Por HERBERT MARCUSE*
Conferência proferida na Universidade de Stanford em março de 1974
Tomarei aqui a liberdade de começar e terminar com considerações um tanto pessoais. De início, apenas quero dizer que este foi o único convite para dar uma palestra que aceitei durante todo o ano acadêmico. A razão é muito simples. Acredito que o movimento de libertação das mulheres é talvez o movimento político mais importante e potencialmente mais radical de que dispomos, mesmo que a consciência desse fato ainda não tenha penetrado o movimento como um todo.
Explicação dos termos:
Princípio de Realidade
• a soma total das normas e valores que regem o comportamento em uma sociedade estabelecida, incorporados em suas instituições, relacionamentos, etc.
Princípio de Desempenho
• um Princípio de Realidade baseado em eficiência e vigor no cumprimento de funções econômicas e aquisitivas competitivas.
Eros, em contraste com Sexualidade
• sexualidade: pulsão parcial, energia libidinal confinada e concentrada nas zonas erógenas do corpo, principalmente sexualidade genital.
• Eros: energia libidinal em luta com a energia agressiva, buscando intensificação, gratificação e unificação da vida e do ambiente da vida: os Instintos* de Vida versus o Instinto de Morte (Freud).
Reificação, Verdinglichung
• a aparência dos seres humanos e das relações entre eles como objetos, coisas, e como relações entre objetos, coisas.
Agora, duas observações preliminares sobre a situação do movimento de libertação das mulheres, tal como o vejo. O movimento tem origem e opera no contexto da civilização patriarcal; segue-se daí que ele deve ser discutido inicialmente nos termos do status efetivo das mulheres na civilização dominada pelos homens.
Segundo, o movimento opera no contexto de uma sociedade de classes – eis o primeiro problema; as mulheres não são uma classe no sentido marxiano. A relação homem-mulher ultrapassa as divisões de classe, mas as necessidades e potencialidades imediatas das mulheres são, definitivamente, em grande medida condicionadas pela classe. No entanto, há boas razões pelas quais se deve discutir “mulher” como uma categoria geral oposta a “homem”. A saber, o longo processo histórico durante o qual as características sociais, mentais e mesmo fisiológicas das mulheres se desenvolveram diferentemente de, e em contraste com, as dos homens.
Aqui, cabe uma palavra sobre a questão de as características “femininas” serem socialmente condicionadas ou, de alguma forma, “naturais”, biológicas. Minha resposta é: para além das diferenças obviamente fisiológicas entre masculino e feminino, as características femininas são socialmente condicionadas. No entanto, o longo processo de milhares de anos de condicionamento social significa que elas podem se tornar uma “segunda natureza” que não é automaticamente alterada pelo estabelecimento de novas instituições sociais. Mesmo sob o socialismo pode haver discriminação contra as mulheres.
Na civilização patriarcal, as mulheres têm sido submetidas a um tipo específico de repressão, e seu desenvolvimento mental e físico foi canalizado em uma direção específica. Por estes motivos, um movimento independente de libertação das mulheres não é apenas justificado, mas também necessário. Os próprios objetivos desse movimento exigem, contudo, mudanças de tal magnitude na cultura material e intelectual que eles apenas podem ser alcançados por uma transformação no sistema social como um todo. Em virtude de sua própria dinâmica, o movimento está ligado à luta política pela revolução, pela liberdade de homens e mulheres. Isso porque sob e além da dicotomia masculino-feminino está o ser humano, comum ao masculino e ao feminino: o ser humano cuja libertação, cuja realização ainda está em jogo.
O movimento opera em dois níveis: primeiro, a luta pela plena igualdade econômica, social e cultural. Pergunta: tal igualdade econômica, social e cultural é alcançável dentro da estrutura capitalista? Voltarei a essa questão, mas quero propor uma hipótese preliminar: não há razões econômicas para que tal igualdade não seja alcançável dentro da estrutura capitalista, embora trate-se de um capitalismo amplamente modificado. Mas as potencialidades e objetivos do movimento de libertação das mulheres vão muito além, em direção a regiões que nunca poderão ser alcançadas em uma estrutura capitalista, nem na estrutura de qualquer sociedade de classes. Sua realização exigiria um segundo estágio, no qual o movimento transcenderia a estrutura em que ele agora opera. Nesse estágio “além da igualdade”, a libertação implica a construção de uma sociedade regida por um Princípio de Realidade diferente, uma sociedade em que a dicotomia estabelecida entre masculino e feminino é superada nas relações sociais e individuais entre seres humanos.
