O internacionalismo cultural de Lênin

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Por FLO MENEZES*

De todas as concepções leninistas sobre a arte a que mais se revela como de uma atualidade gritante é a defesa do internacionalismo

Um dos traços democráticos marcantes do espírito de Vladímir Ilitch Lênin manifesta-se em sua notória discrição em relação ao domínio das artes. Ao contrário das personalidades autoritárias, que logo procuram impingir a todos os campos de atividade humana sua própria concepção, em geral sem aceitar qualquer divergência e dirigindo-os em prol do fortalecimento de seu próprio poder – quer seja através de si mesmos, quer seja através de seus mandatários –, um líder revolucionário autêntico saberá sempre estimular a liberdade de pensamento e de criação artísticos.

Ao observarmos a postura de Vladímir Ilitch Lênin diante da arte no decorrer de sua vida sobressai esta notável diferença entre o modo como enxergava a cultura e a truculência que o sucedeu no comando burocrático da Revolução Russa, desembocando no Realismo Socialista stalinista, mormente formulado e postulado em regras rígidas de conduta artística por Andrei Alexandrovitch Jdanov, íntimo colaborador de Stalin.

As coerções que muitos artistas sofreram sob o jugo de Andrei Jdanov, fato que levou tais imposições a serem categorizadas como típicas do “Jdanovismo”, na realidade se afrouxaram não com a morte de Andrei Jdanov em agosto de 1948, mas somente com o desaparecimento do próprio Stalin em março de 1953, o que comprova o caráter antes de tudo stalinista do Realismo Socialista, tendo gerado uma das fases mais constrangedoras das artes, tal o baixo nível das obras advindas sob a tutela do usurpador soviético que, paradoxalmente, se valia do “leninismo” como um dos argumentos da manutenção e fortalecimento de seu poder autoritário.

A forma pela qual a arte e a cultura foram tratadas na era stalinista é uma das mais cabais provas do quão contraditório era a reivindicação, por parte de Stalin, de uma herança “leninista”, pois como bem afirmara Anatoli Lunatcharski, nomeado Comissário do Povo no setor da Educação e Cultura após a Revolução de Outubro de 1917, “ao longo de sua vida, Lênin dispôs de muito pouco tempo para dedicar à arte uma atenção especial. A esse respeito, sempre se confessou um leigo e, como sempre considerou o diletantismo como algo de odioso, não gostava de dar opiniões sobre arte” (Lunatcharski 1975, p. 9).

Era evidente que, para Vladímir Ilitch Lênin, a arte exigia uma consideração específica e cuidadosa, e uma externação séria a esse respeito só poderá advir de pessoas que se julgassem suficientemente competentes diante das linguagens artísticas: “[Lênin] declarou que não podia falar seriamente daquelas questões [sobre arte], pois não considerava possuir a competência necessária” (Lunatcharski 1975, p. 13).[i]

Desta atitude fundamental, pela qual transparecem respeito e espírito comedido diante da criação e da invenção no terreno das artes, decorre uma consequência lógica e condizente com o espírito revolucionário: a arte e a cultura não deveriam sofrer imposições por parte da Revolução, e um líder revolucionário, por mais que pudesse naturalmente possuir suas próprias predileções, e mesmo que se julgasse portador de competência necessária para se pronunciar sobre arte, não deveria exercer qualquer coerção ao artista. E por mais que Lênin fosse o líder supremo da Revolução Russa, gozando de maior prestígio e poder do que seu maior companheiro na direção dos rumos da Revolução, Trotsky, suas opiniões ocasionais jamais lhe serviriam como argumento para formular diretrizes a serem seguidas pelos agentes culturais.

Tal fato é comprovado e reforçado pelo próprio Anatoli Lunatcharski que, constantemente despachando com Vladímir Ilitch Lênin sobre assuntos ligados à educação e à cultura e respeitosamente indagando-lhe, com certa frequência, sobre suas opiniões acerca dos rumos a serem adotados em sua “pasta”, atesta veementemente: “Vladimir Ilitch nunca converteu as suas simpatias e antipatias estéticas em ideias diretrizes” (Lunatcharski 1975, p. 15).

A desenvoltura de Trotsky ao lidar com as questões artísticas, e mais especificamente com a literatura, tendo como fruto principal (mas não único) seu tomo reunindo ensaios redigidos principalmente entre 1922 e 1923 sob o título Literatura e Revolução, faz-nos conjecturar que, entre Lênin e Trotsky, havia certa distinção: enquanto o primeiro caracteriza-se, como atestamos acima, por um manifesto comedimento diante das questões artísticas, o segundo parecia mais envolvido, desenvolto e dedicado a essas questões, possuindo, ao que parece, cultura mais vasta e crítica em relação sobretudo às obras literárias, a ponto de manifestar-se através desses ensaios críticos que acabaram por constituir uma das mais preciosas contribuições do marxismo do século XX no terreno das artes.

E isto sem contar com seu posterior envolvimento, já nos anos finais de sua vida (mais precisamente, em 1938), com uma das principais vertentes das vanguardas artísticas, a saber, o Surrealismo – sobretudo a partir de suas relações muito amigáveis com o escritor francês André Breton, um dos líderes do movimento e trotskista confesso –, sem deixar de se pronunciar de modo igualmente crítico diante desta corrente, que Trotsky via com certa precaução por entender que, pelo viés da chamada “escritura automática”, o Surrealismo estivesse talvez interpretando de maneira equivocada a ainda então emergente psicanálise freudiana. Nisso consistia a reserva de Trotsky em relação a um “acaso objetivo” que se firmava como princípio sagrado do movimento surrealista.[ii]

Esta distinção entre Lênin e Trotsky parece-nos incontestável, portanto, no que diz respeito ao envolvimento com as questões artísticas e à desenvoltura de ambos nesse terreno tão específico, mas as convergências não são menores. Assim é que, em um importante texto de 9 de maio de 1924, “O Partido e os artistas”, Trotsky, em plena conformidade com a discrição leniniana (preferimos, aqui, esta designação a “leninista”), assevera: “Sim, devemos lidar com a arte como arte e com a literatura como literatura, ou seja, como um setor inteiramente específico da atividade humana. Temos, é claro, critérios de classe que também se aplicam ao campo artístico, mas esses critérios de classe devem, nesse caso, ser submetidos a um tipo de refração artística, ou seja, devem ser adaptados ao caráter absolutamente específico da esfera de atividade à qual os aplicamos” (Trotsky 1973, p. 137).

