Ecologia e crítica da sociedade moderna

Imagem: Mike
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Por HERBERT MARCUSE*

Conferência proferida nos Estados Unidos em 1979

Agradeço a vocês pela recepção acalorada. Estou feliz por ter a oportunidade de falar para este curso de sobrevivência na selva [wilderness class]. Na verdade, não estou certo sobre o que dizer porque não vejo mais problemas. Como vocês sabem, o Presidente Jimmy Carter forneceu uns 36 milhões de acres de terra selvagem [wilderness] para o desenvolvimento comercial. Não sobraram muitas terras selvagens para preservar. Mas nós ainda tentaremos, no entanto.

O que proponho fazer é discutir a destruição da natureza no contexto da destrutividade geral que caracteriza nossa sociedade. Então, irei traçar as raízes dessa destrutividade nos próprios indivíduos; isto é, examinarei a destrutividade psicológica no interior dos indivíduos.

Hoje, minha discussão se apoia amplamente sobre conceitos psicanalíticos básicos desenvolvidos por Sigmund Freud. De início, gostaria de definir, de maneira breve e super simplificada, os conceitos freudianos mais importantes que utilizo. Em primeiro lugar, há a hipótese de Freud de que o organismo vivo é formado por duas pulsões primárias, ou instintos. Uma dessas ele chama de Eros, energia erótica, instintos de vida; esses termos são mais ou menos sinônimos. Ele chama a outra pulsão primária de Tânatos, energia destrutiva, o desejo de destruir a vida, de aniquilar a vida. Freud atribuiu esse desejo a um instinto primário de morte nos seres humanos. O único outro conceito psicanalítico que gostaria de explicar brevemente é aquele que Freud chama de princípio de realidade. O princípio de realidade pode ser simplesmente definido como a soma total dessas normas e valores que deveriam governar o comportamento normal em uma sociedade estabelecida.

O que farei por último, hoje, será rascunhar brevemente as perspectivas para uma mudança na sociedade de hoje. Defino mudança radical como uma mudança não somente nas instituições e relações básicas de uma sociedade estabelecida, mas também nas consciências individuais em tal sociedade. A mudança radical pode ser profunda a ponto de afetar o inconsciente individual. Essa definição nos possibilita distinguir a mudança radical de um sistema social inteiro daquelas mudanças internas a esse sistema. Em outras palavras, a mudança radical deve envolver tanto uma mudança nas instituições da sociedade, como também uma mudança na estrutura de caráter predominante entre os indivíduos nessa sociedade.

Na minha opinião, nossa sociedade de hoje é caracterizada pelo prevalecimento de uma estrutura de caráter destrutiva em seus membros individuais. Mas como podemos falar de tal fenômeno? Como podemos identificar a estrutura de caráter destrutiva em nossa sociedade de hoje? Sugiro que certos eventos simbólicos, questões simbólicas e ações simbólicas ilustram e iluminam a dimensão mais profunda da sociedade. Esta é aquela dimensão na qual a sociedade reproduz a si mesma na consciência dos indivíduos e também nos seus inconscientes. Essa dimensão profunda é uma fundação para a manutenção da ordem política e econômica estabelecida na sociedade.

Eu irei oferecer três exemplos de tais eventos simbólicos, ilustrações da dimensão profunda da sociedade, daqui a pouco. Primeiro, quero apontar que a destrutividade da qual falei, a estrutura de caráter destrutivo tão proeminente em nossa sociedade de hoje, tem de ser vista no contexto das características da destrutividade institucionalizada de ambas as relações exteriores e domésticas. Essa destrutividade institucionalizada é bem conhecida, e exemplos disso são fáceis de se dar. Eles incluem o crescimento constante do orçamento militar à custa do bem-estar social, a proliferação de instalações nucleares, o envenenamento e poluição gerais de nosso ambiente de vida, a subordinação escancarada dos direitos humanos aos requerimentos da estratégia global, e a ameaça de guerra em caso de uma contestação a essa estratégia. Essa destruição institucionalizada é tanto aberta como legitimada. Ela fornece o contexto no qual a reprodução individual da destrutividade toma lugar.

