Certidão de nascimento

Louise Weiss (Jornal de Resenhas)
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por RONALDO TADEU DE SOUZA*

Comentário sobre o livro “Ulisses”, de James Joyce, à luz de Burckhardt e Balzac.

Fascinação envolve o dia 16 de junho a cada ano. Poderia ser outra data particular qualquer – dentre as inúmeras que compõem nosso calendário. Ou mesmo; a expressão simbólica de tantas efemérides de nossa existência histórica. O décimo sexto dia do sexto mês de todo ano é um acontecimento no mundo literário e das humanidades.

Enquanto a era moderna percorreu ao menos seis séculos – ou o tempo do homem do humanismo renascentista narrado na prosa elegante (e elitista) de Jacob Burckhardt, que disse serem eles, “os homens multifacetados [deste período inaugural] dotados de verdadeira universalidade” [1] – e a sociedade moderna foi delineada, se seguirmos Hobsbawn, no mundo da comédia humana de Balzac [2] – o monetarismo cruel do senhor Grandet, a ambição desmedida das filhas de Goriot e na comunidade da eficiência que esmagou Luciano Rubempré – que representava o fim do século XVIII e o pós-revolução francesa no século XIX; o sujeito moderno irrompeu no dia 16 de junho de 1904. Crises, guerras, revoluções e o dia de Leopoldo Bloom.

Nossa subjetividade (moderna) tem um dia para ser comemorado: é todo dia 16 de junho. A data de uma experiência, tensamente, condensada em 19 horas. 16 horas para os mais modernos. O espanto que fascina é porque as 19 horas da vida de Leopoldo Bloom estão espalhadas pelas mil páginas da linguagem joyceana; o Ulisses poderia, ao leitor desavisado, conter a era de Burckhardt e o mundo de Balzac – mas ele é a subjetividade, é o sujeito moderno em sua persistência. É, para o desespero dos conservadores e da direita que quer impor a violência da ordem natural imutável (e com gradações hierárquicas), o que o poeta Augusto de Campo chamou de bolchevismo literário. Nossa época: começa neste evento linguístico arrebatador que é o Ulisses de James Joyce.

É que o teor da caminhada de Leopoldo Bloom vai sendo tecida com aguilhoadas de vento, de sorte que as “conversações desgarradas”[3] expressam a infinitude da história. Todas as histórias; quer dizer a concretude da fala que torna “Edith, Ethel, Gerty, Lily” personagens de si mesmas: são emergências narrativas do tempo multifacetado. São fantasmas da linguagem que ao invés de surgirem do além-natureza – espantam por desejarem contar-nos uma história. – “Conte-nos uma história, senhor.” – “Conte, senhor, uma de fantasmas.” Com isto, a forma da locução não está fixa no registro das convenções moderadas da gramática dos salões.

Ulisses é o romance em que as palavras são de todo mundo. Ora; a palavra, o conteúdo da história de cada sujeito, é a transmigração da voz na vida do tempo. De modo tal que, seja de dia; seja depois da noite; no quarto; na “rua Lime”; na estação postal telegráfica”; na “rua Townsend”; nos chalés do Brady a voz, o teor de si no mundo aparece como momento constitutivo da experiência do real. Fincou-se, então, o enredo ao qual todos poderiam dizer (devem dizer e de fato disseram…), “eu tenho tempo”. A vida é este tempo transbordado em que o tempo foi desestruturado; em que ele foi tornado um apetrecho humano – um algo subjetivo “comoquerquelhechames”. Rompeu James Joyce com o não-tempo, a não-fala e a não-voz dos “sociáveis”, dos “banco[s]”, dos “padres”, do “evangelho”.