A afirmação de Trotsky, em plena fase de afirmação da Revolução Russa e já em seu processo de degeneração – pois data de quatro meses depois da morte de Lênin –, ecoa sua formulação já visionária de 1910, quando, em um texto intitulado “A intelligentsia e o Socialismo”, afirmava que “independentemente do caráter de classe de qualquer movimento (pois esse é apenas o caminho!), independentemente de sua fisionomia político-partidária atual (pois esse é apenas o meio!), o socialismo, por sua própria essência, como um ideal social universal, significa a liberação de todos os tipos de trabalho intelectual de todas as limitações e obstáculos histórico-sociais” (Trotsky 1973, p. 38).

Ora, esta libertação do trabalho intelectual como uma das metas fundamentais do socialismo não era justamente o que inscrevia Vladímir Ilitch Lênin como um de seus preceitos de base em relação aos artistas? A grande amiga de Rosa Luxemburgo, Clara Zetkin, em suas Lembranças de Lênin (1955), reproduz uma afirmação de Lênin que não nos deixa dúvidas sobre isso: “Em uma sociedade baseada na propriedade privada, o artista produz mercadorias para o mercado, ele precisa de compradores. Nossa revolução libertou os artistas do jugo de tais condições prosaicas. Ela tornou o Estado soviético seu defensor e seu cliente. Todo artista, todo aquele que se considera um artista, tem o direito de criar livremente de acordo com seu ideal, sem depender de nada” (Lênin apud Zetkin, em: Lênin 1980, p. 231).

Por certo que a postura de Lênin não está isenta de contradições. No calor das horas, por algumas vezes apelou a Lunatcharski para que guiasse a produção cultural como propaganda da Revolução.[iii] Se o artista não deveria “depender de nada”, por qual razão a arte deveria servir como propaganda? O calor das horas a que nos referimos não data apenas da Revolução de Outubro: já quando da primeira Revolução Russa, malograda, de 1905, em um texto cujo título é “A organização do Partido e a literatura do Partido”, escrito em 13 (26) de novembro[iv], Lênin chega a formular que “as editoras, lojas, livrarias e salas de leitura, bibliotecas e outros estabelecimentos devem ser empresas do Partido, sujeitas ao seu controle” (Lênin 1975, p. 73), formulação esta que cairá como uma luva na mão de ferro jdanovista/stalinista em seu controle rigoroso e autoritário da produção cultural.

Mas até mesmo aqui as contradições existem e podem exercer fator positivo. No mesmíssimo texto de 1905, Vladímir Ilitch Lênin reconhecia que a relação do Partido com a arte não poderia de modo algum se dar de forma mecânica, defendendo a liberdade individual do criador justamente no domínio da literatura, a qual, ao lidar com as palavras, escancara mais que qualquer outra arte o significado de suas formulações e a ideologia de seus autores: “É indiscutível que a literatura se presta menos do que qualquer outra coisa a essa equação mecânica, ao nivelamento, à dominação da maioria sobre a minoria. É indiscutível que é absolutamente necessário, nesse campo, dar um lugar mais amplo à iniciativa pessoal, às inclinações individuais, ao pensamento e à imaginação, à forma e ao conteúdo. Tudo isso é incontestável, mas tudo isso prova apenas que o setor literário do trabalho do Partido não pode ser identificado mecanicamente com os outros setores de seu trabalho” (Lênin 1975, p. 73).

Como quer que seja, a congruência entre Lênin e Trotsky manifestava-se de modo cada vez mais categórico não apenas nas questões práticas de ordem eminentemente política, mas também ideológica. A maturidade também chega aos grandes gênios, e já na construção do socialismo até então vitorioso ambos, tanto Lênin quanto Trotsky, defendiam uma relação não mecanicista entre Partido e arte, ou entre o próprio marxismo e a cultura, pois era patente para ambos que os métodos da arte adquirem certa autonomia, diferenciando-se dos métodos da análise eminentemente marxistas.

É precisamente a isto que se refere Trotsky em seu texto “A política do Partido na arte”, integrante de Literatura e Revolução: “O marxismo oferece diversas possibilidades: avalia o desenvolvimento da nova arte, acompanha todas as suas mudanças e variações, através da crítica, encoraja as correntes progressistas, porém não faz mais do que isso. A arte deve abrir por si mesma o seu próprio caminho. Os métodos do marxismo não são os mesmos da arte” (Trotsky 1980, p. 187).

O fato é que, por mais que se queira afirmar, em postura genuinamente marxista, a sobrevalência dos fatores históricos sobre os indivíduos, a tese de um substituísmo histórico, pela qual os indivíduos são vistos como essencialmente mais fracos que suas condições macro-estruturais, deve ser colocada em xeque, pois constatamos que, a depender de quem tal ou tal circunstância histórica depende, o decurso dos acontecimentos revela-se completamente diverso. Nas oscilações de tais formulações sobre as relações ambivalentes entre Partido e cultura, vemos que algumas delas não correm o risco de se tornarem armas autoritárias desde que nas mãos de indivíduos de caráter íntegro como o de Lênin, mas já nas mãos de personalidades como a de Stalin…

Certamente Vladímir Ilitch Lênin não contava com a própria morte quando insistia no caráter propagandístico da arte, pois fazer a propaganda de um regime revolucionário distingue-se por completo de fazer a propaganda de um regime despótico. Se a propaganda se faz necessária, ela só se demonstra revolucionária se “controlada” por revolucionários, pois do contrário torna-se arma letal da própria Revolução! Nesse sentido, revela-se sintomática a defesa de uma condição anárquica para a criação artística, absolutamente liberta de toda coerção e consequentemente de toda obrigatoriedade diante de um presumível e inescapável compromisso com a própria propaganda ideológica, tal como Trotsky fizera questão de constar na redação definitiva do Manifesto da F.I.A.R.I. – a Federação Internacional dos Artistas Revolucionários Independentes, fundada por ele, Breton e Diego Rivera em 1938.

Na redação provisória, a cargo de Breton e Rivera, a afirmação que acentua tal preceito não existia, mas tem lugar no texto acabado e corrigido por Trotsky: “Se, para o desenvolvimento das forças produtivas materiais, cabe à revolução erigir um regime socialista de plano centralizado, para a criação intelectual ela deve, já desde o começo, estabelecer e assegurar um regime anarquista de liberdade individual” (Trotsky & Breton 1985, pp. 42-43).[v]

Numa análise hermenêutica da origem desta redação, faz-se claro, pois, que a insistência e saliência do caráter anarquista da criação artística originam das mãos do próprio Trotsky, o que, a princípio, pode nos parecer como algo surpreendente. Como, em plena construção da IV Internacional, haveria de haver qualquer concessão ao anarquismo enquanto conceito, mesmo se confinado estritamente à criação artística? A maturidade – já o formulamos – também chega aos grandes gênios…

E outro aspecto não menos surpreendente é justamente a apelação ao este conceito tido pela ortodoxia pretensamente marxista como tão… burguês! Em seus ensaios de 1910-1911 sobre León Tolstói, numa das poucas digressões que Lênin concedera ao terreno propriamente artístico – motivadas sobretudo pela morte do grande escritor russo –, Lênin apela ao conceito de “genialidade”[vi] que procura situar a personalidade de Tolstói afora de toda tese de substituísmo histórico, atribuindo-lhe um papel único na história da literatura russa: “León Tolstói pertence a uma era que se refletiu em relevo magistral tanto em suas geniais obras artísticas quanto em sua doutrina, uma era que se estende de 1861 a 1905” (“León Tolstói e sua época”, ensaio escrito em 22 da janeiro (4 de fevereiro) de 1911: Lênin 1975, p. 60).

