Jack Cade – um fascista precursor

LEDA CATUNDA, Mundo Macio, 2007, acrílica s/ tela e voile, 187x290cm.
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por WALNICE NOGUEIRA GALVÃO*

Notas sobre saga da realeza britânica, segundo Shakespeare

Líder político que mesmeriza as massas e as conduz ao desastre – para os outros e para elas próprias, como Hitler, o Führer – chamava-se na Antiguidade demagogo, ou “condutor do povo”. Só que a palavra foi perdendo o sentido próprio e se enfraquecendo.

Não dispomos de um bom sinônimo em português, mas em inglês há um perfeito: rabblerouser, ou seja, “sublevador da ralé”. E Shakespeare dá-nos um deles, e notável, na peça Henrique VI.

O Bardo, como se sabe, escreveu uma saga da realeza britânica, perquirindo a natureza do poder, a condução dos negócios do Estado, os laços que se atam ou se desatam entre o monarca e o homem que o habita; e assim por diante.

Alguns são mais renomados que outros. Célebre é a amizade entre Hal, o herdeiro presuntivo, e seu cúmplice de esbórnia Falstaff, renegado pelo príncipe quando rei, em Henrique V e nas duas partes de Henrique IV. Orson Welles ainda acrescentou um tanto de As alegres comadres de Windsor para viver Falstaff. No filme, transforma-se em seu duplo pela corpulência, gargalhadas estentóreas e petulância de bon vivant, enquanto era escarnecido por Hollywood.

Um pouco menos célebre é a insegurança existencial de Ricardo II, que oscila em dúvidas sobre sua legitimidade.

Henrique V, que aborda a Batalha de Azincourt, retumbante vitória dos ingleses sobre os franceses, traz bela meditação realenga sobre o preço que os pobres pagam por guerras gloriosas que os dizimam e mutilam.

Rei Lear põe em cena um soberano que exerce seu arbítrio para anatematizar uma inocente, sua filha Cordélia.

Macbeth mostra como a ambição de mando não hesita ante os piores crimes. E, se Macbeth tem ganas demais, o protagonista de Hamlet tem ganas de menos, suas hesitações privando-o do legado da coroa.

E por fim, culminando tudo, Ricardo III, uma das mais torpes figuras a pisar o palco, cuja ascensão rumo ao trono acompanhamos através de toda a sordidez, perfídias, tramoias. Até crianças, no caso os dois principezinhos, manda matar. Uma valiosa versão está preservada em filme, com Lawrence Olivier.

Em Henrique VI, rei que viveu entre 1421 e 1471,surge copiada da vida real uma personagem tenebrosa chamada Jack Cade, um rabblerouser completo. Logo nos damos conta de que o conhecemos pessoalmente, nosso tempo tendo trazido gente assim para a cena brasileira e mundial. Na clave do grotesco e não do trágico, resultaria no Père Ubu, de Alfred Jarry, paródia de Macbeth.

Jack Cade convoca e lidera uma “Marcha sobre Londres” (Il Duce Mussolini, precursor dos ditadores fascistas do século XX, liderou uma vitoriosa “Marcha sobre Roma”), para tomar o poder. Seus acólitos são a escória da sociedade, uma corja inominável. Logo ocupam a Ponte de Londres e bloqueiam o acesso à cidade. Jack Cade dá ordens: “Vamos à luta! Queimem a ponte, e, já que estão aí, a Torre de Londres também! Venham, avancemos!”.

Shakespeare vai aos poucos montando o perfil do líder. As acusações que ele assaca contra adversários, enviando-os sem julgamento para a decapitação sumária, também são nossas conhecidas: saber ler; nomear juízes-de-paz; falar frases com substantivo e verbo; fundar uma escola para jovens; mandar imprimir livros… Um exemplo: “E, contrário ao rei, à coroa e à dignidade, criou uma fábrica de papel!” Soa familiar?

Jack Cade quer ser rei, atribuindo a si mesmo sangue nobre e envergando uma armadura roubada. Dissemina fake news, como a aleivosia de que Lord Saye vendera a província da Normandia ao Delfim da França, crime de alta traição.

Destino funesto aguarda Jack Cade, pondo um ponto final aos malefícios que praticou e levou uma horda a praticar, enquanto ele mesmo secretamente só pensa em dinheiro, pilhagem e saques, em extorquir para benefício próprio. Em sua truculência, vê-se que a semelhança não é mera coincidência …

Exemplo histórico tão remoto vale  para a constatação de que o sucesso pode ser efêmero e a derrota fatal, junto com sua laia. Apesar do desânimo quando verificamos que persistem até hoje entre nós. É de lamentar que alguns desses facínoras saiam impunes e morram na cama, cobertos de riquezas e honrarias. Mas Mussolini foi linchado e seu corpo pendurado pelos pés em praça pública, para execração geral. Bem dizia Dolores Ibarruri, La Pasionaria: No pasarán!