Aqui estamos ainda nas primeiras horas, minutos, segundos das 19 horas; de quando “Buck Mulligan vinha do alto da escada”. Os sujeitos que despertaram são, já, em-si e para-si na outridade, “velhotes”. Mas uma velhice tensa e com flores nas mãos, e não uma velhice que porta nas mãos a valise que se leva na missa, no banco, no escritório de advocacia. São as flores e os espinhos das palavras e idiomas do mundo – do latim, do ioruba, do inglês, do alemão, do Xhosa/Bantu. É o tempo da velhice da vida, da subjetividade de Bloom, que quer sentar em qualquer “lugar vago” e narrar a história celestial dos indivíduos, dos grupos, das classes. Quer contar a história dos dramas de Shakespeare; da metafísica de Sócrates e porquê não do “homem de ciência” como efeito do “homem da rua”.

Irrompe na tessitura do Ulisses, então, o trovão da rebeldia da linguagem na história. Pois Bloom, Dedalus, Mulligan, Gerty, Wylie, Tupper, Martha, Terry, Alf – recebem todos os jornais “vindos da Europa”. (Os russos, inclusive.) Vê-se no Ulisses, assim, a angústia poética pela expressividade da palavra enquanto símbolo humano pertencente a todos os homens e mulheres; na a forma-jornal revela-se a infinitude acessível aos modernos que torna a vivencia algo do âmbito da temporalidade existencial. Na fabulação joyceana é possível vislumbrarmos a imanência de uma língua múltipla – justaposta, belamente confusa como uma assembleia de sovietes – de uma língua que é acesso à “ressureição [da] vida pela facticidade de todos no um; no diverso espesso. Pelo que, para a subjetividade pós-Burckhardt e contra a sociedade balzaquiana “a língua por certo era uma outra coisa”.

Leopold Bloom percebeu sua linguagem nas 19 horas do dia 16 de junho de 1904. Ele é que enuncia no Ulisses, melhor dizendo, ele que impulsiona a Stephen Dedalus a reconhecer que o céu pode não existir para a personalidade humana. “– Creio que está no céu se céu existe”. Se o céu (transcendente e imutável) é passível de não existir para o sujeito da modernidade, o que resta a fazer, então? Resta viver a derrisão transbordante do “Deus Todo-Poderoso”. Nisso é nos factível contemplar o significado da narrativa de James Joyce; nos seus entrechos passarão o desejo da linguagem verdadeiramente universal em dar “um basta” no passado. A poesia contará o presente que floresce na Espanha, na Inglaterra, na Irlanda, na Rússia, no Congo, nas Américas, a do norte e latina.

A forma literária desta percepção joyceana, da ânsia existencial de Leopold Bloom na Dublin de 1904, está condensada na incendiária frase de advertência: “Diga-me quem fez o mundo”. E no enredo alegórico do Ulisses reorienta-se o entendimento de quem fez (e faz) o mundo pela invocação do negativo da criação. O mundo é o sorvo do homem, da mulher. Do não que “um sujeito conta ao outro e assim por diante” conformando a voz disruptiva da comunidade que vem. De modo que o não que os sujeitos contam e narram um ao outro é aquele “misturar dentro” da poética de Joyce que recusa o império dos “Habsburgos”; a “elite” europeia; o “xerife-mor municipal”; o “presidente da Corte de Apelação”.

Ora Leopold Bloom, Stephen Dedalus, Buck Mulligan e a subjetividade moderna são a irrisão do passado; eles são a alegria da feição real de um falar que quer a “refeição mais barata [para todo] mundo” – eles querem e dizem com denodo estilístico, “Alegria: Comi: alegria”. Isto é a cesura do agora em estrutura verbalizada (comi…) não-idêntica, pois é a liberdade de todos no um/diverso que constitui a forma da narrativa do Ulisses. São 19 horas do tempo do “Eu. E eu agora”.

Com isto, quer James Joyce enfrentar não o tempo: mas o ser natural no tempo. A forma-romance-de-vanguarda incita o desfazer das convenções; faz desabar o teor do além-mundo – da transcendência, da superioridade natural divinizada – e recria a voz. (Recria a fala, a fala de nós mesmos na multiplicidade radical e da comunidade aberta; “Mas [a fala] age. Age fala […] Adiante.”) Dizendo a fala age é dizer que o romanesco da vivência literária, da vivência da língua no real, conforma o enredo pelo qual “todos os lados da vida deveriam ser representados” de sorte a que no Ulisses o sorrir da vida tinha de ser um evento “para todos os lados igualmente”.

