O minotauro do fascismo

Imagem: Soulful Pizza
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por GUSTAVO FELIPE OLESKO*

A questão de classe foi praticamente posta de lado. Aqueles que buscam trazer a classe para o debate são tratados como dinossauros, ortodoxos, atrasados ou simplesmente ignorados

Marinheiro, marinheiro (marinheiro)\ Quero ver você no mar (mar)\ Eu também sou marinheiro (marinheiro)\ Eu também sei governar\ Madeira de dar em doido\ Vai descer até quebrar\ É a volta do cipó de aroeira\ No lombo de quem mandou dar\ É a volta do cipó de aroeira\ No lombo de quem mandou dar” (Geraldo Vandré, aroeira).

Há atualmente um grande e até certo ponto proveitoso debate sobre a morte da esquerda no Brasil e no mundo. Constrói-se sob os escombros da caquética política de conciliação de classes debates sobre os a crise da esquerda, sobre se o Partido dos Trabalhadores é ou não é de esquerda, quase uma disputa para ver quem está mais a gauche. Contudo, aqui se faz uma provocação, inspirada no recém encantado geógrafo Carlos Walter Porto-Gonçalves[i]: “A esquerda está em crise. Viva a esquerda!”.

Portanto, partindo de dois pontos, busca-se aqui destacar as possibilidades de reestruturação do pensamento crítico brasileiro, tendo por base algumas análises pretéritas, as quais já marcavam a crise de esquerda. Robert Kurz, um dos marxistas mais ácidos, já destacava há mais de três décadas que

Com gestos de relativização, de masoquista humildade, que se revoga qualquer conceito, apenas pronunciado. A preocupação contínua com as “diferenças”, exacerbada a ponte de se converter em vício, parece dissolver os objetos históricos e sociais, tornando-os irreconhecíveis (KURZ, 1997, p. 16).[ii]

Justamente a relativização pós-moderna, levada como vício, leva a esquerda e a teoria crítica para uma crise. Durante os anos de governos do PT, criou-se ao largo do pensamento acadêmico – arrisco dizer também o político – a noção de que havia no país um predomínio das ideias ditas “progressistas”. Como o rei Minos, soberbo e arrogante, esse pensamento acabou sendo punido com a criação de um minotauro, no caso o protofascismo brasiliano, que tem sua essência um culto a figuras chaves, um bonapartismo torpe e esquálido de substância. Isso se comprovado quando do choque de parte da esquerda com a vitória dessa extrema direita nas eleições de 2018. Oras, o monstro já havia quebrado os muros do labirinto na qual fora enfurnado e havia tomado de assalto os municípios já em 2016.

Foi justamente esse vício na diferença e o desdém para com a unidade, que produziu uma derrota acachapante e que permite que até os dias, dentre outros fatores já muito trabalhados em diversos textos aqui no site A Terra é Redonda ou em outros meios, sejam acadêmicos, políticos, sindicais, etc. façam com que o minotauro do fascismo ainda esteja à solta. A maior força política do país no atual momento, e não é somente Vladimir Safatle que destaca, Paulo Arantes já o havia feito um ano antes em diversas mídias, é o da extrema direita.

Sua unicidade monstruosa mostra como sim, é possível, na diferença, criar uma unidade. Afinal de contas, a extrema direita nacional é formada por uma gama enorme de grupos: parte dos neopentecostais, latifundiários rentistas, empresários rurais grileiros de terra, militares, forças de segurança, indignados com a corrupção, viúvas da ditadura, neoyuppies daytraders fãs de bilionários, boleiros etc. A lista é infindável. Agora, na esquerda as fraturas são gigantescas.

