O reexame da legitimidade do processo de impeachment

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Por FÁBIO KONDER COMPARATO*

Por que razão o órgão com capacidade legítima para destituir o presidente da República haveria de ser outro, senão o próprio povo?

 

Origem

Na Inglaterra, onde foi inventado, o processo de impeachment sempre teve a natureza de uma sanção não-judiciária. Na verdade, ele preparou, séculos antes da instauração do sistema parlamentar de governo, a instituição da moção de censura, com a destituição do gabinete de governo ou de um dos seus integrantes. Por isso mesmo, tornou-se anacrônico na Inglaterra, desde o século XIX. O último processo dessa natureza ocorrido no Reino Unido deu-se em 1848, quando David Urquhart pediu o afastamento de Lorde Palmerston, Primeiro Ministro, arguindo que ele havia celebrado um acordo secreto com a Rússia imperial, tendo recebido desta determinada quantia em dinheiro. A acusação foi rejeitada pela Câmara dos Comuns.

 

O impeachment nos Estados Unidos da América

A revivescência do impeachment deu-se nos Estados Unidos, exatamente na quadra histórica em que, após a Declaração de Independência de 1776, os representantes dos estados confederados decidiram uni-los mais estreitamente, aumentando os poderes do governo central e redigindo uma Constituição Federal, em substituição aos Articles of Confederation.

Era indispensável, porém, livrar a instituição de qualquer traço aristocrático e torná-la essencialmente republicana, no sentido em que a ideia de república era então entendida; ou seja, o regime político em que o poder supremo pertence ao povo. Não foi, assim, por mero acaso que a Constituição Federal, promulgada em 1788, após a ratificação por todos os Estados confederados, principia com a célebre expressão We the people (Nós o povo).

Como se vê, a concepção de república dos Founding Fathers confundia-se com o conceito moderno de democracia, tal como fixado no curso do século XIX; ou seja, o regime em que os governantes são escolhidos pelo povo. Na época do nascimento dos Estados Unidos da América, a democracia era tida como um regime político controlado por facções, que tendiam a descambar para o exercício violento e abusivo do poder. Foi exatamente o que disse Madison, no ensaio nº 10 do The Federalist. Nesse sentido republicano de regime político, no qual o povo soberano não exerce diretamente o governo, mas elege representantes para tanto e pode, igualmente por meio de representantes, destituí-los, a Constituição norte-americana – tal como, antes dela, as de vários dos Estados que vieram a compor a federação – previu o impeachment, em seu artigo dois, quarta seção, verbis: “Forfeiture of Offices for Crimes: The President, Vice-President and all civil officers of the United States shall be removed from office on impeachment for, and conviction of, treason, bribery, or other crimes and misdemeanors”.

A instituição, no entanto, foi desde logo tida como uma ofensa ao princípio da separação de poderes, pois os Founding Fathers eram leitores assíduos de Montesquieu. Como admitir que órgãos do Legislativo possam destituir membros do Executivo, não apenas os de nível inferior, mas até mesmo o chefe de Estado? A grande controvérsia, que consumiu semanas de discussão na Convenção de Filadélfia, foi, pois, a questão do órgão ou autoridade competente para aplicar o impeachment. Thomas Jefferson sustentou que o órgão julgador deveria ser composto por juízes e legisladores; ao que Madison retrucou vigorosamente que o processo de julgamento era, sem qualquer ambiguidade, de natureza judicial. Já Hamilton, por sua vez, arguiu que o órgão competente para julgamento deveria ser não outro, senão o Senado.[i] Edmund Randolph, diferentemente, propôs a criação de um órgão judiciário especial.[ii]

Finalmente, chegou-se a uma conclusão, dispondo a Constituição que a Câmara de Representantes teria o poder exclusivo de declarar o impeachment, e o Senado a competência exclusiva para julgá-lo.[iii]

Não foi esta, porém, a única disputa suscitada na Convenção. Discutiu-se também, acirradamente, a natureza do fato causador do processo de destituição, optando-se pela fórmula ampla high crimes and misdemeanors, carecedora de toda precisão. Em razão disso, talvez, esse processo de destituição, desde que promulgada a Constituição há mais de dois séculos, só foi aplicado no plano federal contra dezenove agentes oficiais, entre os quais apenas dois Presidentes da República, Andrew Johnson em 1868 e Bill Clinton em 1998, ambos afinal absolvidos.[iv]

 

A adoção do impeachment na América Latina

À medida que os países da América Latina iam se tornando independentes, passaram todos eles a seguir o modelo político norte-americano; vale dizer, o regime republicano federativo, dotado de uma Constituição.