*Walnice Nogueira Galvão é Professora Emérita da FFLCH da USP. Autora, entre outros livros, de Lendo e relendo (Sesc\Ouro sobre Azul).

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Gabriel Cohn Marjorie C. Marona Luis Felipe Miguel Daniel Costa Alexandre de Freitas Barbosa Paulo Martins Chico Alencar João Paulo Ayub Fonseca Ronaldo Tadeu de Souza Ricardo Antunes Leonardo Boff Igor Felippe Santos Liszt Vieira André Márcio Neves Soares Antônio Sales Rios Neto Matheus Silveira de Souza Maria Rita Kehl Dennis Oliveira Rodrigo de Faria Luiz Roberto Alves Paulo Sérgio Pinheiro Marcus Ianoni Lucas Fiaschetti Estevez Bento Prado Jr. José Dirceu Afrânio Catani Manuel Domingos Neto Jean Pierre Chauvin Ricardo Musse Armando Boito Tales Ab'Sáber Flávio Aguiar José Raimundo Trindade Slavoj Žižek Walnice Nogueira Galvão Paulo Nogueira Batista Jr Andrés del Río Manchetômetro Marilena Chauí Alysson Leandro Mascaro Airton Paschoa Francisco de Oliveira Barros Júnior Jorge Luiz Souto Maior Salem Nasser Denilson Cordeiro Luiz Werneck Vianna Eliziário Andrade Henri Acselrad Jean Marc Von Der Weid Michel Goulart da Silva Fernão Pessoa Ramos Carla Teixeira Eleutério F. S. Prado João Adolfo Hansen Gilberto Maringoni José Machado Moita Neto Carlos Tautz Boaventura de Sousa Santos Milton Pinheiro Luiz Renato Martins Leda Maria Paulani Andrew Korybko Leonardo Sacramento Alexandre de Lima Castro Tranjan João Feres Júnior Vinício Carrilho Martinez Marcos Silva Bernardo Ricupero Henry Burnett Lorenzo Vitral José Micaelson Lacerda Morais Bruno Fabricio Alcebino da Silva Daniel Brazil Thomas Piketty Luiz Bernardo Pericás José Costa Júnior Otaviano Helene Julian Rodrigues João Lanari Bo Flávio R. Kothe Eugênio Trivinho Gilberto Lopes Samuel Kilsztajn Ricardo Fabbrini Vanderlei Tenório Marcelo Guimarães Lima Rubens Pinto Lyra Francisco Fernandes Ladeira João Carlos Salles Fábio Konder Comparato Lincoln Secco Eleonora Albano Mário Maestri Alexandre de Oliveira Torres Carrasco José Luís Fiori Jorge Branco Antonino Infranca Sergio Amadeu da Silveira Eugênio Bucci Osvaldo Coggiola Caio Bugiato Valerio Arcary Luiz Eduardo Soares Rafael R. Ioris Juarez Guimarães Érico Andrade Ari Marcelo Solon João Carlos Loebens Plínio de Arruda Sampaio Jr. Everaldo de Oliveira Andrade Remy José Fontana Luiz Carlos Bresser-Pereira Ronald León Núñez Antonio Martins Fernando Nogueira da Costa Sandra Bitencourt Paulo Fernandes Silveira Alexandre Aragão de Albuquerque Renato Dagnino Claudio Katz Tadeu Valadares Anselm Jappe Kátia Gerab Baggio Francisco Pereira de Farias José Geraldo Couto Elias Jabbour Luís Fernando Vitagliano Benicio Viero Schmidt Ladislau Dowbor Berenice Bento Valerio Arcary Priscila Figueiredo Heraldo Campos Paulo Capel Narvai Bruno Machado Mariarosaria Fabris André Singer Dênis de Moraes Tarso Genro Annateresa Fabris Michael Roberts Daniel Afonso da Silva Gerson Almeida João Sette Whitaker Ferreira Vladimir Safatle Ronald Rocha Eduardo Borges Luciano Nascimento Chico Whitaker Marilia Pacheco Fiorillo Marcelo Módolo Celso Favaretto Atilio A. Boron Michael Löwy Ricardo Abramovay Marcos Aurélio da Silva Luiz Marques Celso Frederico Leonardo Avritzer Yuri Martins-Fontes

NOVAS PUBLICAÇÕES