O mesmo conceito é evocado num texto anterior, de 28 de novembro (11 de dezembro) de 1910, intitulado “León Tolstói e o movimento operário contemporâneo”: “A crítica de Tolstói não é nova. […] Mas a originalidade da crítica de Tolstói, sua importância histórica, reside no fato de que ele traduz, com um vigor do qual apenas artistas geniais são capazes, a transformação da mentalidade das maiores massas do povo da Rússia no período em questão, e precisamente da Rússia rural e camponesa (Lênin 1975, p. 50).

Muito mais burguês (ou pequeno-burguês) que a evocação do termo é ignorar sua acepção original, tal como formulada, com grande propriedade, por Arthur Schopenhauer. O conceito refere-se a circunstâncias especiais em que um indivíduo, agindo com elevada objetividade diante dos fatos de seu mundo e de suas ordenações estruturais, logra a transcender as condições históricas pontuais que o circundam e acaba por erigir obras que conseguem ser transplantadas, com valor permanente, a outras épocas posteriores com o mesmo ou talvez até maior valor artístico e estético do que na época em que foram concebidas.

Para Schopenhauer, é exatamente na arte que a genialidade se revela com toda a sua plenitude: “É a Arte, a obra do gênio. Ela repete as Ideias eternas apreendidas por pura contemplação, o essencial e permanente dos fenômenos do mundo, que, conforme o estofo em que é repetido, expõe-se como arte plástica, poesia ou música. Sua única origem é o conhecimento das Ideias, seu único fim é a comunicação deste conhecimento. – A ciência segue a corrente infinda e incessante das diversas formas de fundamento a consequência: de cada fim alcançado é novamente atirada mais adiante, nunca alcançando um fim final, ou uma satisfação completa, tão pouco quanto, correndo, pode-se alcançar o ponto onde as nuvens tocam a linha do horizonte. A arte, ao contrário, encontra em toda parte o seu fim. Pois o objeto de sua contemplação ela o retira da torrente do curso do mundo e o isola diante de si. E este particular, que na torrente fugidia do mundo era uma parte ínfima a desaparecer, torna-se um representante do todo, um equivalente no espaço e no tempo do muito infinito. A arte se detém nesse particular. A roda do tempo para. As relações desaparecem. Apenas o essencial, a Ideia, é objeto da arte. (Schopenhauer 2005, pp. 253-254).[vii]

Nesse sentido, muito longe de interpretarmos a genialidade como algo de caráter absolutamente subjetivo – o que faria efetivamente o conceito coadunar perfeitamente com o espírito propriamente burguês e sobretudo romântico –, o conceito imbui-se de caráter objetivo, pendendo muito mais a uma interpretação marxista de seu significado: “Segue-se que a genialidade nada é senão a objetividade mais perfeita, ou seja, a orientação objetiva do espírito, em oposição à subjetiva que vai de par com a própria pessoa, isto é, com a vontade” (Schopenhauer 2005, p. 254).[viii] E é, constatemos, a esse caráter objetivo, que transcende sua época sem deixar de a ela se referir com toda a agudeza, que Lênin se refere ao se reportar a Tolstói.

Ao contrário do que se poderia esperar, Vladímir Ilitch Lênin não escancara um combate aberto ao pacifismo tolstoiano, e tampouco a seu moralismo. Reconhecendo a origem nobre do escritor russo, enaltece justamente o caráter transcendente que transpira em seus escritos, notadamente em suas obras derradeiras: “Tolstói pertencia, por nascimento e educação, à alta nobreza rural russa; ele rompeu com todas as opiniões correntes nesse meio e, em suas últimas obras, submeteu a críticas veementes o atual regime político, eclesiástico, social e econômico, baseado na escravização das massas, em sua miséria, na ruína dos camponeses e dos pequenos proprietários em geral, na violência e na hipocrisia que permeiam a vida contemporânea de cima a baixo” (Lênin 1975, p. 50).[ix]

Mais que isso: sai em defesa de Tolstói, enunciando a Revolução Socialista como único meio necessário e possível para que a obra do mestre russo se torne acessível a toda e qualquer pessoa: “O artista Tolstói é apenas conhecido, mesmo na Rússia, por uma minoria. Para que suas grandes obras possam de fato se tornar acessíveis a todos, é necessário lutar, continuar lutando contra a ordem social que condenou milhões, dezenas de milhões de homens, à ignorância, à brutalização, ao trabalho forçado, à miséria; é necessária a revolução socialista” (Lênin 1975, p. 43).[x]

Diante dessa “transcendência”, dessa objetividade de que é capaz a obra “genial”, Lênin tece, em um de seus ensaios ainda sobre o escritor russo, de 22 de janeiro (4 de fevereiro) de 1911 e intitulado “León Tolstói e sua época”, um curioso comentário, no qual salienta os aspectos progressistas presentes nas grandes obras de arte, independentemente de sua época. A “curiosidade” reside no fato de que, ao invés de “progressista”, Lênin emprega nada mais nada menos que o termo… socialista!

Isto faz-nos lembrar de uma resposta que o grande crítico literário comunista brasileiro Antônio Candido deu quando lhe perguntaram se ele estaria decepcionado com a derrocada do socialismo diante da hegemonia capitalista. Mais ou menos com essas palavras, Antônio Candido surpreendera o entrevistador e retribuíra a pergunta com outra pergunta inicial, seguida de afirmação categórica: “Derrocada do socialismo? Mas o socialismo é vencedor! Todas as conquistas sociais de dentro do capitalismo, o que há nele de mais progressista, devem-se ao ideário socialista e a suas lutas!”.[xi]

Lênin afirma, em seu ensaio, haver socialismo e socialismo, enaltecendo, como que numa apologia dos programas mínimos que ainda se encontram encurralados pelas condições antes feudais e depois capitalistas, cada elemento progressista como que fundamentalmente de índole socialista: “Não há dúvida de que os ensinamentos de Tolstói são utópicos e reacionários, no sentido mais exato e profundo do termo, em seu conteúdo. Mas isso não significa, de forma alguma, que essa doutrina não seja socialista, nem que não contenha elementos críticos capazes de fornecer materiais preciosos para a instrução das classes avançadas. Existe socialismo e socialismo. Em todos os países onde há um modo de produção capitalista, há um socialismo que expressa a ideologia da classe chamada a substituir a burguesia, e há outro socialismo que corresponde à ideologia das classes que a burguesia substituiu. O socialismo feudal, por exemplo, se enquadra na última categoria, e seu caráter foi definido há muitos anos, mais de sessenta anos atrás, por Marx, juntamente com as outras variedades de socialismo” (Lênin 1975, pp. 63-64).