Por isso o tempo, um tempo como desafio dos costumes, dos hábitos, das cínicas formalidades de um salão dos Guermantes ou de um processo jurídico (Proust e Kafka) e das normas impostas é perturbador para as disposições conservadoras e tradicionalistas. Joyceano, o sujeito moderno sabe que para vir abaixo a “cortina pesada” nossas elucubrações poéticas não podem se estender “por muitos dias, dia após dia”.

Que o “mundo de fora” invertido na potência do Eu tem de transfigurar o tempo como caminho diário, em temporalidade lírica e arrebatadora que desfaz as crenças estabelecidas – é o tempo do hoje, a temporalidade do presente, que faz as nações se curvarem perante a irrupção de “(uma imoralidade nacional [que se faz] em três orgasmos”). Com efeito, ter orgasmos – estamos no meio do dia ainda – é falar aos “sacerdotes” que fingem a paz, é falar como um rastilho incandescente que nós louvamos nós mesmos como deuses: “Louvemos nós os deuses”. É a nossa condição; condição de um “tempo bastante para caminhar” por minutos que abalam a história; tempo de  missão em Petrógrafo, Baviera, Carolina do Norte, Haiti e Bahia. Assim, embora Ulisses narre a caminhada de um dia de Leopold Bloom, sua poeticidade desnuda um modo de vida possível – vindouro enquanto experiência social futura. É a experiência de uma vivência (livre) que pode ir à opera sem vestidos de baile; e também “nenhum dinheiro tampouco” é necessário para isto.

Pois é uma existência forte, com nomes ditos e falados; uma circunstância da linguagem em relação a qual as subjetividades têm de dizer – “uma rapariga saudável…” e que o “filh[o] [do general] do regimento” é um não-irlandês e deve ser afastado de “perto da bica de cerveja”. Isso pode ser sentido na urdidura insurrecional do romance. O Ulisses é a representação estética do erguimento da voz: “Ai-ai!” dirão alguns. É que “a voz se erguia, suspirava, modulava: forte, cheia, brilhante, audaz”. De modo que é um tempo não do homem, mas do “Eu. Ele. [Ela]. Velho. [Idosas]. Jovem”; é a temporalidade em que se passou em 19 horas da Finlândia para abril, é o momento Joyceano do “fluxo, efusão, fluido, jorralegre, pulsipulso. Eia!”. É o tempo da “língua do amor”, “–… raio da esperança”. Desespero dos conservadores. É “Tempo de Bloom” – ele e “nós estamos aqui de pé”[4].

*Ronaldo Tadeu de Souza é pesquisador de pós-doutorado no Departamento de Ciência Política da USP.

Notas

[1] Jacob Burckhardt A Cultura do Renascimento na Itália, p. 152. São Paulo, Companhia das Letras, 1991 (https://amzn.to/47tDJBA).

[2] Eric Hobsbawn. A Era das Revoluções. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2009 (https://amzn.to/45pmsrG).

[1] Todas as frases, expressões e palavras (exceção a de Burckhardt que está já referenciada e do trecho do poema de Jacques Rouman) entre aspas são do Ulisses de James Joyce. Utilizei no artigo a edição consagrada da Editora Civilização Brasileira com tradução de Antônio Houaiss. Há opções mais recentes de traduções como a de Caetano Galindo (Companhia das Letras).

[2] Esta passagem é do poema Sales Nègre de Jacques Rouman que inspirou o título de Les Damnés de la Terre de Frantz Fanon. Ver o excelentíssimo livro de Deivison Mendes Faustino Nikosi – Frantz Fanon: um revolucionário particularmente negro, Ciclo Continuo Editorial, 2018 (https://amzn.to/3YDqg6c).

