Por J. CRISÓSTOMO DE SOUZA*
Segundo Marx, nosso humano essencial, nosso ser-uns-para-os-outros, que entretanto ainda não se realiza, está em nossa atividade produtiva genérica, o trabalho
Para Fernando Haddad[i]
Este texto trata de sugerir, a partir de uma olhada ao pensamento de Karl Marx, alguma coisa sobre empreendedorismo, assunto de nossos dias, que no fundo tem, como as bobagens sobre “pobre de direita”, tanto uma dimensão material, como uma dimensão ideológica — até teológica.
Vamos começar por visitar a perspectiva histórica de Marx sobre o humano-emancipatório em termos de relações de produção e propriedade. Daí vamos ver seu elogio do trabalho autônomo e da propriedade pessoal produtiva, contra o trabalho assalariado. Por fim, acenamos para o interesse dessas considerações em nosso complicado tempo e contexto, para uma inclusão das classes populares, mais do que “no orçamento”, na construção do país.
Pra começo de conversa, deixem-me adiantar algo sobre o que é progressista, emancipatório, humano, em Marx, em termos de relações de trabalho e propriedade: um maior florescimento e auto-provimento, sustentável, das pessoas, dignificadas, por seu melhor acesso a melhores meios e competências. Eis aí o humanismo materialista-histórico de Marx trocado em miúdos, até um pouco melhorado. Mas fica faltando dizer mais (vide meu O Avesso de Marx, 2024).
Segundo Marx, nosso humano essencial, nosso ser-uns-para-os-outros, que entretanto ainda não se realiza, está em nossa atividade produtiva genérica, o trabalho. Nossa essência humana são justamente as relações em que ele nos põe, segundo o nível de desenvolvimento das chamadas forças produtivas — justamente meios, competências, condições, formas de cooperação, etc. E, em seu sentido normativo, ideal, máximo, essa essência só se realizará ao final da nossa “pré-história”, no comunismo, como essência comunal.
Tal essência, vejam bem, é assumida, por Marx, da “tradução” feuerbachiana do cristianismo, amoroso, mas ainda subjetivista, individualista — até egoísta, como no protestantismo, mais do que no catolicismo. Da tradução do cristianismo em um humanismo comunal, uma espécie de neo-cristianismo, sem aqueles defeitos, acentuados na modernidade. Pela conversão do divino transcendente, tradicional, o Deus pessoal do cristianismo, em um novo divino (ou ser supremo), completamente humano, imanente na história: o “homem genérico”, a humanidade.[ii]
Para entender melhor o progressismo humanista de Marx, entretanto, é preciso tomar as relações sociais de produção não só como essência humana comunal, lida da religião, para ser lá adiante realizada como “telos imanente” ou “enigma resolvido da história”. É preciso vê-las também dentro de seu devir dialético, num percurso da história; vê-las como, em cada circunstância concreta, relações melhores ou piores, emancipatórias e progressistas, ou, ao contrário, relações de atraso e despossuimento, dependência e sujeição.
Para Marx, porém, isso não quer dizer ver/avaliar tais relações em termos de “altruísmo” e “amor”, mesmo que ele, na juventude, não tenha escapado, como admite, à “apoteose do amor” de Ludwig Feuerbach. A dimensão normativa do seu materialismo/humanismo histórico não está no que é melhor, como relações de produção, em termos do mais “amoroso”, “natural”, “comunal”, “católico” etc., fora da história e de contextos particulares — materiais, mas também, como diria Fernando Haddad, simbólicos. Vejamos.
A perspectiva de Marx sobre relações de produção em termos emancipatórios/ progressistas.
O mais central na estratégia normativa de Marx está em traduzir/resolver o ideal, o normativo (até especulativo, místico, religioso) em social/material, político, e, para que seu progressismo se mostre mesmo histórico, junto com materialista consequente, é preciso dizer mais do que vimos acima. Vale “recuar” ao que seria o materialismo histórico mais básico de Marx, segundo uma dialética, mais geral, de relações, meios, competências e circunstâncias, até de construção de subjetividades, para então conseguir “avançar” em concretude política nesse terreno, como hoje me parece indispensável.