Assim, no próprio movimento está contida a imagem não apenas de novas instituições sociais, mas também de uma mudança de consciência, de uma mudança nas necessidades instintivas de homens e mulheres, libertos das exigências de dominação e exploração. E esse é o potencial mais radical e subversivo do movimento. Significa não apenas um compromisso com o socialismo (a plena igualdade das mulheres sempre foi uma demanda socialista básica), mas o compromisso com uma forma específica de socialismo que foi chamada de “socialismo feminista”. Voltarei a esse conceito mais adiante.
O que está em jogo nessa transcendência é a negação dos valores exploratórios e repressivos da civilização patriarcal. O que está em jogo é a negação dos valores impostos e reproduzidos na sociedade pela dominação masculina. E essa subversão radical de valores nunca pode ser o mero subproduto de novas instituições sociais. Deve ter suas raízes nos homens e mulheres que constroem as novas instituições.
Qual é o significado dessa subversão de valores na transição para o socialismo? E, em segundo lugar, essa transição é, de alguma forma, a libertação e a ascensão de características especificamente femininas na escala social?
Começando com a primeira pergunta, eis os valores que regem a sociedade capitalista: produtividade lucrativa, assertividade, eficiência, competitividade; em outras palavras, o Princípio de Desempenho, o domínio da racionalidade funcional que discrimina as emoções, uma moralidade dual, a “ética do trabalho”, que significa para a grande maioria da população a condenação ao trabalho alienado e desumano, e a vontade de poder, a demonstração de força e de virilidade.
Agora, segundo Freud, essa hierarquia de valores expressa uma estrutura mental em que a energia agressiva primária tende a reduzir e a enfraquecer os instintos de vida, isto é, a energia erótica. De acordo com Freud, a tendência destrutiva na sociedade ganha ímpeto na medida em que a civilização exige uma repressão intensificada para manter a dominação diante das possibilidades cada vez mais realistas de libertação, e a repressão intensificada leva à ativação de um excedente [surplus] de agressividade e à sua canalização em uma agressão socialmente útil. Essa mobilização total da agressividade nos é muito familiar hoje: militarização, brutalização das forças da lei e da ordem, fusão entre sexualidade e violência, ataque direto aos Instintos de Vida em seus esforços para salvar o meio ambiente, ataque à legislação contra a poluição, e assim por diante.
Essas tendências estão enraizadas na própria infraestrutura do capitalismo avançado. O agravamento da crise econômica, os limites do imperialismo, a reprodução da sociedade estabelecida mediante o desperdício e a destruição cada vez mais se fazem sentir e exigem controles mais intensos e ampliados para manter a população na linha, controles e manipulações que penetram até as profundezas da estrutura mental, até o reino dos instintos mesmos. Agora, na medida em que hoje a totalização da agressividade e da repressão permeia toda a sociedade, a imagem do socialismo é modificada em um ponto essencial. O socialismo, como uma sociedade qualitativamente diferente, deve incorporar a antítese, a negação determinada das necessidades e valores agressivos e repressivos do capitalismo como uma forma de cultura dominada pelos homens.
As condições objetivas para tal antítese e subversão de valores estão amadurecendo, e elas possibilitam a ascensão – pelo menos como fase transitória na reconstrução da sociedade – de características que foram atribuídas, na longa história da civilização patriarcal, ao feminino, e não ao masculino. Formuladas como a antítese das qualidades masculinas dominantes, tais qualidades femininas seriam a receptividade, a sensibilidade, a não-violência, a ternura, e assim por diante. Essas características aparecem, de fato, como o oposto da dominação e da exploração. No nível psicológico primário, pertenceriam ao domínio de Eros, expressariam a energia dos Instintos de Vida, contra o Instinto de Morte e a energia destrutiva. E surge aqui a pergunta: por que essas características protetoras da vida aparecem como características especificamente femininas? Por que as mesmas características não moldaram também as qualidades masculinas dominantes? Esse processo tem uma história de milhares de anos, durante os quais a defesa da sociedade estabelecida e de sua hierarquia dependia originalmente da força física e, assim, reduzia o papel da mulher, que era periodicamente incapacitada ao dar à luz e depois ter de cuidar dos filhos. A dominação masculina, uma vez estabelecida por esses motivos, se espalhou da esfera originalmente militar para outras instituições sociais e políticas. A mulher passou a ser considerada inferior, mais fraca, basicamente como suporte ou auxiliar do homem, como objeto sexual, como instrumento de reprodução. E só como trabalhadora ela teve uma forma de igualdade, uma igualdade repressiva, em relação ao homem. Seu corpo e sua mente foram reificados, tornaram-se objetos. E assim como o seu desenvolvimento intelectual foi bloqueado, o mesmo aconteceu com o seu desenvolvimento erótico. A sexualidade foi objetificada como um meio para um fim: procriação ou prostituição.
