A transformação da religião em direito

Imagem: Emre Can Acer
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Por THIAGO FELICIANO LOPES & ANTONIO BARSCH GIMENEZ*

O que levam políticos proporem normas como a proibição do casamento entre pessoas do mesmo sexo, mesmo sabendo que pode causar uma crise entre os poderes

Nas últimas semanas, (mais) um ocorrido em Brasília tomou os noticiários: a Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família da Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei (PL) 5.167/2009, que proíbe o casamento entre pessoas do mesmo sexo, contrariando, inclusive, o atual entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a matéria, o qual julgou em maio de 2011 a ADPF nº 132-RJ e a ADI nº 4.227-DF e decidiu ser irrelevante esse critério para a constituição do casamento.

Ainda assim, a matéria ainda precisa passar por outras duas comissões temáticas antes de ser mandada para o Senado Federal para nova apreciação. Apesar de acreditarmos que, em algum momento do Processo Legislativo, esse PL cairá; e, mesmo que aprovado, será declarado inconstitucional pelo STF, que apesar de não legislar, por ser quem determina a (in)constitucionalidade das normas, seu entendimento é vinculante, normativo.

De qualquer maneira, vale a pena observar e analisar os motivos que, provavelmente, levam os políticos a proporem este tipo de norma, mesmo sabendo que pode causar uma crise entre os Poderes.

Como normalmente é o caso dos políticos que exercem sua função mediante mandato, o motivo principal é eleitoreiro! Com a expansão do conservadorismo no Brasil, esses grupos e seus políticos sabem que há demandas que visam o retrocesso e, por isso, mesmo que não seja aprovado tal PL, dá certa relevância aos responsáveis por ele e também aos que o apoiaram.

Max Weber nos entrega uma possível explicação deste comportamento de parte da sociedade brasileira ao falar sobre direito (Recht) e convenção (Konvention), o autor nos dá possíveis explicações. Dado o seu individualismo metodológico, “convenção” é a influência da aprovação ou da reprovação por outros indivíduos sobre o comportamento do agente (WEBER, 2000, p. 215).

“[…] Segundo toda a experiência histórica, a partir da ‘convenção’, da aprovação ou reprovação do mundo circundante, desenvolvem-se sempre, enquanto é forte a crença religiosa, a esperança e a ideia de que também os poderes sobrenaturais recompensarão ou punirão aquele comportamento aprovado ou reprovado pelo mundo circundante. Ou também – em casos adequados – a suposição de que não apenas o diretamente atingido, mas também o mundo circundante poderia ter de sofrer com a vingança daqueles poderes sobrenaturais, sendo necessário, portanto, reagir – ou cada um individualmente ou mediante um aparato coativo da associação.” (WEBER, 2000, p. 217)

Na Bíblia, não faltam histórias nas quais uma sociedade inteira foi punida por atitudes reprovadas por Deus, textos nos quais, aparentemente, esses grupos políticos-religiosos se baseiam para fundamentar esses tipos de ações. Alguns exemplos dessas histórias são: o Dilúvio (Gênesis, 6:5-7, NVI); a destruição de Sodoma e Gomorra (Gênesis, 19:12, NVI): e ainda a ameaça que Deus fez a Moisés de destruir o povo por construir um bezerro de ouro na ausência de Moisés (Êxodo, 32:9-10, NVI).

Ao focarem nesse aspecto do Cristianismo, faz-se um retorno a um estado de consciência anterior, em termos hegelianos. O mundo grego pagão, centrado na figura da pólis, é fundado com base na religião, cujas regras estritas não podem ser descumpridas para não incorrer na ira dos deuses protetores da cidade e, assim, levá-la à ruína. Todos os campos da vida do indivíduo eram regulados pelas regras da religião, inexistindo a liberdade individual, uma vez que todas as ações do indivíduo devem se voltar ao interesse da cidade, a ponto de vedar até mesmo o celibato (COULANGES, 2004, p. 198-199 e 284-287).

Trata-se, portanto, do universalismo do Estado grego, que se impõe de forma absoluta sobre a particularidade dos cidadãos. O cidadão grego é, pois, uma figura trágica, pois deve escolher entre as suas dimensões particular e universal, mas é indissociável de ambas, o que o leva a ser um criminoso independentemente do que escolher, pois viola a lei particular da família ou a lei universal da cidade; não é à toa que o maior expoente do mundo grego é a tragédia de Antígona, representante da lei particular da família, cujo embate é com Creonte, rei de Tebas, a máxima autoridade da religião sacerdotal do Estado grego universal (KOJÈVE, 1947, p. 103-104 e 185-188).

O cristianismo põe fim à pólis grega: ele é a morte da concentração da sociabilidade na cidade ao ampliar os horizontes para o gênero humano, assim como representa a separação do mundano com o espiritual, permitindo que Direito e Estado se desenvolvessem independentemente da religião e criando o embrião da liberdade individual a partir da liberdade da alma (COULANGES, 2004, p. 482-489). Por conta disso, ele representa uma revolução na história da consciência humana, é uma religião particularista em oposição ao universalismo pagão, além de representar a criação ideal da Aufhebung entre a particular e universal, cuja realização está restrita ao Além (Jenseits), isto é, ainda não pode ser concretizada no mundo terreno (KOJÈVE, 1947, p. 191-192).

Quando é feito um apelo ao respeito dessa moral e a transformação em lei, o cristianismo, que deveria representar um estágio posterior do desenvolvimento da consciência, torna-se o paganismo grego: o medo de fazer algo que desagrade a Deus e a desgraça recaia sobre essa comunidade ressurge, tenta se misturar novamente o direito e o Estado com a religião, impondo a universalidade do culto sobre os particulares; a tragédia se repetirá. Busca-se uma inversão não apenas do capítulo VIII da Fenomenologia do Espírito, mas um retrocesso a uma das formas mais primitivas da autoconsciência.

No fim, parte dessa gente, realmente acredita estar protegendo o país.

*Thiago Feliciano Lopes é advogado.

*Antonio Barsch Gimenez é graduando na Faculdade de Direito da USP.

Referências


COULANGES, Fustel de. La cité antique: études sur le culte, le droit, les institutions de la Grèce et de Rome. Genebra: Arbre d’Or, 2004.

KOJÈVE, Alexandre. Introduction à la lecture de Hegel: lectures sur la Phénoménologie de l’Esprit. Gallimard, 1947.

WEBER, Max. Economia e Sociedade. Tradução de Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa. Brasília: UnB, 2000.


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