A questão de classe, retornando a Robert Kurz, foi praticamente posta de lado. Aqueles que buscam trazer a classe para o debate são tratados como dinossauros, ortodoxos, atrasados ou simplesmente ignorados. Não que as outras questões devam ser postas de lado, muito pelo contrário. Ronaldo Tadeu de Souza nos auxilia enormemente ao nos citar que: “[…] a esquerda brasileira morre não por que se apropria grandemente de tais teorias sociais para compor o leque de entendimento e ação na realidade; quanto a isso estamos na vanguarda do que sugerem Perry Anderson e Göran Therborn. Mas o absoluto desprezo com que a esquerda brasileira, ressalvando pouquíssimas vozes, tem com relação ao marxismo e as flechas da aljava da teoria socialista clássica é escandaloso. Uma esquerda que ainda estivesse lendo, apenas O que fazer?, de Lênin, escrito em 1902, e não soubesse o que está escrevendo Butler e Honneth, Laval e Rahel Jaeggi seria um problema grave. Contudo, uma esquerda que somente se debruça sobre a teoria queer e estudos sobre desigualdade, psicanálise e pós-colonialidade, esfera pública e teoria da justiça e sequer vislumbra averiguar, por exemplo, o que significa o conceito de imperialismo de Lênin, Rosa Luxemburgo, Kautsky, Bukharin e Hilferding […],não deixa de ser sintomático de sua crise profunda (é constrangedor, nesse caso, o uso insistente da noção de correlação de forças para justificar as condutas políticas de Lula, Haddad e do PT).[iii]

Ou seja, o decoro atual da esquerda é estar na busca constante do mais novo e fragmentado pensamento crítico, porém, colocando na sombra justamente o pensar crítico clássico, do qual muitas vezes nasceram essas outras teorias sociais. Trazemos como exemplo a própria Teoria decolonial, por muitos apregoada como antimarxista (sic), sendo que um de seus principais expoentes (para alguns até mesmo formulador) foi um dos maiores marxistas que o América Latina produziu, no caso Enrique Dussel.

Agora, por que Carlos Walter nos é importante? Sua análise final sobre a crise da Geografia era a de que é precisamente a crise que traz a possibilidade de superação da mesma, uma superação onde se construa mais unicidade, menos repartições, menos fraturas dentro da esquerda, não somente a acadêmica, mas principalmente a da materialidade, ou seja, dos movimentos sociais e das classes em luta.

Uma teoria crítica que saiba resgatar o camponês, em vez de segmentar e judicializar a luta das diversas frações do campesinato, que saiba unificar a luta dos trabalhadores urbanos em seus mais diversos extratos, que consiga alcançar aquela e aquela trabalhadora aos trapos, os lumpen, do magnetismo da extrema direita. Por uma esquerda que busque em Marx, em Tristan, em Kropotkin, em Reclus, em Luxemburgo as armas da crítica para atacar e revolucionar, e não somente resistir “pela lei”.

Que a esquerda brasileira ache seu cipó de aroeira, para dar em quem mandou bater, que encontre nesses mares hoje cada vez mais vermelhos de sangue marinheiras e marinheiros que batam no peito e gritem: eu também sei governar.

*Gustavo Felipe Olesko é doutor em geografia humana pela Universidade de São Paulo (USP). Autor do livro Geografia Agrária (InterSaberes). [https://amzn.to/49Avl38]

Notas


[i] Gonçalves, C. W. P A geografia está em crise. Viva a geografia!. Boletim Paulista De Geografia, (55), 5–30. (2017[1978]). Recuperado de https://publicacoes.agb.org.br/boletim-paulista/article/view/1050.

Falecido em 6 de setembro de 2023, Carlos Walter foi um dos mais destacados geógrafos brasileiros, pertencendo a uma geração que deu ao país outros intelectuais que revolucionaram a ciência geográfica no país (não citamos todos com o temor de ausentar alguém),  destacando sempre que não era possível explicar o mundo somente com Marx, mas também não era possível explicar e mudar o mundo sem Marx.

[ii] KURZ, Robert. A Intelligentsia depois da luta de Classes. In: KURZ, Robert. Os últimos combates. Ed. Vozes, Petrópolis, 3ª Edição, 1997. O texto original data de 1992, tendo sido publicado por Kurz no Münchner Zeitschrift für Philosophie.