Uma primeira contratendência tornou-se efetiva no início do período moderno, nos séculos XII e XIII, e, de maneira muito significativa, em contexto direto com os grandes e radicais movimentos heréticos dos cátaros e albigenses. Nesses séculos, foi proclamada a autonomia do amor, a autonomia da mulher, contrastando e contrabalançando a agressividade e a brutalidade masculinas. Amor romântico: estou perfeitamente ciente do fato de que esses termos se tornaram inteiramente pejorativos, especialmente dentro do movimento. Ainda assim, levo-os um pouco mais a sério e os tomo no contexto histórico em que esses desenvolvimentos devem ser tomados. Essa foi a primeira grande subversão da hierarquia de valores estabelecida: o primeiro grande protesto contra a hierarquia feudal e as lealdades nela estabelecidas, com sua repressão especificamente perniciosa da mulher.
Esse protesto, essa antítese era, decerto, em grande parte, ideológica e confinada à nobreza. Ela não foi, no entanto, totalmente ideológica. As normas sociais predominantes foram subvertidas nos famosos Tribunais do Amor, estabelecidos por Leonor da Aquitânia, onde o julgamento era praticamente sempre a favor dos amantes e contra o marido, o direito do amor suplantando o direito do senhor feudal. E alega-se que foi uma mulher que defendeu a última fortaleza dos albigenses contra os exércitos assassinos dos barões do norte.
Esses movimentos progressistas foram cruelmente suprimidos. Os frágeis primórdios do feminismo, em todo caso em uma frágil base de classe, foram destruídos. Não obstante, o papel da mulher mudou gradualmente no desenvolvimento da sociedade industrial. Sob o impacto do progresso técnico, a reprodução social depende cada vez menos da força e do vigor físicos, seja na guerra, no processo material de produção ou no comércio. O resultado foi a exploração ampliada das mulheres como instrumentos de trabalho. O enfraquecimento da base social do domínio masculino não eliminou a perpetuação do domínio masculino pela nova classe dominante. A participação crescente das mulheres no processo de trabalho industrial, que minou os fundamentos materiais da hierarquia masculina, ampliou também tanto a base humana da exploração quanto o excedente de exploração da mulher como dona de casa, mãe, empregada doméstica, além de seu trabalho no processo de produção.
No entanto, o capitalismo avançado gradualmente criou as condições materiais para traduzir a ideologia das características femininas em realidade, as condições objetivas para transformar a fraqueza que estava ligada a elas em força, para transformar o objeto sexual em sujeito, e fazer do feminismo uma força política na luta contra o capitalismo, contra o Princípio de Desempenho. É em vista dessas perspectivas que Angela Davis fala da função revolucionária do feminino como antítese do Princípio de Desempenho em um artigo escrito em dezembro de 1971 na cadeia de Palo Alto, Women and Capitalism.
As principais condições que hoje emergem para tal desenvolvimento são:
- a atenuação do trabalho físico pesado;
- a redução do tempo de trabalho;
- a produção de roupas confortáveis e baratas;
- a liberalização da moralidade sexual;
- métodos de controle de natalidade;
- educação geral.
