Olhando vitrines

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Por CHICO ALENCAR*

É preciso criar uma nova cultura, repensar nosso modelo de sociedade

Entramos na 2a metade desse estranhíssimo e inimaginável ano de 2020, totalmente surpreendente para todo mundo, para toda a humanidade, para diferentes regimes e sistemas que regulam a dinâmica econômica e os fluxos da vida. Tudo se desorganizou, em maior ou menor grau.

Minha expectativa em relação ao pós-pandemia – que não sabemos ao certo quando virá – oscila: às vezes acho que alguns elementos de uma nova ordem mundial, mais austera, solidária e ecologicamente sustentável, aparecerão com força. Teremos mais poder público, mais pesquisa, mais ciência, mais participação social. Mais governo enquanto viabilizador de políticas para as maiorias. E uma esfera pública ativa, cidadã, que o controle.

Às vezes não: parece que tudo voltará ao “velho normal”. E o sistema do Capital financeirizado, do mercado total, da aquisição de mercadorias como sentido de vida, da democracia delegativa, formal e banal, se reerguerá, fincado no individualismo consumista e na marginalização. Nem mesmo o neokeynesianismo de ocasião subsistirá. Mais do mesmo. Se o passado, como sabem os historiadores, não é um campo de exatidões, objeto de narrativas categóricas definitivas, que dirá o futuro, em época de incerteza estrutural?

Meu pessimismo predomina quando vejo o afã das pessoas na volta às ruas. Não para comprar o essencial, o básico para a sobrevivência. Mas para entrar nos shoppings, quem sabe apenas para olhar vitrines e ficar com desejo de comer “delícias plastificadas” nas praças de alimentação…

Estudiosos garantem que estamos na civilização do consumo e que o ser humano é condicionado por ela. A necessidade artificial delira!

Giles Lipovetoky, filósofo francês, autor de “Hipermodernidade: hiperconsumo e hiperindividualismo”, justifica, ao afirmar que consumimos “porque não suportamos repetição. Durante milênios, nos vestíamos da mesma maneira, tínhamos o mesmo gosto. Era o mundo do costume e da tradição. Hoje isso se tornou insuportável. Não queremos passar as férias no mesmo lugar, não queremos comer a mesma coisa nem assistir ao mesmo filme. Hoje, é o mercado – não mais a igreja – que cuida da nossa infelicidade. O mundo moderno nos tornou permanentemente insatisfeitos”.

Eu também tenho sede de infinito. Mas não tento saciá-la em objetos, em coisas perecíveis, por mais atraentes que sejam. E você?

É preciso criar uma nova cultura: quero acreditar que o coronavírus, com seu rastro de destruição, nos obrigará a repensarmos o modelo de sociedade em que estamos vivendo, do “capitalismo de desastre”. Já está em curso uma disputa de rumos para as sociedades. Das urnas da Polônia e da França chegam notícias moderadamente boas. Trump não terá vida fácil até novembro… As ruas até então interditadas começam a ser ocupadas, com as cautelas necessárias, pelas colunas de jovens antirracistas e antifascistas.

O certo é que a aspiração a uma organização social mais fraterna, mais ambientalmente saudável e mais democrática só se realizará se for de milhões, da maioria. Quem sobreviver tem muito caminho a percorrer.

*Chico Alencar é professor da UFRJ, escritor e ex-deputado federal (PSOL/RJ)

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