Obviamente há, aqui, certa liberdade no emprego do termo, mas o que fica evidenciado é a importância em não se fechar as portas para as criações do passado, saindo-se em defesa do legado cultural e histórico de toda a humanidade, algo que unia visceralmente, mais uma vez, o pensamento e a erudição de Lênin e de Trotsky, em oposição crassa à truculência e ignorância de Stalin.

Em “Lênin sobre a cultura”, artigo escrito para o Pravda em 21 de janeiro de 1930, Lunatcharski acentua que “Lênin enfatizou fortemente que seria muito mais fácil para nós lutar e construir se tivéssemos herdado uma cultura burguesa mais desenvolvida após a derrubada da monarquia e das classes dominantes. Ele repetiu várias vezes que essa cultura burguesa tornaria mais fácil para o proletariado dos países do Ocidente acelerar, após sua vitória, a realização efetiva e completa do socialismo” (Lunatcharski em Lênin 1980, p. 247).

Foi nesse sentido que, fazendo analogia com o emprego de oficiais do antigo regime como membros do Exército Vermelho organizado por Trotsky, Lênin afirma, em seu texto “Êxitos e dificuldades do poder soviético”, de 1919, que o edifício do socialismo deveria ser construído com as pedras herdadas da burguesia: “Quando o camarada Trotsky me disse recentemente que o número de oficiais no exército estava na casa das dezenas de milhares, tive uma ideia concreta de qual é o segredo de usar nosso inimigo, de como devemos forçar aqueles que eram nossos inimigos a construir o comunismo, de como devemos construir o comunismo com os tijolos que os capitalistas escolheram usar contra nós. Nenhum outro tijolo nos foi dado! E com esses tijolos, sob a liderança do proletariado, devemos forçar os especialistas burgueses a erguer nosso edifício. Isso é o mais difícil, mas também é a garantia de sucesso” (Lênin 1980, p. 63).[xii]

Pelo viés dessa defesa da herança cultural burguesa, Lênin identificava-se fortemente com a visão de Trotsky sobre arte e cultura, pois para ambos o socialismo representaria não a negação da cultura histórica, mas antes a emancipação histórica do pensamento, tornando finalmente acessível às massas o que de mais relevante o homem conseguiu construir, mesmo em meio às condições mercadológicas do capitalismo, ou mesmo antes, em meio ao feudalismo, nos domínios das ciências, da filosofia e das artes. Daí as fortes reservas de ambos diante da iminente cultura proletária – a Proletkult, defendida por Alexander Bogdanov, seu grande amigo Lunatcharski e outros.

No esboço de resolução sobre a cultura proletária, cujo manuscrito inacabado de 9 de outubro de 1920 foi somente publicado pela primeira vez em 1945, Lênin não deixa dúvidas ao enunciar em seu segundo ponto como enxergava a questão: “Não a invenção de uma nova cultura proletária, mas o desenvolvimento dos melhores modelos, tradições e resultados da cultura existente do ponto de vista da concepção marxista do mundo e das condições de vida e luta do proletariado na época de sua ditadura” (Lênin 1980, p. 152).

Aqui não se tem claro como uma concepção marxista do mundo poderia servir como ponto de vista para tal desenvolvimento a partir dos modelos do passado burguês, mas há inequívoca compreensão de que inventar uma nova cultura que fosse proletária seria tarefa não apenas desaconselhável, como inviável, uma vez que, na ditadura do proletariado, o próprio proletariado deixaria de ser uma classe. Ninguém teria como predizer os rumos que as artes tomariam na construção alongada e assegurada do socialismo – fato que não pôde ser verificado, na medida em que a própria Revolução de Outubro começa seu processo de degeneração notadamente já a partir de 1923, com a doença de Lênin e sobretudo a derrota definitiva da Revolução Alemã –, mas tanto para Lênin quanto para Trotsky era certo de que um dos meios a serem apropriados pelo proletariado no processo revolucionário eram os meios de produção intelectual: o legado cultural histórico da humanidade.[xiii]

No terreno cultural, não haveria, pois, de se fazer tabula rasa. Rupturas desse tipo, caso ocorressem, deveriam advir de posturas eminentemente artísticas, como opção livre do criador, não como imposição do Partido e muito menos como diretriz fundamental da Revolução. Em seu magnífico ensaio sobre o grande poeta Vladímir Maiakóvski[xiv], considerado por Jean-Michel Palmier em seu imenso estudo sobre Lênin e a arte como o maior poeta da Revolução Russa[xv], Lunatcharski afirma que “Maiakóvski compreendia muito bem que o passado da humanidade guardava valores imensos, mas temia que, se os aceitasse, seria obrigado a aceitar também tudo o mais. Portanto, era preferível rebelar-se contra tudo e dizer: Nós somos nossos próprios antepassados” (Lunatcharski 2018, p. 186).

Mas Vladímir Ilitch Lênin, bem ao contrário – e com certas reservas, talvez sem muita razão, com relação à obra poética do poeta do metal (tal como Maiakóvski se definia) –, e da mesma maneira que Trotsky, não pestanejava em defender a herança burguesa, pronunciando-se mesmo pelo seu estudo sistemático por parte do proletariado vencedor. A Resolução 4 do texto “A cultura proletária”, de 9 de outubro de 1920, enuncia claramente: “O marxismo ganhou seu significado histórico universal como a ideologia do proletariado revolucionário porque não rejeitou de forma alguma as conquistas mais valiosas da época burguesa, mas, ao contrário, assimilou e reformulou tudo o que era de valor em mais de dois mil anos de desenvolvimento do pensamento e da cultura humanos. Somente o trabalho posterior nessa base e nessa direção, inspirado pela existência prática da ditadura do proletariado como a luta do proletariado contra toda exploração, pode ser considerado como o desenvolvimento de uma cultura verdadeiramente proletária” (Lênin 1979, p. 271).