[iii] Souza, Ronaldo Tadeu de. A esquerda morreu? O debate Vladimir Safatle. Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2024/04/05/a-esquerda-morreu-o-debate-vladimir-safatle/


A Terra é Redonda existe graças
aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Marcos Aurélio da Silva Lincoln Secco Annateresa Fabris Antonino Infranca Plínio de Arruda Sampaio Jr. Alexandre de Lima Castro Tranjan Daniel Costa Ricardo Musse Luiz Marques Bento Prado Jr. Flávio R. Kothe José Costa Júnior Elias Jabbour Kátia Gerab Baggio Gerson Almeida Afrânio Catani Eliziário Andrade Paulo Fernandes Silveira Mariarosaria Fabris Gilberto Maringoni Lorenzo Vitral Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Ronaldo Tadeu de Souza Ladislau Dowbor Luiz Renato Martins Chico Whitaker Paulo Nogueira Batista Jr Maria Rita Kehl Rubens Pinto Lyra Sandra Bitencourt Lucas Fiaschetti Estevez Manuel Domingos Neto Alexandre Aragão de Albuquerque Manchetômetro Liszt Vieira André Singer Denilson Cordeiro Atilio A. Boron Ronald Rocha Vladimir Safatle Michael Löwy Tales Ab'Sáber Vanderlei Tenório Eduardo Borges Ricardo Fabbrini Chico Alencar Matheus Silveira de Souza Vinício Carrilho Martinez Rodrigo de Faria Benicio Viero Schmidt João Feres Júnior Claudio Katz Milton Pinheiro Boaventura de Sousa Santos Gabriel Cohn Igor Felippe Santos Julian Rodrigues Marcelo Guimarães Lima Ronald León Núñez Airton Paschoa José Luís Fiori Michael Roberts Otaviano Helene Ricardo Antunes João Adolfo Hansen Jorge Luiz Souto Maior Henri Acselrad Bernardo Ricupero Salem Nasser Francisco de Oliveira Barros Júnior Bruno Fabricio Alcebino da Silva José Dirceu José Raimundo Trindade Leda Maria Paulani Bruno Machado Alysson Leandro Mascaro Sergio Amadeu da Silveira João Paulo Ayub Fonseca Mário Maestri Gilberto Lopes Marcos Silva João Lanari Bo José Geraldo Couto Renato Dagnino Luiz Roberto Alves Paulo Capel Narvai Priscila Figueiredo Luiz Bernardo Pericás Daniel Brazil Yuri Martins-Fontes Luis Felipe Miguel Paulo Sérgio Pinheiro Francisco Fernandes Ladeira Juarez Guimarães Alexandre de Freitas Barbosa Remy José Fontana Osvaldo Coggiola Tadeu Valadares Marjorie C. Marona Luiz Carlos Bresser-Pereira Antônio Sales Rios Neto Jean Marc Von Der Weid Antonio Martins Eugênio Trivinho Luiz Eduardo Soares Eleutério F. S. Prado Armando Boito Jorge Branco Walnice Nogueira Galvão João Carlos Loebens Andrés del Río Rafael R. Ioris Fábio Konder Comparato Francisco Pereira de Farias Berenice Bento Valerio Arcary André Márcio Neves Soares Fernão Pessoa Ramos José Machado Moita Neto João Sette Whitaker Ferreira Anselm Jappe Marilia Pacheco Fiorillo João Carlos Salles Eugênio Bucci Valerio Arcary Michel Goulart da Silva Dennis Oliveira Tarso Genro Daniel Afonso da Silva Thomas Piketty Henry Burnett Flávio Aguiar Marilena Chauí Heraldo Campos Andrew Korybko Carlos Tautz Luís Fernando Vitagliano Luciano Nascimento Ricardo Abramovay Everaldo de Oliveira Andrade Marcelo Módolo Fernando Nogueira da Costa Celso Favaretto Ari Marcelo Solon Dênis de Moraes Eleonora Albano Slavoj Žižek Luiz Werneck Vianna Jean Pierre Chauvin Leonardo Avritzer Paulo Martins Celso Frederico Marcus Ianoni José Micaelson Lacerda Morais Carla Teixeira Leonardo Boff Samuel Kilsztajn Caio Bugiato Leonardo Sacramento Érico Andrade

NOVAS PUBLICAÇÕES