Deixe-me tomar os meus três exemplos de eventos ou acontecimentos simbólicos, exemplos que iluminam a dimensão profunda da sociedade. Em primeiro lugar, o destino na corte Federal de um estatuto de regulação nuclear do Estado. Esse estatuto teria colocado uma moratória em todas as instalações nucleares no Estado que não teriam meios adequados de prevenir resíduos atômicos mortais. O juiz em questão invalidou esse estatuto porque o considerou inconstitucional. Interpretação brutal: viva La muerte! Vida longa à morte! Em segundo lugar, a carta sobre Auschwitz que apareceu em um grande jornal. Nessa carta, uma mulher reclamou que a publicação de uma fotografia de Auschwitz na primeira página do jornal era (e eu cito) “uma questão de extremo mal gosto”. Qual é o propósito, a mulher perguntou, de trazer esse horror novamente à tona? As pessoas ainda necessitariam estar conscientes de Auschwitz? Interpretação brutal: esqueça isto. Terceiro e último, o termo “surfista nazista”. Junto com esse termo vai o símbolo da suástica. Tanto a frase como o símbolo são orgulhosamente adotados e aplicados a surfistas (e eu cito) “totalmente dedicados ao surfe”. Interpretação brutal: não é necessário. A intenção declaradamente (e, considero, sinceramente) apolítica [unpolitical] do “surfista nazista” não cancela a afinidade inconsciente interna com o regime mais destrutivo do século, que é expressado aqui como uma questão de identificação linguística.

Deixe-me voltar para a minha discussão teórica. A pulsão primária em direção a destrutividade reside nos próprios indivíduos, assim como a outra pulsão primária, Eros. O equilíbrio entre essas duas pulsões também se encontra dentro dos indivíduos. Refiro-me ao equilíbrio entre a vontade e o desejo deles de viverem e a vontade e o desejo deles de destruírem a vida, o equilíbrio entre o instinto de vida e o instinto de morte. Ambas pulsões, de acordo com Freud, estão fundidas dentro do indivíduo. Se uma pulsão é ampliada, isto vem à custa da outra pulsão. Em outras palavras, qualquer aumento da energia destrutiva no organismo leva, mecanicamente e necessariamente, ao enfraquecimento de Eros, ao enfraquecimento do instinto de vida. Essa é uma noção extremamente importante.

O fato de que essas pulsões primárias são pulsões individuais pode parecer acometer e restringir qualquer teoria da mudança social à uma questão de psicologia individual. Como podemos fazer uma conexão entre a psicologia individual e a psicologia social? Como podemos fazer a transição da psicologia individual para a base instintiva de uma sociedade inteira ou de uma civilização inteira? Sugiro que o contraste e a oposição entre psicologia individual e psicologia social sejam enganosas. Não há separação entre os dois. Em graus variáveis, todos os indivíduos são seres humanos socializados. O princípio de realidade prevalecente na sociedade governa a manifestação até mesmo das pulsões primárias individuais, assim como aquelas do eu [ego] e do subconsciente. Os indivíduos introjetam os valores e os objetivos que estão incorporados nas instituições sociais, na divisão social do trabalho, na estrutura de poder estabelecida, e assim por diante. Inversamente, as instituições e políticas sociais refletem (tanto em afirmação como em negação) as necessidades socializadas dos indivíduos, que desta maneira se tornam suas próprias necessidades.

Esse é um dos mais importantes processos na sociedade contemporânea. De fato, as necessidades que efetivamente são oferecidas aos indivíduos por instituições, e que em muitos casos são impostas sobre os indivíduos, acabam se tornando as próprias necessidades e desejos dos indivíduos. Esta aceitação de necessidades sobrepostas leva a uma estrutura de caráter afirmativa. Leva à afirmação e à conformação ao sistema de necessidades estabelecido, sejam a afirmação e a conformação voluntárias ou forçadas. De fato, até mesmo se a aprovação dá lugar à negação, até mesmo se dá lugar ao comportamento social não-conformista, esse comportamento é amplamente determinado por aquilo que o não conformista nega e se opõe. Aceitar e afirmar necessidades externamente sobrepostas e introjetadas – esta introjeção negativa leva à estrutura de caráter radical.

