Devolução de butins

Imagem: Scott Webb
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Por FLÁVIO AGUIAR*

A manutenção de “troféus de guerra” pelos colonizadores e “vencedores” ajuda a naturalizar a violência dos conflitos

No passado já houve a devolução de alguns objetos tanto por parte do governo brasileiro quanto por parte dos governos do Uruguai e da Argentina, países que também participaram da guerra contra o Paraguai, devastado por ela. A peça mais importante do pedido que agora será reencaminhado é um canhão chamado de “El Cristiano”, que hoje está no pátio do Museu Histórico Nacional, no Rio de Janeiro. Ele tem este nome porque foi confeccionado com o bronze derretido de sinos das antigas missões jesuíticas no Paraguai.

Esse tipo de devolução de objetos tomados por países, no mais das vezes conquistadores, de países no mais das vezes conquistados, vem se tornando cada vez mais comum, sobretudo na Europa. Na Alemanha, há a já veterana devolução de objetos artísticos tomados ou comprados a preço vil por oficiais e líderes nazistas de famílias judias assassinadas ou em fuga.

Recentemente foram assinados protocolos de devolução de objetos daquele tipo por parte da Alemanha e da França à Nigéria e também à República dos Camarões, na África. A Alemanha se prepara para devolver ao Brasil um fóssil de dinossauro contrabandeado do Ceará. A França vai fazer o mesmo, devolvendo 611 objetos indígenas levados ilegalmente do Brasil.

Nem sempre essas devoluções são tranquilas. Há quem alegue que esses países do antigo Terceiro Mundo não têm condições objetivas de salvaguardar tais objetos. Outros alegam que muitos deles foram comprados em transações legais e legítimas. Também se deve olhar com cautela a generosidade das devoluções. A Dinamarca vai devolver um manto sagrado dos tupinambás para o Brasil, que possui desde o século XVI ou XVII. Ótimo. Mas é um dos cinco que possui. Só há dez exemplares dessa peça notável no mundo. Todas estão na Europa, onde vão permanecer.

Dos poemas de Homero

O caso mais espetacular nessa matéria é o do chamado “Tesouro de Príamo”, que o arqueólogo alemão Heinrich Schliemann trouxe do que ele supunha ser a Troia dos poemas de Homero para Berlim, ao final do século XIX. Consta de inúmeras joias e outros objetos de valor que Heinrich Schliemann pensava que pertenceram ao rei Príamo da legendária cidade tomada pelos gregos nos poemas de Homero.

Críticos de Heinrich Schliemann dizem que ele, usando pás e escavadeiras onde hoje os arqueólogos usam colherzinhas de chá e escovas de dente, mais destruiu do que achou. Dizem que ele conseguiu o que nem os piratas gregos conseguiram no poema de Homero: arrasar Troia de vez. Acontece que aqueles eram os métodos usados pela arqueologia do tempo, não apenas por Heinrich Schliemann. Interessava conseguir o máximo num mínimo de tempo, e de gastos.

De todo modo, acontece que Heinrich Schliemann não era apenas um arqueólogo inexperiente. Era também um historiador ingênuo. Encarava os míticos poemas de Homero como se fossem modernos guias de viagem, tomando-os ao pé da letra. No fim da Segunda Guerra, os soviéticos levaram na surdina o “Tesouro de Príamo” para a Rússia. Durante décadas ele foi dado por perdido, até que em 1994 o Museu Pushkin, em Moscou, admitiu que o possuía.

A Alemanha quer o espólio de volta. A Rússia se nega a entregá-lo, alegando que é uma compensação pelos danos praticados pelos nazistas em seu território. Mas… mais gente entrou na história. A Grécia alega que parte dos objetos do “Tesouro” foram obtidos na ilha de Micenas, não em Troia. A Turquia alega que a maior parte das escavações de Heinrich Schliemann aconteceram em seu território. Até os descendentes do diplomata britânico Frank Calvert, que mostrou o sítio escavado ao arqueólogo amador, alegam que uma parte do espólio foi obtido numa antiga fazenda dele.

Segundo a lenda, a guerra de Troia durou dez anos. A controvérsia jurídica em torno do “Tesouro” pode durar décadas ou centenas de anos. Voltando ao caso do canhão “El Cristiano”, melhor de fato seria devolvê-lo. A manutenção desses “troféus de guerra” ajuda a naturalizar a violência dos conflitos. Se fosse tecnicamente possível, o melhor mesmo seria refundi-lo a fim de reconstruir os sinos das antigas missões, que foram destruídos para que uma arma de guerra viesse a existir.

*Flávio Aguiar, jornalista e escritor, é professor aposentado de literatura brasileira na USP. Autor, entre outros livros, de Crônicas do mundo ao revés (Boitempo).

Publicado originalmente no site da Radio France International – Brasil 


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