Marcel Proust não quis escrever um livro que meramente descrevesse a passagem das coisas que enredam a convivência entre os indivíduos (e eles próprios); a rememoração de-si que emerge no interior de sua obra é a repercussão de uma angústia em lançar ao mundo as mais belas partículas de subjetividade — o desmanchar-se do eu na experiência material tinha a esperança autêntica de reconhecimento, e isso só poderia ser logrado com a expressão de-si no decurso da vivência.

Dessa maneira, é no âmago de entrecruzamento de cenas que a passagem analisada, exerce o artifício sublime de exprimir o si-mesmo no tempo. Ela (a passagem, o parágrafo), concernente à organização formal do Em Burca do Tempo Perdido, inicia o périplo sentimental de Marcel em direção ao tempo que se descobre. Filologicamente — Marcel Proust traça a convivência apaixonada entre a louvação e fabulação. Essas duas instâncias constitutivas do cerne vocabular humano, são rememoradas por Proust como deslocamentos do eu na temporalidade. São pontos exuberantes aos quais as palavras que concebem a gênese, a abertura, de O Tempo Redescoberto passam de meros modos de interação linguística entre indivíduos a súbitas torrentes de inspiração.

Marcel sempre esteve angustiado por encontrar esse momento, em que no mesmo átimo de-si no tempo, resguardasse sua fleuma compassiva e se alçasse ao esplendor inflamado da narrativa inaudita; louvar “a mansão de Tansonville”, “as pereiras da Normandia”, “a floresta de Méséglise”, “o campanário da Igreja de Combray” — foram gestos fundantes de um personagem arrebatado pela necessidade de afirmação subjetiva. O mundo de Marcel-e-de-Proust, todavia, somente exibi sentido literário (e estético…) no palavreado que transborda sua identidade imediata — no fabular.

Trata-se de arranjos inventivos, a estrutura mesma do enredo que é estilizado, incitados pela contingência do narrador. Pois, a cada tempo que irrompe: não é mais a mousseline, “mas a [mousseline] vermelha”, o campanário é tanto sua “imagem” como “o próprio campanário” eternizado na realidade interior de Marcel, e os pássaros (concretos e reais) “engaiolados e domesticados” eram elevados de acordo ao decorrer dos dias, das horas e dos minutos a representações apreciáveis na dialética do tornar-se-quem-se-é.

No interior do trecho Marcel afirma, após comentar sobre a igreja de Combray; “pondo assim sob meus olhos a distância das léguas e dos anos”. Na configuração superficial é a vida dele que está, permanentemente, enredada pelo “tempo” — não o seu tempo autêntico — naturalizado. O drama aqui, estava em ser um objeto imerecido diante das várias maneiras pelas quais a vivência transcorre ocultando a-si; o que mais atormentava o personagem de Marcel Proust ao longo de todo o Em Busca do Tempo Perdido era seu sofrimento por não conseguir em diversos entrechos da narrativa se defletir dos redemoinhos aos quais era lançado pelas próprias circunstâncias de existir.

E pode-se ler a obra proustiana como o incessante e corajoso empenho do sujeito em se alçar com denodo poético às virtudes excelsas do tempo, pois a recorrência ao qual presenciamos os passos aflitivos de Marcel e de sua insistência em mesmo assim percorrê-los expressa tal exigência.

Contudo, a construção imanente da sentença significa que os elementos estruturantes do real decorrido — “a distância”; “[as] léguas”; “os anos” — são, com o fervor da subjetividade moderna, a urgência ao qual a persecução pela felicidade permite aos olhos do eu colocar sob ele — por vezes chegando à intangibilidade nos modos de sentir, tal a formosura da elaboração — as “cadeias do destino” (Walter  Benjamin); somente por ser desesperado consigo mesmo, fascinado pela outridade feminina (Sra. de Guermantes, Gilberte, Albertine, Andrée, a avó a quem não sabemos o nome), encantado com a beleza que se esvai, afetado pelos breves ensejos de prazer, incontido diante da possibilidade de tecer uma história de paixão — é que permitiu o completivo de Marcel Proust a simbolizar a-invocação-de-quem-ele-é. (O das ding “distância”, o das ding “léguas” e o das ding “anos” não eram mais os mesmos após Marcel, e o desejo de reconhecimento que acalentava, os ter olhado: eram o devir de-si explicitado no todo da temporalidade. [A referência  ao “das ding” é a contraposição ao “die sache” que Hegel faz no prefácio à Fenomenologia do Espírito, esse é a unidade do todo no devir do tempo e aquele é a coisa, meramente].)