Estrutura de caráter radical. Agora, gostaria de dar para vocês, em termos psicanalítico, uma definição de estrutura de caráter radical – que nos conduzirá imediatamente ao nosso problema de hoje.

Uma estrutura de caráter radical é definida, em uma base freudiana, como uma preponderância no indivíduo dos instintos de vida sobre os instintos de morte, uma preponderância da energia erótica sobre as pulsões destrutivas.

No desenvolvimento da civilização ocidental, os mecanismos de introjeção foram refinados e ampliados a tal ponto que a estrutura de caráter afirmativa socialmente exigida não tem de ser, normalmente, forçada brutalmente, como é o caso sob regimes autoritários e totalitários. Em sociedades democráticas, a introjeção (junto com as forças da lei e da ordem, sempre prontas e legítimas) é suficiente para manter o sistema funcionando. Além disto, nos países industriais avançados, a introjeção afirmativa e uma consciência conformista são facilitadas pelo fato de que elas procedem sobre bases racionais e têm uma fundação material. Refiro-me à existência de um alto padrão de vida para a maioria da população privilegiada, e a uma moralidade social e sexual consideravelmente frouxa. Esses fatos, em uma medida considerável, compensam pela alienação intensificada no trabalho e no lazer que caracterizam essa sociedade. Em outras palavras, a consciência conformista fornece não somente uma compensação imaginária, mas também uma real. Isto milita contra a ascensão de uma estrutura de caráter radical.

Na tão chamada sociedade de consumo, entretanto, a satisfação contemporânea aparece como vicária e repressiva quando é contrastada com a possibilidade real da libertação aqui e agora. Aparece como repressiva quando contraposta com o que Ernst Bloch chamou uma vez de utopia concreta. A noção de Bloch de utopia concreta se refere a uma sociedade na qual os seres humanos não tem mais que viver suas vidas como meios para ganhar a vida em performances alienadas. Utopia concreta: “utopia” porque tal sociedade é uma possibilidade histórica real.

Agora, em um Estado democrático, a efetividade e a extensão da introjeção afirmativa pode ser medida. Pode ser medida pelo nível de apoio à sociedade existente. Este apoio é expressado, por exemplo, nos resultados de eleições, na falta de uma oposição radical organizada, nas pesquisas de opinião pública, na aceitação de agressão e corrupção como procedimentos normais nos negócios e na administração. Uma vez que a introjeção, sob o peso da satisfação compensatória, se enraizou no indivíduo, uma liberdade considerável de coderterminação pode ser concedida às pessoas. As pessoas, por boas razões, apoiarão ou pelo menos sofrerão com seus líderes, até o ponto da auto-destruição estar ameaçada. Sob as condições da sociedade industrial avançada, a satisfação está sempre atrelada à destruição. A dominação da natureza está atrelada à violação da natureza. A busca por novas fontes de energia está atrelada ao envenenamento do ambiente de vida [life environment]. A segurança está atrelada à servidão, o interesse nacional à expansão global. O progresso técnico está atrelado à manipulação e ao controle progressivos dos seres humanos.

E ainda assim, as forças potenciais de mudança estão aí. Essas forças apresentam o potencial para a emergência de uma estrutura de caráter na qual as pulsões emancipatórias ganham ascensão sobre as compensatórias. Essa tendência aparece hoje como uma rebelião primaria da mente e do corpo, da consciência e do inconsciente. Aparece como uma rebelião contra a produtividade destrutiva da sociedade estabelecida e contra a repressão e a frustração intensificadas ligadas à essa produtividade. Esse fenômeno pode muito bem prenunciar uma subversão das bases instintivas da civilização moderna.

