O Brasil profundo

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Por RAFAEL R. IORIS*

O conservadorismo autoritário sedimenta raízes no Brasil

Tendo sido a maior sociedade escravocrata da história, não surpreende que o Brasil continue sendo uma nação de cultura profundamente hierárquica e autoritária. Só pra lembrar, nos anos 1930s, foi exatamente lá onde existiu o maior de partido de orientação fascista fora da Europa. Da mesma forma, no auge da sua última ditadura militar, no início dos anos 1970, quando a tortura era política de Estado, a ARENA, o partido oficial de apoio ao regime, constava com amplo apoio popular e se gabava de ser o maior partido do hemisfério ocidental em números da filiados.

Não surpreende, portanto, que mesmo após o gradual, controlado e insuficiente processo de redemocratização que o país atravessou ao longo dos anos 1980, a narrativa mano dura, autoritária e salvacionista de políticos populistas de direita tenha sempre conseguido angariar apoio entre crescentes camadas sociais, especialmente em períodos de crise econômica e/ou aumento das taxas da criminalidade. Muitas vezes tal apelo se reduzia a políticos regionais de direita que tendia a assumir cargos nos legislativos estaduais. Mas sempre houve também alguns personagens que embora eleitos por grupos de interesse bem específicos, conseguiam exercer alguma influência no debate mais amplo, mesmo em escala nacional.

Um desses personagens foi o deputado Jair Bolsonaro, eleito pela primeira vez em 1991, com base principalmente nos votos de militares conservadores aposentados do estado do Rio de Janeiro. Após anos quando era visto como uma figura folclórica do Congresso Nacional que defendia de maneira repetitiva a defesa dos crimes da ditadura, uma série de acontecimentos trágicos para a própria consolidação do regime democrático fez com que a figura quixotesca de Bolsonaro conseguisse, contrariando a expectativas de quase todos, se alçar à posição de maior autoridade no país.

Em primeiro lugar, a crise econômica global do final da primeira década do século chegou tardiamente ao Brasil, no final de 2012, erodindo rapidamente aos ganhos importantes dos anos anteriores, especialmente junto a populações de baixa renda que, com a alta do custo de vida, especialmente nas grandes cidades, passam a demandas, em meados do ano seguinte, melhorias no provimento de serviços sociais. Grupos conservadores de classe média – que embora tenham também se beneficiado com a melhora econômica da primeira década, estavam cada vez mais descontentes com o avanço dos grupos populares em espaços sociais e culturais tradicionalmente restritos aos incluídos –, veem nos protestos de 2013 por mais e melhor inclusão uma excelente oportunidade para reorganizarem-se como bloco político.

O país chega em 2014 com uma crescente polarização ideológica, mas ainda dentro dos moldes democráticos da chamada Nova República. Isso mudaria rapidamente quando o partido derrotado da eleição do final do ano se recusa a aceitar os resultados e passa a mobilizar as forças de oposição ao governo petista de Dilma Rousseff para que com todos os meios consiga retirá-la do poder. O processo golpista se acelera com o agravamento da crise econômica ao longo de 2015, culminado no impeachment de Dilma Rousseff no ano seguinte. O governo Termidoriano de Michel Temer, vice-presidente de Dilma Rousseff assume a pauta conservadora em crescente popularidade entre os principais grupos econômicos, políticos, midiáticos e culturais do país e grandes reformar anti-populares são estabelecidas (reforma trabalhista e limite de gastos públicos).

Mas ainda que o establisment estivesse contente com os novos rumos da nação, a discrepância entre uma revivida agenda neoliberal no poder sem um claro mandato popular adquirido nas urnas gerava uma fragilidade ao novo bloco histórico. E quando da eleição de 2018 os partidos tradicionais por trás do golpe parlamentar de 2016, como PSDB e PMDB, são tragados por uma onda reacionária, de forte apelo popular com base na pauta dos costumes e da resolução autoritária dos crescentes problemas sofridos por amplas camadas sociais, em especial as mais desfavorecidas. Ao fim e ao cabo, a medíocre personagem de Jair Bolsonaro se torna o instrumento da condução de um processo turbulento que culmina na consolidação da agenda autoritária reacionária no poder da maior sociedade latino-americana.

No poder, Jair Bolsonaro não surpreendeu e seu desgoverno pode ser melhor representado na sua intencionalmente desastrosa gestão da crise da Covid-19 no Brasil, que causou a morte de quase 700 mil pessoas. Da mesma forma, sua conhecida postura misógina, homofóbica não é apaziguada por estar no poder, e sua promoção pela devastação ambiental se aprofunda como política de estado. Além disso, a falaciosa narrativa de uma maior eficiência dos quadros militares na administração pública leva à maior ocupação por parte de militares de funções civis desde a ditadura, e o perigoso discurso da necessidade do fechamento das instituições de representação política democrática, em especial o Supremo Tribunal Federal, ser normaliza no governo e entre seus apoiadores mais ferrenhos.