Para além da conhecida sequência histórica, esquemática, de modos/relações de produção, de Marx, e diante de contextos variados, de vias nacionais diversas, de distintas “formações sociais” (noção que Vladímir Ulianov gostava muito), também diante de extraordinárias mudanças no interior do próprio capitalismo do nosso tempo, é o caso de notar que, em Marx, o humano-emancipatório, e o oposto desumano, sua negação, são noções que podem variar de conteúdo, segundo diferentes relações de trabalho e propriedade, do mesmo modo que podem variar no discurso ideológico de diferentes segmentos sociais. Isso para que não caiamos num essencialismo universalista, abstrato, num esquematismo rígido, binário, tampouco em pregação moral, e, principalmente, num desastroso “desligamento político”, em relação ao real efetivo, concreto.
O critério mais geral de Marx (nos seus próprios termos) será, nesse terreno, o de relações mais e menos “amplas” ou “favoráveis”, para um novo desenvolvimento das forças produtivas, em termos de maior satisfação, inclusão, empoderamento dos seres humanos envolvidos.[iii] As noções de humano-emancipatório, superior, referem-se agora, em formações sociais particulares, a relações “mais satisfatórias”, “humanas”, “progressistas”, em comparação com relações e condições mais velhas, “mais estreitas”, mais “excludentes”. De novo, não por algum critério a priori, moral, religioso, exterior à história, sobreposto às circunstâncias concretas.
Quanto às primeiras relações — ditas “melhores” — não se trata de serem mais socialistas ou comunistas, muito menos de serem mais “cristãs” ou “amorosas”, mas de corresponderem, para as classes subalternas, ascendentes, a melhores possibilidades de vida, dadas por novas forças produtivas e condições de produção. Do outro lado, para outras classes e segmentos, em geral dominantes, as “novas relações” tenderiam a ser consideradas desumanas, até criminosas, enquanto as “velhas relações” seriam o humano e o normal, conforme a uma essência humana fixa, eterna.
Esse é o relativismo contextualista de Marx, que, entretanto, não tem nada de relativista, mas tudo de materialista e histórico, que procura dar conta da valoração de uma diversidade de relações de trabalho e dos disputados usos sociais desses termos. Isso para que ninguém se ache naturalmente dono do seu sentido, fora e acima de circunstâncias sociais e históricas determinadas, de aspirações manifestas, etc.
O elogio de Marx ao empreendedorismo e à propriedade pessoal produtiva, frente ao trabalho assalariado.
Com isso em mente, vejamos agora, em O capital,[iv] como Marx celebra a produção independente e o trabalho autônomo, orientado para prosperidade, riqueza, realização pessoal, com base na “propriedade privada pessoal de meios de produção” — um “modo de produção e apropriação” que ele louva como mais consistente com “a democracia”.[v] No seu elogio à produção independente, Marx parece até evocar algo do que diz do trabalho não-alienado, nos Manuscritos Econômicos e Filosóficos, como realização e expressão de si, envolvendo outra relação com o objeto etc. — enquanto o salariado significa exploração, subutilização de capacidades humanas etc.
Marx louva as benéficas consequências pessoais, sociais, políticas, do “trabalho independente” como diametralmente opostas às do “trabalho assalariado”, de dependência e sujeição. Para ele, em determinadas circunstâncias, chegam a ser dois tipos antitéticos de trabalho e de propriedade privada, de modos de produção e apropriação, em luta.
Meios de produção de propriedade do produtor direto não são meios de acumulação capitalista, podem ser seu contrário. Isso mesmo Marx entendendo que esse produtor, “possuidor de suas condições de trabalho”, pode virar “um concorrente do capitalista”, ou mesmo “um capitalista concorrente”. Por uma passagem natural, de assalariado a produtor independente e deste a “concorrente dos seus antigos patrões”. Pois Marx, vejam só, parece não ter nada contra o “oprimido” virar “opressor”, como tampouco parece lhe interessar, sem mais, a cor (ideológica, amorosa, comunal) do gato, contanto que cace ratos.