Antes de esboçar brevemente as novas características dessa rebelião, vou explicar o conceito de destrutividade aplicado à nossa sociedade. O conceito de destruição é obscurecido e anestesiado pelo fato de que a destruição, ela mesma, está ligada internamente à produção e à produtividade. A última, mesmo quando consome e destrói os recursos humanos e naturais, também aumenta as satisfações materiais e culturais disponíveis para a maioria das pessoas. A destrutividade hoje raramente aparece em sua forma pura sem racionalização e compensação apropriada. A violência tem um canal bem abastecido e gerenciável na cultura popular, no uso e no abuso do poder da máquina e no crescimento cancerígena da indústria de defesa. A última destas se faz palatável pela invocação do “interesse nacional”, que há muito se tornou flexível o suficiente para ser aplicado pelo mundo.

Não é de se admirar, então, que sob estas circunstâncias seja difícil desenvolver uma consciência não conformista, uma estrutura de caráter radical. Não é de se admirar que seja difícil de sustentar uma oposição organizada. Não é de se admirar que tal oposição seja impedida por desespero, ilusão, escapismo e assim por diante. Por todas estas razões, as rebeliões de hoje tornam-se visíveis somente em pequenos grupos que perpassam classes sociais – por exemplo, o movimento estudantil, o movimento de libertação das mulheres, as iniciativas dos cidadãos, a ecologia, os coletivos, as comunidades e assim por diante. Além disso, especialmente na Europa, essa rebelião assume um caráter pessoal conscientemente enfatizado, metodicamente praticado. Ela tem uma preocupação com a psique e as pulsões dos indivíduos, com a auto-análise, com a celebração dos problemas dos próprios indivíduos, com aquela famosa viagem em direção ao privado mundo interior. Esse retorno a si mesmo está conectado frouxamente com o mundo político. As dificuldades pessoais, os problemas e as dúvidas são (sem negação) relacionados e explicados em termos de condições sociais e vice-e-versa. A política é personalizada. Vemos a “política em primeira pessoa”.

A função social e política dessa radicalização primária, pessoal, da consciência é altamente ambivalente. Por um lado, ela indica despolitização, recuo e fuga. Mas por outro lado, esse retorno a si abre ou recaptura uma nova dimensão da mudança social. Esta dimensão é aquela da subjetividade e da consciência dos indivíduos. São indivíduos, afinal das contas, que (em massa ou como indivíduos) se mantém agentes da mudança histórica. Então, a rebelião contemporânea de pequenos grupos é caracterizada por um frequente esforço desesperado de contra-atacar a negligência do indivíduo encontrada na prática radical tradicional. Além disso, essa “política em primeira pessoa” também contra-ataca uma sociedade de integração efetiva. Na sociedade moderna, o processo de introjeção afirmativa equaliza os indivíduos na superfície. Suas necessidades e aspirações introjetadas são universalizadas; elas se tornam gerais, comuns, ao longo da sociedade. Mudança, no entanto, pressupõe uma desintegração desta universalidade.

Mudança pressupõe uma subversão gradual das necessidades existentes, para que, nos próprios indivíduos, seus interesses em satisfações compensatórias venham a ser substituídos por necessidades emancipatórias. Essas necessidades emancipatórias não são necessidades novas. Elas não são simplesmente uma questão de especulação ou predição. Essas necessidades estão presentes, aqui e agora. Elas permeiam a vida dos indivíduos. Essas necessidades acompanham o comportamento individual e o questionam, mas elas estão presentes somente em uma forma na qual são mais ou menos efetivamente reprimidas e distorcidas. Tais necessidades emancipatórias incluem ao menos o seguinte. Em primeiro lugar, a necessidade de reduzir drasticamente o trabalho alienado socialmente necessário e substituí-lo por trabalho criativo. Em segundo lugar, a necessidade de tempo livre autônomo em vez de lazer direcionado. Em terceiro lugar, a necessidade de acabar com a interpretação de papéis. Em quarto lugar, a necessidade de receptividade, tranquilidade e alegria abundante em vez do barulho constante da produção.