No já citado texto de Trotsky de 1924, “O Partido e os artistas”, há enunciação que encontra grande identidade com a formulação leninista, quando Trotsky afirma que “a burguesia tomou o poder e criou sua própria cultura; o proletariado, tendo tomado o poder, criará uma cultura proletária. Mas a burguesia é uma classe rica e, portanto, educada. A cultura burguesa existia mesmo antes de a burguesia tomar formalmente o poder. […] Na sociedade burguesa, o proletariado é uma classe deserdada, que não possui nada e, portanto, não está em posição de criar sua própria cultura. Ao tomar o poder, ele vê, pela primeira vez, claramente, a situação real de seu terrível atraso cultural” (Trotsky 1973, p. 140).

Essa crua constatação, evidente em mentes portadoras de honestidade e franqueza intelectuais, incita-nos a refletir sobre a situação da cultura na atualidade, em meio à hegemonia do capital. A situação, porém, é diversa: com o atraso das revoluções proletárias e o relativo avanço “socializante” de algumas medidas populistas de cunho social dentro do próprio capitalismo (avanços do tipo “programa mínimo” aos quais já nos referimos), o proletariado, mesmo em meio ao capitalismo tardio, acaba por erigindo uma sua cultura “marginal”, fazendo-o, porém, em condições extremamente precárias e sob forte imposição ideológica, ao nível específico das linguagens artísticas, das sociedades de consumo, tendo por resultado produtos culturais de baixíssimo nível, defendidos com unhas e dentes pela “ideologia do empoderamento” que tende a confundir a legitimidade de tais iniciativas com uma atitude irresponsável, do ponto de vista marxista, em defesa da qualidade desses subprodutos culturais da sociedade capitalista, pelo simples fato de que eles advêm das classes mais exploradas da sociedade.

Tem-se, por conseguinte, uma verdadeira apologia da miséria cultural. O que se vê simplesmente é a supremacia e a apologia da própria indústria cultural capitalista (como bem a definiu Theodor W. Adorno). Vivemos, do ponto de vista cultural, o período mais crítico da humanidade. É preciso ter coragem para denunciar uma situação crítica como esta, diante do risco de linchamento por parte de pseudo-esquerdistas (em geral, pequeno-burgueses de rasa formação cultural), e lutar, mesmo ainda dentro dos marcos do capitalismo, para o acesso às populações desfavorecidas da cultura e do estudo das linguagens artísticas, com todas as suas especificidades técnicas. Isto sem abandonar a defesa das vanguardas artísticas, pois o caráter de resistência diante da barbárie cultural vem à tona em meio a suas manifestações, numa batalha que faz reviver a luta travada por Maiakóvski em prol do Novo.

Reportando-se à postura maiakovskiana, Lunatcharski assevera: “O poeta deve tomar parte da produção de coisas novas, ou seja, suas obras, ainda que não sejam utilitárias em si, devem proporcionar estímulos, métodos ou instruções para produzir coisas úteis. A finalidade de tudo isso é a transfiguração das circunstâncias e, por consequência, a transformação de toda a sociedade” (Lunatcharski 2018, p. 189).

O que se defende, aqui, é a sensibilidade estética, algo sistematicamente combatido pelo capitalismo tardio e pela indústria cultural.

Entretanto, Vladímir Ilitch Lênin nem sempre soube acompanhar e mesmo valorizar este Novo tão defendido pelo poeta do metal. “A respeito do futurismo”, por exemplo, “a sua opinião era francamente negativa” (Lunatcharski 1975, p. 13), e demonstrava grande dificuldade em assimilar ou deixar-se levar pela sensibilidade musical. A abstração da música, que apesar de toda a sua tecnicidade (que a faz certamente a mais difícil das artes) tem o potencial, pela força das tensões e relaxamentos e de seu decurso temporal, de comover, de provocar emoções, incomodava a Lênin.[xvi]

Talvez por causa de tal dificuldade preferia a música de Beethoven, em especial a Sonata Appassionata, como atesta sua esposa Nadejda Krúpskaia e suas Recordações sobre Lênin[xvii]. A obra de Beethoven não é, evidentemente, a única na qual isto ocorre, mas é um exemplo bastante clarividente de como o progresso técnico burguês ocasiona reflexos diretos na criação artística, e ao mesmo tempo em direção por vezes oposta ao próprio espírito burguês.

Em sua curiosa análise e reflexão acerca dos sons do mundo – seu livro A afinação do mundo –, o criador do termo paisagem sonora (soundscape), o canadense Murray Schafer, observa que “a substituição do cravo, de corda pinçada, pelo piano, de corda martelada, tipifica a agressividade maior de uma época em que os objetos pinçados ou martelados passavam a existir graças a novos processos industriais. […] O poder permitido por esses novos desenvolvimentos técnicos foi aproveitado pela primeira vez por Beethoven[; …] seu temperamento agressivo tornou o caráter “ofensivo” dos novos instrumentos especialmente significativo para ele […]. Em princípio, há pouca diferença entre as tentativas de Beethoven para épater les bourgeois, com os efeitos em sforzando com punhos cerrados, e as do adolescente moderno com sua motocicleta. O primeiro é embrião do segundo” (Schafer 2011, p. 159).

De todas as concepções leninistas sobre a arte, porém, a que mais se revela como de uma atualidade gritante é a defesa do internacionalismo! Este aspecto é relevante, pois além de ir ao encontro da defesa de todo um legado da humanidade no terreno cultural, auxilia no esclarecimento da posição de Lênin quanto ao nacionalismo em sua importantíssima polêmica com Rosa Luxemburgo.

Como é amplamente conhecido, o debate em torno da questão nacional aflora quando, em seu Folheto Junius: a crise da socialdemocracia alemã, redigido entre fevereiro e abril de 1915 e publicado apenas um ano depois, em abril de 1916, Rosa Luxemburgo enuncia como Tarefa 5 ao final de seu texto: “Nesta era de imperialismo desenfreado, não pode mais haver guerras nacionais. Os interesses nacionais servem apenas como pretexto para colocar as massas trabalhadoras do povo sob o domínio de seu inimigo mortal, o imperialismo” (Luxemburgo 1979, Tomo II, p. 176). Não bastasse esta formulação, Rosa conclui em seu Princípio 6, de modo taxativo, que “a missão imediata do socialismo é a libertação espiritual do proletariado da tutela da burguesia, que se expressa por meio da influência da ideologia nacionalista” (Luxemburgo 1979, Tomo II, p. 180).

A posição de Rosa Luxemburgo é assertiva e não deixa margem para quaisquer dúvidas: ela identifica, acertadamente, na ideologia nacionalista a essência da própria ideologia burguesa. Sua visão assenta-se num radical internacionalismo, sem qualquer concessão, e, sob este ponto de vista, Rosa foi, de todos os grandes marxistas, a personalidade mais coerente com os preceitos mais essenciais do próprio marxismo, pois afirmava ser no internacionalismo radical que residia a principal meta a ser atingida pelo movimento revolucionário internacional.