Esses fatores indicam a base social para a antítese ao Princípio de Desempenho, a emancipação da energia feminina, física e intelectual, na sociedade estabelecida. Mas, ao mesmo tempo, essa emancipação é capturada, manipulada e explorada por essa sociedade. Pois o capitalismo não pode permitir a ascensão das qualidades libidinais que colocariam em risco a ética de trabalho repressiva do Princípio de Desempenho e a constante reprodução dessa ética de trabalho pelos próprios indivíduos humanos. Nesse estágio, portanto, essas tendências liberadoras, em sua forma manipulada, fazem parte da reprodução do sistema estabelecido. Elas se tornaram valores de troca, que vendem o sistema e são vendidas pelo sistema.A sociedade de troca se completacom a comercialização do sexo: o corpo feminino não apenas como uma mercadoria, mas também um fator vital na realização da mais-valia. E a mulher trabalhadora continua, em número cada vez maior, a sofrer a dupla exploração como trabalhadora e dona de casa. Nessa forma, a reificação da mulher persiste de maneira particularmente eficaz. Como essa reificação pode ser dissolvida? Como a emancipação da mulher pode se tornar uma força decisiva na construção do socialismo como uma sociedade qualitativamente diferente?
Voltemos ao primeiro estágio do desenvolvimento desse movimento e tomemos a igualdade plena como alcançada. Como iguais na economia e na política do capitalismo, as mulheres devem compartilhar com os homens as características competitivas e agressivas necessárias para manter um emprego e nele progredir. Assim, o Princípio de Desempenho e a alienação que ele implica seriam mantidos e reproduzidos por um número maior de indivíduos. Para alcançar a igualdade, que é o pré-requisito absoluto da libertação, o movimento deve ser agressivo. Mas igualdade ainda não é liberdade. Apenas como sujeito econômico e político igualitário a mulher pode reivindicar um papel de liderança na reconstrução radical da sociedade. Mas para além da igualdade, a libertação subverte a hierarquia estabelecida de necessidades – uma subversão de valores e normas que faria emergir uma sociedade governada por um novo Princípio de Realidade. E esse, a meu ver, é o potencial radical do socialismo feminista.
Socialismo feminista: falei de uma modificação necessária da noção de socialismo, porque acredito que no socialismo marxiano existem resíduos, elementos da continuação do Princípio de Desempenho e de seus valores. Vejo esses elementos, por exemplo, na ênfase no desenvolvimento cada vez mais efetivo das forças produtivas, na exploração cada vez mais produtiva da natureza, na separação do “reino da liberdade” do mundo do trabalho.
As potencialidades do socialismo hoje transcendem essa imagem. O socialismo, como um modo de vida qualitativamente diferente, usaria as forças produtivas não apenas para a redução do trabalho alienado e do tempo de trabalho, mas também para tornar a vida um fim em si mesmo, para o desenvolvimento dos sentidos e do intelecto para pacificar a agressividade, o desfrutedo ser, a emancipação dos sentidos e do intelecto com relação à racionalidade da dominação: receptividade criativa versus produtividade repressiva.
Nesse contexto, a libertação da mulher de fato apareceria “como a antítese do Princípio de Desempenho”, como a função revolucionária da mulher na reconstrução da sociedade. Longe de estimular a submissão e a fraqueza, nessa reconstrução as características femininas ativariam a energia agressiva contra a dominação e a exploração. Elas operariam como necessidades e fins últimos na organização socialista da produção, na divisão social do trabalho, no estabelecimento de prioridades uma vez vencida a escassez. E assim, entrando na reconstrução da sociedade como um todo, as características femininas deixariam de ser especificamente femininas, na medida em que seriam universalizadas na cultura socialista material e intelectual. A agressividade primária persistiria, como aconteceria em qualquer forma de sociedade, mas ela pode muito bem perder a qualidade especificamente masculina de dominação e exploração. O progresso técnico, o principal veículo da agressividade produtiva, seria libertado de suas feições capitalistas e canalizado para a destruição da repugnante destrutividade do capitalismo.
Acredito que há boas razões para chamar essa imagem da sociedade socialista de socialismo feminista: a mulher teria alcançado plena igualdade econômica, política e cultural no desenvolvimento integral de suas faculdades, e acima e além dessa igualdade, tanto as relações sociais como as pessoais seriam permeadas pela sensibilidade receptiva que, sob a dominação masculina, concentrava-se em grande parte na mulher: a antítese masculino-feminino teria então se transformado em uma síntese – a lendária ideia da androginia.
Direi algumas palavras sobre esse extremo de pensamento romântico (se se quiser) ou especulativo, que não acredito ser tão extremo nem tão especulativo.