Os “economistas políticos burgueses”, Marx observa, queixam-se de que essa produção autônoma impossibilita a centralização do capital e o trabalho cooperativo, enquanto se rendem a que ela cria “um povo próspero, independente, empreendedor e instruído”. Para tais economistas, entretanto, ela impossibilita o desenvolvimento social do trabalho, a aplicação de maquinária em larga escala, a transformação de meios de produção em capital. Vai ver que um economista desenvolvimentista clássico, socialista e marxista, dos nossos dias, do BNDES, não veria muito diferente disso. Afinal, segundo a grande narrativa, histórica, de Marx, o desenvolvimento do grande capitalismo é o pressuposto material, social, até ético-disciplinador, de socialismo e comunismo.
Para além do compromisso de Marx com o anticapitalismo comunal/ comunista, estatal/ utópico.
É verdade que Marx, comunista, pode mostrar todo esse entusiasmo pelo empreendedorismo autônomo porque conta, de outro lado, com que, conforme sua Grande Narrativa, a propriedade privada pessoal será inteiramente suprimida pelo próprio desenvolvimento capitalista, concentrador, assalariante, homogeneizante. Um desenvolvimento que por fim imporá a nacionalização/estatização de grandes meios de produção, logo o planejamento centralizado, sem mercado, e, lá na frente, o Comunismo final, “o Céu tomado de assalto” — como solução única para todas as aflições sociais e humanas.
No entanto, é interessante notar que o compromisso de Marx com a realização final da essência genérica, comunal, do homem, junto com sua denúncia do mágico fetichismo da mercadoria, pode andar de mãos dadas com sua firme disposição de avaliar as coisas concretamente, em circunstâncias concretas, de modo, digamos, “não-ideológico” e “não-moralizante”. De fazê-lo em termos de relações de propriedade viáveis, e de suas consequências sociais, até políticas, em determinado momento ou contexto.
Trata-se de um compromisso e uma denúncia que andam de mãos dadas com um firme interesse por afirmação, exuberância, enriquecimento, social e pessoal, dos seres humanos. Não um interesse por “negação” e “resistência”, por primitivismo romantizado e pobreza compartilhada, por pobrismos, migalhismos, vitimismos, por assistencialismos de Estado, por sentimentalismo e humanitarismo, hoje tão populares na nossa “esquerda”.
Nosso materialista histórico nos oferece, assim, uma ideia não-metafísica para a fundamentação dos valores do humano-emancipatório, não essencialista nem transcendentalizada, nem binarista, em relações sociais e institucionais mais livres e expansivas, mais produtivas e expressivas, “mais satisfatórias”. Esse é, como dizemos alhures, seu “materialismo prático” (o termo é de Marx), quase uma filosofia da práxis como poiesis, sem determinismos, dualismos, pieguismos, a favor da afirmação e da exuberância humanas, por uma cidadania material, associada, do modo mais geral, em qualquer nível e de várias formas possíveis, ao acesso a meios, competências e condições, os mais avançados e sustentáveis.
A propósito, sobre isso, lembremos que a emancipação dos escravizados, nos EUA, incluía a promessa progressista, jamais cumprida, de “40 acres [de terra] e uma mula” para o trabalho de cada família. E nossa metafórica tirada: “mais vale ensinar a pescar do que dar o peixe” só se completa com acesso a “vara”, “rede”, “barco”, às respectivas “competências” aprimoradas, a “formas institucionais apropriadas”, tanto de independência como de associação, a mercado, e mais mobilização e ambiência nacionais favoráveis, educacionais, culturais, simbólicas.
Inclusão/mobilização produtiva, educacional, técnico-científica
N’O capital, Marx está falando de produção autônoma no contexto da construção da sociedade norte-americana, evangélica, do seu tempo; falando, note-se bem, da construção institucional, deliberada, de certa via democrática de desenvolvimento (que, entretanto, esqueceu de índios e de escravizados, etc.). Está falando da opção de não importar da Europa as mesmas relações de produção, para seres humanos que, escorraçados e audaciosos, desenraizados, de lá chegavam ao Novo Continente. Por essas e outras, Marx e Engels, na Ideologia Alemã, consideraram os norte-americanos os indivíduos mais avançados do seu tempo.