Destarte, ao mesmo tempo em que ia ao encontro, avant la lettre, da concepção trotskista que criticava o isolamento do socialismo em um só país (teoria stalinista que serviria de base para o fortalecimento da burocracia soviética), ou seja, dentro das fronteiras nacionais (algo que, como sabemos, se evidenciaria cada vez mais apenas em período posterior, ao longo do processo de degeneração do Estado soviético, opondo diametralmente Trotsky a Stalin), também identificava-se, igualmente de modo antecipado e premonitório, com a teoria da dissolução (talvez utópica) do Estado enquanto instrumento de poder e organização social das classes dominantes, tão bem formulada por Vladímir Ilitch Lênin em O Estado e a Revolução, concebido um ano após a publicação do Folheto Junius, ou seja, entre agosto e setembro de 1917, às vésperas da Revolução de Outubro.

Rosa era, portanto, uma grande visionária, e se firmaria logo como a principal líder da Revolução Alemã de 1918, ao lado de Karl Liebknecht, cujo desfecho negativo, com o assassinato de ambos em janeiro de 1919 pelas milícias que antecederam a ascensão de Hitler ao poder na Alemanha[xviii], consistiria no principal golpe sofrido pelo movimento comunista internacional no século XX, pois caso a Revolução Alemã tivesse saído vitoriosa sob a liderança de Rosa e Liebknecht, a Revolução Russa teria encontrado forte e imediato apoio no seio da Europa e no país europeu mais importante geográfica e politicamente naquele início de século XX, e todo o decurso do século passado teria sido completamente outro, com um provável avanço avassalador do movimento comunista por todo o globo!

Na realidade, a derrocada do novo levante revolucionário alemão de 1923, selando qualquer possibilidade de revolução comunista em solo germânico, frustrando de vez o movimento revolucionário alemão de 1918 e abrindo as vias à ascensão nazista, representou, ao lado da morte de Lênin logo ao início de 1924, os dois grandes desastres sofridos pelo movimento revolucionário internacional: o primeiro, por circunstâncias políticas; o segundo, por um azar, uma fatalidade que, por questões de saúde, subtraiu da Revolução vitoriosa na Rússia, justamente em seu momento mais crítico, seu principal líder, Lênin. Foi muito mau agouro para poder ter dado certo…

Como quer que seja, ao tomar conhecimento do Folheto Junius, Vladímir Ilitch Lênin, reconhecendo o altíssimo nível na elaboração (genuinamente marxista) do escrito, e sem saber que Junius era um pseudônimo e que a redação vinha das mãos da genial Rosa Luxemburgo, surpreendeu-se com o teor do texto justamente no tocante à oposição do Folheto Junius quanto à tese da autodeterminação dos povos, contrapondo este preceito, tido (até hoje) pela maioria dos marxistas como princípio quase que sagrado, ao princípio basilar da luta de classes, ao identificar, nas raízes ideológicas dos movimentos nacionais, a própria ideologia burguesa: “Lênin (que não sabia que Junius era Rosa Luxemburgo) ficou chocado ao ler no mesmo texto aquela análise que se opunha à autodeterminação nacional e contrapunha a ela a ‘luta de classes’” (Dunayevskaya 2017, p. 140).

Vladímir Ilitch Lênin apoiava-se, obviamente, no caráter progressista e na estratégia transitória que se evidenciava na defesa das lutas anticoloniais, apoiado pelo histórico das avaliações acerca das lutas pela independência dos países coloniais desde Marx e Engels. Já numa carta a Kautsky de 7 de fevereiro de 1882, Friedrich Engels asseverava: “Em nenhum caso temos a tarefa de desviar os poloneses de seus esforços para lutar pelas condições vitais de seu desenvolvimento futuro, ou de persuadi-los de que a independência nacional é uma questão muito secundária do ponto de vista internacional. Pelo contrário, a independência é a base de toda ação internacional comum” (Engels apud Dunayevskaya 2017, pp. 136-137).

Mas Rosa Luxemburgo não aceitava qualquer concessão, e bem a compreendemos enquanto artistas radicais: a posição de Rosa, radicalmente internacionalista, é, aos olhos do artista radical (e o afirmo, aqui, como sendo um deles), e ao lado da defesa de sua condição anárquica (como defendia Trotsky em seu texto de 1938 concebido conjuntamente com Breton e Rivera), a mais coerente com os preceitos mais fundamentais da ideologia comunista e revolucionária, e até mesmo com relação à autodeterminação dos povos Rosa mostrava-se cética, pois por detrás do princípio escamoteava-se, via de regra, um rastro de ideologia burguesa que certamente exerceria forte propensão a brecar o movimento revolucionário e restringir a emancipação nacional dentro dos marcos regulatórios da sociedade classista.

Para Rosa, apenas um movimento que tivesse como lema fundamental o internacionalismo revolucionário poderia levar a cabo o projeto comunista radical sem que, a meio caminho, viesse a se perder e ser objeto de uma dramática capitulação. Como afirma Dunayevskaya, “a eclosão da Primeira Guerra Mundial não conteve a oposição de Luxemburgo à autodeterminação. […] Sua convicção era de que o internacionalismo e o ‘nacionalismo’, até mesmo a questão da autodeterminação, eram opostos absolutos” (Dunayevskaya 2017, p. 139). Lênin opunha a esta posição de Rosa, entretanto – e não sem razão de seu ponto de vista –, o fato de que “a dialética marxista exige uma análise correta de cada situação específica […]. A guerra civil contra a burguesia também é uma forma de luta de classes” (Lênin apud Dunayevskaya 2017, p. 141).

Nada mais perverso e oposto à dialética marxista do que o pensamento dualista que deseja decretar a razão a um dos lados quando, sob suas respectivas perspectivas e pontos de vistas, ambos tinham razão! Um marxismo que se quer permanentemente em evolução, em atualização revigorante, necessita arejar-se e entender que as diferenças entre grandes revolucionários podem resultar em salutar amadurecimento diante das estratégias e táticas a serem postas em contínuo movimento, em permanente (r)evolução, e se a posição de Lênin dizia respeito a decisões locais, a avaliações concretas de cada situação de luta, foi justamente no campo da cultura, em sua escancarada oposição a “culturas nacionais”, que o internacionalismo radical de Lênin se evidencia com todas as letras.