O quadro multifacetado instituído pelo protagonista de Marcel Proust, são como preciosos andaimes que sustentam a trajetória do si-mesmo em atravessar o abismo do universalismo da civilização burguesa (naturalizada). Testemunhando momentos de esvaziamento na descrição frágil da natureza, de maneira a se sentir envolvido pelos nexos não-humanos de nossa vida, Marcel vislumbrou que a negação desse mundo somente seria alcançada com o mimetismo veemente.

Era preciso para os sentidos do sujeito que vai se autoconformando ao longo das páginas do romance, uma disposição (alegórica) que tornasse factível ao leitor perceber que Marcel, e nessa medida toda a narrativa do livro do ensejo buscado enquanto manifestação de-si, não estava a difundir afetações (subjetivistas) quando impactado pelas formas de exibição inerte da natureza — nas circunstâncias de entrecruzamentos dos ápices de reconstrução apaixonada da existência de então, Marcel Proust fez sua criação literária demonstrar que é no excesso de nossas sensibilidades no tempo de-si na-outridade a esperança de constituirmos modos de ser que não estejam submetidos aos implacáveis universalismos (naturalizados da era burguesa).

As vicissitudes estético-emotivas de Marcel, presentes no ponto comentado, é a verdade apreendida de uma subjetividade exprimida — e que se arrebata a-si — no transcurso do existir, que jamais aceitou o cinismo (é a contraface a ele…) ao qual se rendem Gilberte e Saint-Loup ao contraírem matrimônio na prosa final do volume VI, A Fugitiva — “Gilberte”, a primeira eventualidade do amor desesperado do eu proustiano no afinco de alcançar felicidade, “se convencera de que o nome de marquês de Saint-Loup era mil vezes maior que o do de Orleans”.

O tempo expressado em-si foi a rebelião que Marcel Proust quis que entendêssemos e cultivássemos para a superação definitiva dessa classe. Ora, o primeiro parágrafo de O Tempo Redescoberto que analisei, é o aniquilamento, a expropriação absoluta para falar com Denise Ferreira da Silva, de uma civilização burguesa que esmaga todas as modalidades possíveis do reconhecimento de-si na liberdade não-idêntica, a qual todos e todas nós merecemos, sobretudo as/os Françoises* de nosso mundo.[1]

*Ronaldo Tadeu de Souza é pós-doutor em ciência política pela USP.

Notas


[1] Certas formulações interpretativas presentes no texto são estilizações a partir da abordagem de alguns autores. Dentre eles estão: Antonio Candido – Realidade e Realismo (via Marcel Proust). In: Recortes, ed. Ouro sobre Azul, 2004; Denise Ferreira da Silva – A Dívida Impagável, ed. Oficina de Imaginação Política, 2019 [Há uma edição mais recente pela Zahar Editores, 2024]; Derwent May – Proust, ed. Fondo de Cultura Económica [Breviários], 2001; Hegel – Prefácio e Introdução. In: A Fenomenologia do Espírito (Col. Os Pensadores), ed. Abril Cultural, 1974; Robert Pippin – On “Becoming Who One Is” (and Failing): Proust’s Problematic Selves. In: The Persistence of Subjectivity: On the Kantian Aftermath, ed. Cambridge University Press, 2005; Walter Benjamin – Dois Poemas sobre Friedrich Hölderlin, Sobre a Linguagem em Geral e Sobre a Linguagem do Homem, Destino e Caráter. In: Escritos sobre Mito e Linguagem, ed. Editora 34. Sobre o Em Busca do Tempo Perdido, a edição é a da editora Globo.

* Françoise, foi (e é) a eterna “empregada” de Marcel, o narrador de Proust. Ela é a única personagem no romance a acompanhá-lo ao longo das mais de duas mil e quinhentas páginas que formam o Em Busca do Tempo Perdido


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