No Brasil, não estamos nessas circunstâncias, tampouco estamos no script histórico geral, séc. XIX, de Marx, nem estamos na Europa metropolitana, salariada, ela própria já pouco viavelmente social-democrata. Nem por isso precisamos ficar infelizes e melancólicos como os filósofos críticos frankfurtianos, humanistas elitistas da “alienação” e do “fetichismo da mercadoria”. Ou execrar “pobres de direita” e “capetalismos” abstratos para seguir fixados em assistencialismo, pobrismo, identitarismo segmentário, ou de mais maneiras empacados em neoliberalismo mitigado.
O Basil popular nunca foi propriamente uma sociedade salariada, agora menos ainda. Desde a escravidão oscila e se reproduz numa baixa, misturada, “livre iniciativa” — desamparada, deseducada, entretanto batalhadora – desde a qual forma suas aspirações e de onde brota, apesar de tudo, boa parte da nossa energia criadora, produtiva. Entre nós, o informal tem sido desde sempre o verdadeiro formal, como censos nacionais têm mostrado, no que, entretanto, se poderia perceber também uma oportunidade, eu ousaria dizer, comparável à das transições nacionais do rural ao urbano. Envolvendo para isso uma demanda por recriação institucional, segundo outra política econômica, na verdade, até outra economia política.
Revoluções e construções nacionais bem-sucedidas sempre foram coisa herética e original, até experimental, e países mais bem arranjados têm sido aqueles economicamente menos concentrados (do que o Brasil), marcados por uma mais difundida produção de valor-agregado, por modos mais avançados e sustentáveis de valorização do trabalho e das disposições criativas de seus filhos. Em conjunto e somatória com mais transformações, num verdadeiro Projeto, com perdão da má palavra, nacional – que isso, sim, é decididamente não-neoliberal.
Esse, porém, é um desenvolvimento que parece não seduzir uma “esquerda tutelar”, sustentada no binômio ocupação do estado (para si) & assistência social (para os outros), ornada com purpurinas pseudo-radicais de “marxismo cultural” – e muito “amor comunal”. Quanto a isso, ainda se espera, como a Godot, algo digno do nome de Projeto Nacional, democrático-popular, includente, transformador, que, entretanto, uma esquerda de DNA contraditoriamente “trotsko-católico-globalista” (sem ofensa), hoje em conjuntura de baixa, de exaustão, de consequências lamentáveis, não alcança conceber. É uma pena, nosso Marx, progressista, aprovaria.
*José Crisóstomo de Souza é professor do Departamento de Filosofia da UFBA. Autor, entre outros livros, de O avesso de Marx: conversas filosóficas para uma filosofia com futuro (Ateliê de Humanidades) [https://amzn.to/3XGbMUn]
Notas
[i] Respeitável combinação de homem público e estudioso inquieto, Haddad achou – eu também – que seu O Terceiro Excluído (Zahar, 2022) e meu O Avesso de Marx (Ateliê de Humanidades, 2024) dariam um bom debate pela atualização das concepções de fundo do nosso progressismo. Este texto quer representar um aceno nessa direção.
[ii] Sobre isso, ver, as Teses 4 e 6 ad Feuerbach, cujo conteúdo Marx segue confirmando no resto de sua obra. Essas coisas estão desenvolvidas no meu Avesso de Marx, mas também explicadas no meu “Marx and Feuerbachian essence”, em The Young Hegelians, D. Moggach ed., Cambridge University Press, 2006.
[iii] Sobre esse assunto, veja-se, em Marx, Die deutsche Ideologie (Dietz), p. 487-8, ou German Ideology (Progress), p. 417-418, que estamos acompanhando aqui.
[iv] MARX, O Capital, Nova Cultural, 1983, v. 1, cap. XXV, p. 295ss.
[v] É interessante que aqui, diferente dos Anais Franco Alemães, Marx não está preocupado em desqualificar uma democracia de “indivíduos soberanos”.
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