Pois já em suas “Notas críticas sobre a questão nacional”, de novembro de 1913, Lênin afirmava: “O slogan da cultura nacional é uma arrogância burguesa (e muitas vezes também ultrarreacionária e clerical). Nosso slogan é a cultura internacional da democracia e do movimento mundial dos trabalhadores. […] Quem quiser servir ao proletariado deve unir os trabalhadores de todas as nações, lutando invariavelmente contra o nacionalismo burguês, tanto o seu “próprio” quanto o de outros. Quem quer que defenda o slogan da cultura nacional não tem lugar entre os marxistas, seu lugar é entre os filisteus nacionalistas” (Lênin 1975, pp. 157 e 159).

Bastaria uma sucinta avaliação do papel reacionário desempenhado pelas correntes nacionalistas em arte – em especial, em meu contexto pessoal, da música nacionalista brasileira, contra a qual me debato como compositor radical – para certificarmo-nos do quão estavam certos tanto Rosa quanto Lênin: se o socialismo deseja aflorar como efetivamente emancipatório, ele o fará na defesa de todo o legado cultural da humanidade varrendo toda fronteira nacional que procure aprisionar os fatos artísticos, culturais e científicos, opondo os povos deste mísero planeta.

Assim é que, da sua discrição diante dos fenômenos artísticos à luta pelo acesso radical às massas de todo o legado cultural da humanidade, passando pela intransigente defesa da liberdade criadora, da transcendência das grandes (geniais) obras de arte, da assimilação e estudo da herança cultural burguesa e do internacionalismo cultural, entrevemos a integridade do pensamento genuinamente leninista.

*Flo Menezes, compositor, é professor titular da Universidade Estadual Paulista (Unesp), autor, entre outros livros, de A Acústica Musical em Palavras e Sons (Ateliê, 2014). [https://amzn.to/3u19tiF]

Referências


Dunayevskaya, Raya: 2017. Rosa Luxemburgo, la liberación femenina y la filosofía marxista de la revolución. La Habana: Editorial Filosofi@cu Instituto de Filosofía.

Lênin, Vladímir Ilitch: 1975. Sobre arte y literatura, edición preparada por Miguel Lendinez. Madrid: Ediciones Jucar.

1979. La literatura y el arte. Moscú: Editorial Progreso.

1980. La cultura y la revolución cultural. Moscú: Editorial Progreso.

1982. Primavera em Moscou (um poema de Lênin). São Paulo: Edições Populares (Analdino Rodrigues Paulino Neto).

2018. Cadernos filosóficos. São Paulo: Boitempo Editorial.

Lunatcharski, Anatoli:

1975. As artes plásticas e a política na U.R.S.S.. Lisboa: Editorial Estampa.

2018. Revolução, arte e cultura. São Paulo: Expressão Popular.

Luxemburgo, Rosa: 1979. Obras escogidas, Tomo I & II. Bogotá: Editorial Pluma.

Palmier, Jean-Michel: 1975. Lénine, l’art et la révolution. Paris: Payot.

Posadas, Juan: 2020. A música de Beethoven, as relações humanas e o socialismo. Brasília: Editor Independente C. A. Almeida.

Schafer, R. Murray: 2005. A afinação do mundo. São Paulo: Editora Unesp.

Schopenhauer, Arthur: 2005. O mundo como vontade e como representação. São Paulo: Editora Unesp.

2014. Die Welt als Wille und Vorstellung, Drittes Buch, § 36, in: Die Welt als Wille und Vorstellung / Die Kunst, Recht zu behalten / Aphorismen zur Lebensweisheit. Hamburg: Nikol Verlag.

Trotsky, León: 1973. Sobre arte y cultura. Madrid: Alianza Editorial.

1980. Literatura e revolução. Rio de Janeiro: Zahar Editores.

Trotsky, León & Breton, André: 1985. Por uma Arte Revolucionária Independente, Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra.

2016. Dossier André Breton – Surréalisme et Politique, Les Cahiers du Musée National d’Art Moderne. Paris: Centre Pompidou.

Notas


[i] Em um importante texto de 1932, “Por ocasião do 100º aniversário da fundação do Teatro Alexandrinsky”, Lunatcharski reproduz uma fala que Lênin lhe teria dirigido: “Não tenho a pretensão de me passar por um especialista em questões artísticas” (Lênin apud Lunatcharski, 1980, p. 246).

[ii] O próprio Breton cita Trotsky em seu texto sobre sua visita ao líder revolucionário em seu exílio no México: “Camarada Breton, o interesse que você dedica aos fenômenos de acaso objetivo não me parece claro. Sei muito bem que Engels fez apelo a essa noção, mas pergunto-me se, no seu caso, não há outra coisa. Parece-me que você tem alguma preocupação de guardar – suas mãos delimitavam no ar um frágil espaço – uma janelinha aberta para o além” (Trotsky apud Breton, em: Trotsky & Breton 1985, p. 62; grifo original).

[iii] “Em 1918 Vladimir Ilitch chamou-me e disse-me que era preciso desenvolver a arte como meio de propaganda” (Lunatcharski 1975, p. 11).

[iv] A diferença das datas refere-se à diferença entre os calendários ocidental e russo.

[v] No original em francês: “Si, pour le développement des forces productives matérielles, la révolution est tenue d´ériger un régime socialiste de plan centralisé, pour la création intellectuelle elle doit dès le début même établir et assurer un régime anarchiste de liberté individuelle.” (“Pour un art révolutionnaire indépendant” (Manifesto da F.I.A.R.I., de 25 de julho de 1938), assinado por André Breton e Diego Rivera, mas redigido também por Trotsky, em: Dossier André Breton – Surréalisme et Politique, Les Cahiers du Musée National d’Art Moderne. Paris: Centre Pompidou, 2016, p. 106).

[vi] Ainda que eu possua conhecimentos básicos da língua russa, não tive acesso aos textos de Lênin no original russo, mas valho-me aqui da seriedade das traduções que pude ler (em espanhol, em português…), amparando-me na suposição de que Lênin tenha efetivamente apelado ao conceito de genialidade em seu vocábulo correspondente em russo.