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

MAIS AUTORES

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Marcus Ianoni Alysson Leandro Mascaro Ladislau Dowbor João Carlos Salles Caio Bugiato Eugênio Bucci Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Vanderlei Tenório Luiz Renato Martins Sandra Bitencourt José Micaelson Lacerda Morais Chico Whitaker Valerio Arcary Valerio Arcary Thomas Piketty Érico Andrade Antônio Sales Rios Neto Tarso Genro Lucas Fiaschetti Estevez Leonardo Avritzer Marcelo Guimarães Lima Eleonora Albano José Raimundo Trindade Paulo Capel Narvai Andrés del Río Jorge Luiz Souto Maior Paulo Martins Dennis Oliveira João Carlos Loebens Antonio Martins Salem Nasser Tales Ab'Sáber Daniel Brazil Fábio Konder Comparato Luís Fernando Vitagliano Michael Löwy Gerson Almeida Celso Favaretto Alexandre de Freitas Barbosa Flávio R. Kothe Marcos Silva Juarez Guimarães José Costa Júnior Fernão Pessoa Ramos Atilio A. Boron Rodrigo de Faria Everaldo de Oliveira Andrade Eugênio Trivinho Bernardo Ricupero Marjorie C. Marona Dênis de Moraes Boaventura de Sousa Santos Alexandre Aragão de Albuquerque Bruno Machado Marilena Chauí Ricardo Musse Maria Rita Kehl Igor Felippe Santos Bento Prado Jr. Andrew Korybko Ronald León Núñez Luiz Marques Gabriel Cohn Bruno Fabricio Alcebino da Silva Armando Boito Benicio Viero Schmidt Luiz Eduardo Soares Daniel Afonso da Silva Paulo Nogueira Batista Jr Celso Frederico Otaviano Helene Carlos Tautz Chico Alencar Gilberto Lopes Leonardo Boff Lorenzo Vitral Carla Teixeira Vinício Carrilho Martinez Marcelo Módolo Walnice Nogueira Galvão José Geraldo Couto Fernando Nogueira da Costa Francisco de Oliveira Barros Júnior Ronaldo Tadeu de Souza Ronald Rocha Sergio Amadeu da Silveira João Sette Whitaker Ferreira Henri Acselrad Leonardo Sacramento Berenice Bento Ricardo Abramovay Jorge Branco Michel Goulart da Silva Daniel Costa Claudio Katz Remy José Fontana Vladimir Safatle Marilia Pacheco Fiorillo Ari Marcelo Solon Manuel Domingos Neto João Paulo Ayub Fonseca Jean Marc Von Der Weid Alexandre de Lima Castro Tranjan Eduardo Borges Milton Pinheiro José Luís Fiori André Singer Jean Pierre Chauvin Samuel Kilsztajn Rubens Pinto Lyra Kátia Gerab Baggio Francisco Fernandes Ladeira Manchetômetro Afrânio Catani João Adolfo Hansen Mário Maestri Luciano Nascimento Michael Roberts Plínio de Arruda Sampaio Jr. Yuri Martins-Fontes Lincoln Secco João Feres Júnior Annateresa Fabris Luiz Carlos Bresser-Pereira Ricardo Fabbrini Anselm Jappe Osvaldo Coggiola Gilberto Maringoni Paulo Fernandes Silveira Eleutério F. S. Prado João Lanari Bo José Machado Moita Neto Eliziário Andrade José Dirceu Julian Rodrigues Flávio Aguiar Ricardo Antunes Matheus Silveira de Souza Elias Jabbour Henry Burnett Luiz Roberto Alves Leda Maria Paulani Paulo Sérgio Pinheiro André Márcio Neves Soares Heraldo Campos Marcos Aurélio da Silva Antonino Infranca Priscila Figueiredo Denilson Cordeiro Luis Felipe Miguel Luiz Bernardo Pericás Francisco Pereira de Farias Airton Paschoa Renato Dagnino Slavoj Žižek Luiz Werneck Vianna Mariarosaria Fabris Tadeu Valadares Liszt Vieira Rafael R. Ioris

NOVAS PUBLICAÇÕES