O pacto com o vírus

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Por Flávio Aguiar*

Bolsonaro, como Hermógenes, o personagem de Grande Sertão:Veredas, ao fazer negócio com o Demônio, torna-se ele mesmo parte da identidade do Maligno

Procurei uma figura literária comparável a Jair Messias. Encontrei: é o Hermógenes, um dos chefes de jagunços do romance Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa. Hermógenes é maligno e não aceita que a história evolua, mudando de patamar político. Assassina o chefe supremo dos jagunços, Joca Ramiro, porque a seu ver este teria traído a jagunçagem ao esboçar um pacto político com o enviado do governo, Zé Bebelo, depois de derrotá-lo militarmente.

Isto significaria o fim da rapinagem que sustenta Hermógenes, seu bando, e seu comparsa Ricardão, o jagunço rico e politiqueiro que guerreava por interesses pecuniários. Como o Iago de Shakespeare, embora em outra plataforma, Hermógenes é a maldade em estado puro, aquele que se compraz em fazer o mal aos outros por fazer o mal.

É um homem sem pescoço, na visão do narrador Riobaldo, cujo chapéu em forma de cabaça faz uma peça só com sua capa de montaria, um mostrengo atarracado que age à traição. Termina cosido e retalhado a facadas por Diadorim, que também morre no duelo, cercado pelos capangas do inimigo. Assim como Iago, Hermógenes age por um incontido despeito, inveja e ressentimento contra a vida que flui simbolizada pela figura solar de Joca Ramiro, aquele que, quando se levantava, parecia que o mundo inteiro se levantava com ele, como narra Riobaldo.

Um detalhe muito importante: Hermógenes é tido como pactário. De certo modo, Jair Messias também o é. Como ele abusa da religiosidade, chegando a sugerir veladamente uma comparação absurda, em pleno Domingo de Páscoa, da facada que levou e de sua sobrevivência à ressureição de “outro” Messias, ele lembra a controversa figura bíblica do Anti ou PseudoCristo, referido nas epístolas de João e, em algumas interpretações posteriores, apresentado como um “fora-da-lei”.

Assim é Jair Messias: não há lei que o segure e ele se enquadra perfeitamente na moldura dos falsos profetas que se apresentam falando em nome de todos, mas na verdade criando seitas hostis de fanáticos agressivos e agressores da razão, do bom senso e da vida alheia. Exatamente como Donald Trump, seu Grande Mestre neste sinistro e soturno “anticristismo”.

No caso de Jair Messias, tem-se a impressão de que ele fez um pacto com o Vírus, em alguma Vereda-Morta Palácio do Planalto. Ou antes, num certo condomínio do Rio de Janeiro. De certo modo, ele e seus fanatizados seguidores encarnam o Vírus, tornam-se eles mesmos um Vírus complexo, ao mesmo tempo favorecendo a doença e a estupidez universal. Como o Hermógenes pactário, que ao fazer negócio com o Demônio, torna-se ele mesmo parte da identidade do Maligno.

A comparação entre o mundo dos milicianos de onde sai Jair Messias e o mundo dos jagunços de Grande Sertão: Veredas nada tem de descabida. Tanto estes quanto aqueles são forças armadas que ocupam o espaço deixado vazio pela ausência ou complacência – ou até cumplicidade – dos agentes do Estado em suas diversas dimensões. Impõem e administram uma “lei”, na verdade “anti-lei”, que lhes é própria, e exterminam aqueles que a ela se opõem.

Nas leituras e debates sobre a obra de Guimarães deparei com uma espécie de misticismo que cerca muitos dos estudiosos que a ela se dedicam. Veem o mundo jagunço aplicando-se uma grande dose de lirismo, motivados pelos amores entre o narrador Riobaldo e Diadorim, personagem a quem cerca uma aura de mistérios.

Vi e ouvi professores universitários aboiarem e entoarem ladainhas sertanejas em encontros acadêmicos, como se estivessem entre buritis e veredas. “Tudo vale a pena quando a alma não é pequena”, eu diria, respeitando a sua ascese. Sem, no entanto, perder o foco de que o mundo de Grande Sertão é completamente permeado por uma violência implacável, de que o Hermógenes é o anjo irredutível, decaído e atroz. Quando o líder Joca Ramiro tenta vislumbrar uma saída deste mundo sem saída, é assassinado. O resto é romance, vingança, amor e aventura, e dos melhores, como se sabe.

Já comparar Jair Messias ao Anticristo é mais complexo. É também pertinente, já que ele mesmo se investe continuamente de valores e motivos religiosos e bíblicos, todos mal digeridos e depois expelidos com aquela certeza típica dos ignorantes e autosatisfeitos com a própria ignorância.

Em primeiro lugar, o Anticristo, conforme descrito em diversas passagens dos Evangelhos e outras do Novo Testamento, não é apenas um: ele é muitos, que agem em nome de princípios comuns: a traição, a desonestidade, a falsidade, a usura, o suborno, provocam a fome e o desrespeito pelos anciãos. São todos enganadores, falsos profetas, cercam-se de outros falsos profetas (qualquer coincidência é mera semelhança). Assim “os” Anticristos aparecem em Mateus (24: 4-5 e 11-12), em Marcos (13: 6), na 2a. Epístola de Paulo aos Telassonicenses (2: 1-4 e 7-10), idem nas Epístolas do apóstolo João (1, 2: 18 e 2 : 7). Esses Anticristos farão “prodígios de mentiras” e enganarão a muitos.

Essas figuras de Anticristos encontram correspondentes no universo muçulmano, no personagem Al Mash ad-Dajjal, e também no judaísmo, no falso profeta Armilus. Ambos igualmente enganadores das multidões.

Sou ateu, embora não-praticante, e portanto não estou entre aqueles que creem que as passagens do Universo de abrem e se fecham dentro das palavras bíblicas, sejam de que religiões forem (entre as quais eu incluo o marxismo dogmático). Mas penso que quando alguém se aproxima e deglute uma doutrina, sobretudo digerindo-a pela rama, ao invés de “devorá-la”, este personagem arrisca “ser devorado” por ela em seus aspectos mais recônditos e secretos.

Tenho para mim que foi o que aconteceu com Jair Messias. Imbuindo-se da chave de seu segundo nome, arvorou-se a predestinado. Virou um falsário, impingindo pseudodoutrinas que não entende e, na falta de outra coisa ou causa, tornou-se agora pactário – uma virose ambulante – que pretende extrair do Vírus a sua sobrevivência política.

Há os que o seguem e seguirão até o fim neste universo sem saída, que não seja a da catástrofe. Esperemos que os que não embarquem nesta embriaguês do vácuo mental consigam sobreviver, mesmo que malferidos.

*Flávio Aguiar é professor aposentado de literatura brasileira na USP.

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