Evidentemente, a satisfação dessas necessidades emancipatórias é incompatível com as sociedades de capitalismo de Estado e de socialismo de Estado estabelecidas. É incompatível com sistemas sociais reproduzidos através de trabalho alienado em tempo integral e de performances auto-propulsoras, tanto produtivas como improdutivas. O espectro que assombra as sociedades industriais avançadas de hoje é a obsolescência da alienação em tempo integral. A consciência deste espectro esta difundida entre a população inteira em um maior ou em um menor grau. A consciência popular dessa obsolescência se mostra no enfraquecimento daqueles valores operacionais que hoje governam o comportamento requerido pela sociedade. A ética de trabalho puritana está enfraquecendo, por exemplo, assim como a moralidade patriarcal. Os negócios legítimos convergem com a Máfia; as demandas dos sindicatos mudaram do aumento do salário para a redução das horas de trabalho; e assim por diante.

Foi provado que uma qualidade de vida alternativa é possível. A utopia concreta de Bloch pode ser alcançada. No entanto, uma grande maioria da população continua a rejeitar a própria ideia de uma mudança radical. Parte da razão para isso é o poder esmagador e a força compensatória da sociedade estabelecida. Outra parte da razão é a introjeção das vantagens óbvias dessa sociedade. Mas uma razão a mais se encontra na estrutura instintiva básica dos próprios indivíduos. Então, finalmente chegamos a uma discussão breve das raízes dessa repulsão à mudança historicamente possível nos próprios indivíduos.

Como mencionei no começo, Freud argumenta que o organismo humano exibe uma pulsão primária para um estado de existência sem tensão dolorosa, para um estado livre de dor. Freud localizou esse estado de satisfação [fulfillment] e liberdade no próprio início da vida, na vida dentro do útero. Consequentemente, ele viu a pulsão para um estado indolor como um desejo de retornar a um estágio prévio de vida, anterior à vida orgânica consciente. Ele atribuiu esse desejo de retornar a estágios prévios de vida a um instinto de morte e destruição. Esse instinto de morte e destruição esforça-se para atingir uma negação da vida através da externalização. Isto significa que essa pulsão é direcionada para longe do indivíduo, para longe dela mesma ou dele mesmo. Ela é direcionada para a vida fora do indivíduo. Essa pulsão é externalizada; se não for, simplesmente teríamos uma situação suicida. Ela é direcionada para a destruição de outras coisas vivas, de outros seres vivos e da natureza. Freud chamou essa pulsão de “um longo desvio em direção à morte”.

Podemos agora especular, contra Freud, que a esforço por um estado livre de dor pertence ao Eros, aos instintos de vida, em vez de aos instintos de morte? Se sim, esse desejo pela satisfação atingiria seu objetivo não no início da vida, mas no florescimento e na maturidade da vida. Serviria não como um desejo de retornar, mas como um desejo de progredir. Serviria para proteger e fortalecer a própria vida. A pulsão por um estado indolor, pela pacificação da existência, iria então procurar satisfação no cuidado protetor das coisas vivas. Ela encontraria satisfação na recaptura e na restauração de nosso ambiente de vida, e na restauração da natureza, tanto externa como interna aos seres humanos. Essa é exatamente a maneira pela qual vejo o movimento ambientalista de hoje, o movimento ecológico de hoje.

O movimento ecológico se revela na última análise como um movimento político e psicológico de libertação. É político porque confronta o poder articulado do grande capital, cujos interesses vitais o movimento ameaça. É psicológico porque (e este é um ponto extremamente importante) a pacificação da natureza externa, a proteção do ambiente de vida, também pacificará a natureza no interior dos homens e das mulheres. Um ambientalismo de sucesso subordinará, no interior dos indivíduos, a energia destrutiva à energia erótica.

