Melhores do século

Tim Mara, Lâmpada e Livro, 1995–6
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Por WALNICE NOGUEIRA GALVÃO*

O artigo que deu origem ao debate recente em torno da literatura contemporânea

Á primeira vista, parece o triunfo da negritude, sobretudo pela acumulação nos primeiros lugares. Sem dúvida, é um privilégio poder ver o Brasil se assumir como o maior país africano do mundo, disputando a primazia à Nigéria por uns poucos milhões de habitantes.

A lista dos melhores não desmente ninguém é apenas um sintoma. Se não bastasse, era só olhar para os programas de televisão, dos mais broncos aos mais ambiciosos, e verificar como mudaram de cor. Até na publicidade: não se faz propaganda de nada, nada mesmo, sem feições morenas.

É um movimento social de âmbito desmedido, englobando o resultado de uma lista de consulta como essa. A tendência atual da literatura brasileira, dos leitores, dos editores, dos autores, dos prêmios literários, dos seminários e congressos, dos cursos de pós-graduação, das dissertações e teses, das escolas etc. é dedicar-se à temática da negritude.

Nem é preciso dizer que a tendência é bem-vinda, já vem tarde e pode ser entendida como uma tentativa de reparação simbólica aos males não só da escravidão como também à maneira desastrada pela qual a emancipação foi feita.

A mesma atmosfera predomina tanto na ficção, quanto no ensaio e nas artes.

Nota-se que de outros campos, apesar de candentes e rumorosos, mal se divisa a esquiva silhueta nessa lista. É o que acontece com a temática da mulher, quase ausente, a temática queer, a temática explicitamente política, a temática indígena. Isso sim dá o que pensar.

Qual a causa desse paradoxo? Aqueles temas estão na ordem do dia, presidem até assassinatos, mas na lista sumiram. Sempre lembrando que a lista é apenas uma amostra e provavelmente insuficiente. Será que não há autores? Ou os editores não se interessam? No momento é difícil saber, por enquanto só podemos especular.

Mas não deixa de ser interessante: a temática da negritude é avassaladora…É bom lembrar que a negritude também é avassaladora no Censo, 54 % de declarações voluntárias assumindo os muitos cambiantes da cor são um documento incontornável.

Já para a crítica literária propriamente dita, a constatação é de que estamos vivendo o predomínio do conteúdo. O que se escreve e o que se lê são definidos pelo conteúdo. Quanto à estética, ao trabalho com a forma, aos anseios da vanguarda, ao fermento da experimentação… tudo isso fica no horizonte do futuro, e assim mesmo – talvez.

Essa hipertrofia do significado, em detrimento do significante, pode estar implicando uma inclinação da literatura mais para o lado do entretenimento, e menos para o lado da arte. Seria um bom desafio tratar de pensar um pouco se esse fenômeno é paralelo à crescente ênfase na biografia do autor, e menos em sua obra.

O palpitante parece ser aquilo que é da intimidade do artista, e não o que ele realiza e que lhe confere a legitimidade de ser artista. Aqui, a contaminação de estratégias da mídia, perita em incensar e derrubar ídolos, pode ser a responsável.

Mas, repita-se, é preciso lembrar que se trata de uma amostra apenas, portanto estas elucubrações permanecem entre parênteses.

*Walnice Nogueira Galvão é professora Emérita da FFLCH da USP. Autora, entre outros livros, de Lendo e relendo (Sesc/Ouro sobre Azul). [amzn.to/3ZboOZj]

Publicado originalmente no jornal Folha de S. Paulo.


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