[vii] Dada a importância da formulação filosófica, reproduzimos o trecho no original em alemão: “Es ist die Kunst, das Werk des Genius. Sie wiederholt die durch reine Kontemplation aufgefaßten ewigen Ideen, das Wesentliche und Bleibende aller Erscheinungen der Welt, und je nachdem der Stoff ist, in welchem sie wiederholt, ist sie bildende Kunst; Poesie oder Musik. Ihr einziger Ursprung ist die Erkenntnis der Ideen; ihr einziges Ziel Mittheilung dieser Erkenntnis. – Während die Wissenschaft, dem rast- und bestandlosen Strom vierfach gestalteter Gründe und Folgen nachgehend, bei jedem erreichten Ziel immer wieder weiter gewiesen wird und nie ein letztes Ziel, noch völlige Befriedigung finden kann, so wenig als man durch Laufen den Punkt erreicht, wo die Wolken den Horizont berühren; so ist dagegen die Kunst überall am Ziel. Denn sie reißt das Objekt ihrer Kontemplation heraus aus dem Strome des Weltlaufs und hat es isoliert vor sich: und dieses Einzelne, was in jenem Strom ein verschwindend kleiner Teil war, wird ihr ein Repräsentant des Ganzen, ein Äquivalent des in Raum und Zeit unendlich vielen: sie bleibt daher bei diesem einzelnen stehen: das Rad der Zeit hält sie an: die Relationen verschwinden ihr: nur das Wesentliche, die Idee, ist ihr Objekt.” (Schopenhauer, Die Welt als Wille und Vorstellung, Drittes Buch, § 36, em: Schopenhauer 2014, pp. 199-200; grifos originais).

[viii] No original em alemão: “[…] So ist Genialität nichts anderes als die vollkommenste Objektivität, d. h. objektive Richtung des Geistes, entgegengesetzt der subjektiven, auf die eigene Person, d. i., den Willen, gehenden.” (Schopenhauer idem, 2014, p. 200; grifos originais).

[ix] Este trecho é extraído de seu ensaio “León Tolstói e o movimento operário contemporâneo”, de 28 de novembro (11 de dezembro) de 1910.

[x] Este trecho é extraído do ensaio que Lênin redigiu por ocasião da morte do escritor russo: “León Tolstói”, de 16 (29) de novembro de 1910.

[xi] Reproduzo de memória a afirmação do grande crítico, mas asseguro a veracidade de seu conteúdo.

[xii] É nesse sentido que Lênin também afirma, em Esquerdismo, doença infantil do comunismo, que “não se podem banir ou destruir os intelectuais burgueses, eles devem ser derrotados, transformados, fundidos novamente, reeducados, assim como os próprios proletários devem ser reeducados com base na ditadura do proletariado, ao custo de uma luta de longo prazo, pois também não poderão se livrar de seus preconceitos pequeno-burgueses de repente, por um milagre, pela intervenção da Santíssima Virgem, por uma ordem, uma resolução ou um decreto, mas somente às custas de uma luta de massa, longa e difícil, contra as influências pequeno-burguesas sobre as massas” (Lênin 1975, p.149).

[xiii] Em As artes plásticas e a política na U.R.S.S., Lunatcharski, que nutria discordância com Lênin por advogar a favor da Proletkult, assevera: “Vladimir Ilitch discordava também da minha opinião a respeito da Proletkult. […] Temia que a Proletkult tentasse ocupar-se também da ‘elaboração’ de uma ciência proletária e, em geral, de uma cultura proletária total. […] Pensava que com estas iniciativas, de momento imaturas, o proletariado voltasse as costas ao estudo e à assimilação dos elementos científicos e culturais já existentes” (Lunatcharski 1975, pp. 15-16).

[xiv] Tanto o ensaio sobre Maiakóvski quanto o sobre Dostoievski (no qual o autor desenvolve a ideia do romance polifônico na obra do escritor russo) são provas do grande talento crítico de Lunatcharski. O de Maiakóvski, porém, revela em sua conclusão a faceta bastante questionável de Lunatcharski, ao opor-se veementemente contra Trotsky, alegando que, para Trotsky, o suicídio do poeta, em 1930, devia-se aos rumos da Revolução, já em plena degenerescência. Escreve Lunatcharski: “Trotsky escreveu que o drama do poeta é ter amado a revolução com todas as suas forças, ter ido ao seu encontro, quando essa revolução já não era autêntica, se perdendo em seu amor e sua caminhada. Naturalmente, como podia ser autêntica a revolução, se Trotsky não participa dela? Só isso já basta para demonstrar que é uma revolução ‘falsa’! Trotsky também afirma que Maiakóvski tirou a própria vida porque a revolução não seguia a via trotskista. […] Assim, no interesse de seu pequeno grupo político, insignificante e falido, Trotsky acolhe tudo o que é hostil aos elementos progressistas do mundo socialista que estamos criando” (Lunatcharski 2018, p. 199). Tal fato não impediu a Trotsky, com sua inabalável honestidade intelectual, que redigisse um tributo póstumo, em 1o de janeiro de 1933, a Lunatcharski, reconhecendo seus méritos culturais e intelectuais ao traçar, com sua pena aguda, um retrato psicológico arguto do militante que, de amigo e companheiro, tornou-se, em suas palavras, um “adversário honesto”. O curto ensaio, que não saiu em nenhuma edição em vida de Literatura e revolução, acabou sendo acrescido às edições póstumas deste livro fundamental para a cultura marxista. Como quer que seja, é preciso reconhecer que a alegação de Trotsky acerca dos motivos que teriam levado Maiakóvski ao suicídio não necessariamente correspondia à realidade, uma vez que, como bem descreve Palmier, o suicídio era uma ideia que perseguia o poeta desde há muito tempo: “Em 14 de abril de 1930, ocorreu uma tragédia. [Maiakóvski] se matou com um tiro no coração. Muitas pessoas tentaram encontrar uma razão política para esse suicídio, tentando ler nele o resultado do divórcio entre o novo regime e ele próprio […]. Outros viram isso como o ponto culminante de todas as críticas que ele havia recebido e, acima de tudo, a falta de entusiasmo por suas últimas obras. Na realidade, Maiakóvski, esse gigante hipersensível, foi assombrado pela morte e pelo suicídio desde que era jovem” (Palmier 1975, pp. 406-407).

[xv] Vide Palmier 1975, p. 423.

[xvi] “A música agradava muito a Vladimir Ilitch, mas alterava-o. […] Um dia disse-me francamente: ‘Ouvir música é muito agradável, ninguém duvida, mas, imagine você, altera-me o ânimo. De certo modo suporto-a penosamente’. […] A música agradava muito a Lênin, mas [que] o punha visivelmente nervoso.” (Lunatcharski 1975, p. 14)

[xvii] Em Lênin 1975, p. 246. O trotskista Juan Posadas, em seu ingênuo livro sobre a música de Beethoven, reafirma esta predileção de Lênin: vide Posadas 2020, p. 45.

[xviii] O golpe fatal da direita pré-hitlerista culminaria logo em seguida no assassinato de Kurt Eisner na Baviera em 21 de fevereiro desse mesmo ano de 1919, uma personalidade que fazia certa mediação entre o movimento operário e o Parlamento burguês e que defendia a manutenção da propriedade privada, mas que ainda representava, após o desaparecimento dos dois grandes líderes revolucionários alemães, uma mínima esperança em alguns avanços minimamente progressistas na sociedade alemã.


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