Hoje, a potência dessa força transcendente do Eros em direção à sua satisfação é reduzida perigosamente pela organização social da energia destrutiva. Consequentemente, os instintos de vida tornam-se quase impotentes para estimular uma revolta contra o princípio de realidade dominante. O que a força de Eros é suficientemente poderosa para fazer é o seguinte. Serve para mover um grupo não conformista, junto com outros grupos de cidadãos não silenciosos, para um protesto muito diferente das formas tradicionais de protestos radicais. O surgimento de uma nova linguagem neste protesto, de um novo comportamento, de novos objetivos, testemunha as suas raízes psicossomáticas. O que temos é uma politização da energia erótica. Isso, sugiro, é a marca distintiva dos movimentos mais radicais de hoje. Esses movimento não representam a luta de classes no sentido tradicional. Eles não constituem um luta para substituir uma estrutura de poder por outra. Em vez disso, esses movimentos radicais são revoltas existenciais contra um princípio de realidade obsoleto. Eles são uma revolta carregada [carried] pela mente e pelo corpo dos próprios indivíduos. Um resultado que é intelectual assim como instintivo. Uma revolta na qual o organismo inteiro, a própria alma do ser humano, se torna política. Uma revolta do instinto de vida contra a destruição organizada e socializada.

Mais uma vez devo ressaltar a ambivalência dessa senão rebelião esperançosa. A individualização e a somatização de um protesto radical, sua concentração na sensibilidade e nos sentimentos dos indivíduos, entra em conflito com a organização e a autodisciplina que é exigida por uma práxis política efetiva. A luta para mudar essas condições objetivas, econômicas e políticas que são a base para a transformação psicossomática, subjetiva, parece estar enfraquecendo. O corpo e a alma dos indivíduos têm sempre sido descartáveis, pronto para serem sacrificados (ou para se sacrificarem) por um todo reificado, hipostasiado – seja ele o Estado, a Igreja ou a Revolução. Sensibilidade e imaginação não são páreo para esses realistas que determinam nossa vida. Em outras palavras, uma certa impotência parece ser uma característica inerente de qualquer oposição radical que permanece fora das organizações de massa dos partidos políticos, dos sindicatos e assim por diante.

O protesto radical moderno pode parecer condenado à significância marginal quando comparada com a efetividade de organizações de massa. No entanto, tal impotência tem sido sempre a qualidade inicial dos grupos e indivíduos que apoiam os direitos humanos e os objetivos humanos para além dos chamados objetivos realistas. A fraqueza desses movimentos talvez seja um sinal de sua autenticidade. Seu isolamento talvez seja um sinal dos esforços desesperados necessários para se libertar do sistema de dominação geral, se libertar do contínuo da destruição realista, lucrativa.

O retorno que os movimentos radicais modernos fizeram, seu retorno ao domínio psicossomático dos instintos de vida, seu retorno à imagem da utopia concreta, pode ajudar a redefinir o objetivo humano da mudança radical. E me arriscarei a definir esse objetivo em um sentença curta. O objetivo da mudança radical de hoje é a emergência de seres humanos que são fisicamente e mentalmente incapazes de criar outra Auschwitz.

A objeção que às vezes é feita a esse objetivo elevado, isto é, a objeção de que esse objetivo é incompatível com a natureza do homem, testemunha somente uma coisa. Testemunha o nível em que esta objeção sucumbiu à ideologia conformista. Esta última ideologia apresenta o contínuo histórico da repressão e da regressão como uma lei da natureza. Contra essa ideologia, insisto que não há uma coisa tal como uma natureza humana imutável. Além e acima do nível animal, os seres humanos são maleáveis, corpo e mente, até as suas próprias estruturas instintivas. Homem e mulheres podem ser computadorizados em robôs, sim – mas eles também podem recusar.

*Herbert Marcuse (1898-1979) foi professor da University of California-San Diego (EUA). Autor, entre outros livros, de O homem unidimensional (Edipro).

Tradução: Fernando Bee para Dissonância: Revista de Teoria Crítica, v. 2, no. 1.2

 

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