Nenhum significado racional pode ser atribuído à ideia de androginia a não ser o da fusão, no indivíduo, das características mentais e somáticas que na civilização patriarcal foram desigualmente desenvolvidas em homens e mulheres, uma fusão na qual características femininas, anulando o domínio masculino, prevaleceriam sobre a sua repressão. Mas nenhuma medida de fusão andrógina jamais poderia abolir as diferenças naturais entre homens e mulheres como indivíduos. Toda alegria e toda tristeza estão enraizadas nessa diferença, nessa relação com o outro, de quem você quer se tornar parte, e que você quer que se torne parte de você, e que nunca poderá e nunca se tornará parte de você. Assim, o socialismo feminista continuaria a ser permeado pelos conflitos decorrentes dessa condição, dos conflitos inerradicáveis de necessidades e valores, mas o caráter andrógino da sociedade poderia gradualmente diminuir a violência e a humilhação na resolução desses conflitos.
Para concluir: o movimento das mulheres ganhou importância política por causa das recentes mudanças no próprio modo de produção capitalista, que proporcionaram ao movimento uma nova base material. Relembro as principais características:
- o número crescente de mulheres empregadas no processo de produção;
- a forma cada vez mais técnica de produção, diminuindo gradativamente o uso de força física pesada de trabalho;
- a disseminação de uma forma-mercadoria estética: o apelo comercial sistemático à sensualidade, aos luxos; o deslocamento do poder de compra para bens e serviços prazerosos;
- a desintegração da família patriarcal por meio da “socialização” das crianças a partir de fora (meios de comunicação de massa, grupos de pares, etc.);
- a produtividade cada vez mais desperdiçadora e destrutiva do Princípio de Desempenho.
O feminismo é uma revolta contra o capitalismo decadente, contra a obsolescência histórica do modo de produção capitalista. Esse é o vínculo precário entre utopia e realidade: a base social para o movimento como uma força potencialmente radical e revolucionária está aí; este é o núcleo duro do sonho. Mas o capitalismo ainda é capaz de mantê-lo como sonho, de suprimir as forças transcendentes que lutam pela subversão dos valores inumanos de nossa civilização.
A luta ainda é uma luta política pela abolição dessas condições e, nessa luta, o movimento feminista desempenha um papel cada vez mais vital. Suas forças mentais e fisiológicas se afirmam na educação e na ação política, bem como na relação entre os indivíduos, no trabalho e no lazer. Destaquei que a libertação não pode ser esperada como um subproduto de novas instituições, que ela deve emergir nos próprios indivíduos. A libertação das mulheres começa em casa, antes de poder entrar na sociedade como um todo.
E esta é a minha consideração final de caráter pessoal. Pode-se interpretá-la, se se quiser, como uma declaração de rendição ou uma declaração de compromisso. Acredito que nós, homens, temos de pagar pelos pecados de uma civilização patriarcal e sua tirania de poder: as mulheres devem se tornar livres para determinar sua própria vida, não como esposa, mãe, amante ou namorada, mas como um ser humano individual. Esta será uma luta permeada de amargos conflitos, tormento e sofrimento (mental e físico). O exemplo mais familiar hoje, que ocorre repetidamente, é quando um homem e uma mulher têm ou podem conseguir emprego em lugares distantes um do outro, e naturalmente surge a questão: quem acompanha quem?
Um exemplo ainda mais sério: as relações eróticas conflitantes, que inevitavelmente surgirão no processo de libertação. Esses conflitos eróticos não podem ser resolvidos nem de maneira fácil e lúdica, nem pela força, nem estabelecendo relações de troca. Estas devem ser deixadas para a sociedade de troca, à qual pertencem. O socialismo feminista terá de desenvolver sua moralidade própria, que será mais, e diferente, do mero cancelamento da moralidade burguesa.
A libertação das mulheres será um processo doloroso, mas acredito que será um estágio necessário e vital na transição para uma sociedade melhor para homens e mulheres.
*Herbert Marcuse (1898-1979) foi professor da University of California-San Diego (EUA). Autor, entre outros livros, de O homem unidimensional (Edipro).
Tradução: Mariana Teixeira para Dissonância: Revista de Teoria Crítica , v. 2, no. 1.2.
Publicado originalmente em Women’s Studies 2 (3), 1974, p. 279-88.