Diante de tudo isso, poder-se-ia dizer que o fato de que Jair Bolsonaro tenha ido tão bem na eleição de 2 de outubro passado, tendo conseguido 51 milhões de votos e impedido a eleição de Lula no primeiro turno – forçando assim o país a um segundo turno acirrado, potencialmente violento e perigoso –, seria talvez a expressão mais clara no enraizamento do conservadorismo autoritário em moldes neofascistas na sociedade brasileira. E se em 2018, em meio à maior crise partidária enfrentada pelo país possivelmente desde o final da década de 1970 – talvez mesmo de meados de 1960, quando da eliminação dos partidos pelo novo regime militar –, havia uma forte motivação para “votar em algo diferente”, hoje existe um claro histórico da performance de Jair Bolsonaro e seus asseclas no poder.

De fato, junto a eleição de seus mais próximos aliados, especial da pastora fundamentalista e ministra da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, ao Senado pelo Distrito Federal, e Eduardo Pazzuelo, general do exército, ex-ministro da Saúde durante o desastre da pandemia, como deputado federal pelo Rio de Janeiro, com uma votação enorme, parece claro que para grande parte da população é mais importante manter no poder fiéis escudeiros de uma agenda cultural reacionária, economicamente neoliberal e politicamente autoritária do que ter uma administração pública eficiente no sentido do provimento issonômico de serviços públicos de qualidade.

Poderíamos também dizer que para grande dos eleitores, temas centrais na plataforma de Lula, como proteção ambiental, inclusão de gênero e mesma a democracia não são vistos como tão importantes assim por quase metade da população do país. Em síntese, parece que se em 2018, a narrativa conservadora autoritária que Jair Bolsonaro encabeçava poderia ter tido apelo pelo seu teor de novidade, hoje seu apelo se capitaliza de maneira estrutural em amplas camadas sociais que embora geograficamente não majoritárias em todas regiões, é sim, cada vez, representativa do que politicamente apoiam grande parte da população brasileira.

Interessantemente, embora não pareça ser tão chave quanto temas de viés mais socio-cultural, como família, patriotismo e religião, especialmente para camadas sociais mais humildes, especialmente nos centros urbanos do país, a agenda neoliberal também implementada por Bolsonaro atende aos anseios de influentes grupos sociais mais abonados, em especial ligados à expansão da matriz agro-exportada, assim como a ideólogos da privatização do estado na grande mídia. Por fim, nas classes médias, o apelo dos novos (e antigos) donos do poder, especialmente militares, se consolida também pela retórica falaciosa e chaunivista do acesso ilimitado às armas pelo homem supostamente provedor da defesa privada dos seus familiares.

O fato é que o Brasil profundo é, sim, ainda muito, talvez mesmo crescentemente, conservador, preconceituoso, organizado de uma maneira estruturalmente hierárquica onde líderes autoritários salvacionistas tendem a ser vistos como soluções fáceis para problemas diários difíceis. E embora Lula tenha boa chance de ganhar no segundo turno, o que significa de há grande mobilização para resistir o aprofundamento e consolidação no poder do neofascismo em curso, seu novo governo enfrenta uma país muito mais polarizado do que no início do século, e seus esforços no poder terão que se centra não em grandes inovações nas políticas sociais, como em 2003 a 2010, mas, sim, na reconstrução da própria democracia brasileira.

Por outro lado, se Jair Bolsonaro ganhar, teremos então a legitimação clara que o preocupante rumo que a sociedade brasileira tem seguido nos últimos é que a maioria dos seus membros aprova e quer dar sequência. Isso poderia mesmo a levar com que Bolsonaro, ao entender que tem poder para isso, poderia tentar destruir de vez a institucionalidade democrática no país, mantendo a aparência da democracia liberal, em um regime de fato autoritário – seu projeto desde sempre.

Por fim, mesmo no caso de derrota de Jair Bolsonaro, o fato é que o conservadorismo autoritário do bolsonarismo foi em grande parte aprovado nas urnas em 2 de outubro e vai continuar a influenciar os rumos do país por um bom tempo. Ou seja, Jair Bolsonaro pode até perder, mas o bolsonarismo veio para ficar.

*Rafael R. Ioris é professor do Departamento de História da Universidade de Denver (EUA).

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