Com base nesse modelo, estabeleceu-se como regra o processo de destituição do Presidente da República através do impeachment. Acontece que o poder político, praticamente em todos os países latino-americanos, nunca foi efetivamente democrático, mas seguiu sem descontinuar a linha oligárquica. Ora, para os oligarcas latino-americanos, a destituição de um presidente da República fazia-se muito mais rapidamente por meio de um golpe militar, do que por um processo decisório, de natureza judicial ou não.

E efetivamente, com apoio explícito ou implícito do imperialismo norte-americano, até o final do século XX o instituto do impeachment para destituir chefes do Executivo tinha função meramente figurativa nas Constituições de países latino-americanos. As facções oligárquicas resolviam seus conflitos de interesse pelos meios militares, com ou sem apoio popular, mas contando sempre com o background ianque.

Tal situação permaneceu imutável até a última década do século XX quando, subitamente, ao que parece em razão de uma mudança de orientação do governo norte-americano, o recurso ao impeachment para a destituição de presidentes da República na América Latina tornou-se a solução habitual, em casos de conflito político no quadro oligárquico. Entre 1992 e 2016, nada menos do que quinze chefes do Executivo foram destituídos por meio de processos de impeachment em toda a América Latina.

 

A imprescindível revisão do instituto do impeachment

Como se viu, a reconstituição do impeachment nos Estados Unidos no século XVIII, concomitantemente ao seu progressivo abandono na Inglaterra, fundou-se na concepção então vigente de que a república tinha como princípio supremo a exclusividade da designação pelo povo dos agentes políticos encarregados de tomar as grandes decisões políticas; ou seja, o regime que no curso do século XIX passou a ser designado como democracia representativa.

Sucedeu, no entanto, que se nos Estados Unidos o sistema de representação política atuou em geral sem distorções, em toda a América Latina ele jamais foi capaz de suplantar a vigência do poder oligárquico, falsamente apresentado como democrático. Eis por que nos países latino-americanos o instituto de impeachment jamais funcionou a contento. Numa longa primeira fase, ele foi simplesmente posto à margem, sendo substituído pela aplicação de golpes de Estado, em geral militarmente comandados. Já numa segunda fase, a partir da última década do século passado, os casos de impeachment multiplicaram-se, mas sem nenhuma participação do povo. Ou seja, passou-se a aplicar formalmente o instituto, tal como previsto nas Constituições, como simples meio de resolução de conflitos entre facções oligárquicas.

Como sair desse impasse? A solução, a meu ver, consiste em se fazer reviver o instituto no quadro de um legítimo regime democrático, no qual, como sabido, a soberania ou poder supremo pertence exclusivamente ao povo, ou seja, ao conjunto dos cidadãos, com obediência aos princípios máximos de liberdade e igualdade.

Nessas condições, o impeachment deveria constar de duas fases. Na primeira delas, continuariam a ser aplicadas as regras tradicionais, concernentes aos órgãos competentes para a tomada de decisão, tal como previsto nas Constituições. Uma vez, porém, decidido o afastamento do agente político tido como autor dos atos considerados ofensivos à ordem constitucional, passar-se-ia a uma segunda fase, na qual a palavra final competiria ao povo, através de referendo.

Trata-se, a rigor, de uma questão de pura legitimidade. Com efeito, se de acordo com o princípio democrático a soberania pertence ao povo e é este que elege o chefe do Poder Executivo, por que razão o órgão com capacidade legítima para destituí-lo haveria de ser outro, senão o próprio povo?

Atente-se, aliás, que no Brasil essa atualização do mecanismo do impeachment não exige nenhuma alteração constitucional, pois a Carta Magna de 1988 já prevê em seu art. 14, inciso II, que o referendo é um dos instrumentos pelos quais é exercida a soberania popular.

*Fábio Konder Comparato é Professor Emérito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e Doutor Honoris Causa da Universidade de Coimbra. Autor, entre outros livros, de A civilização capitalista (Saraiva).

 

Notas


[i] The Federalist, nº 65.

[ii] Cf. Cass R. Sunstein, Impeachment – A Citizen’s Guide, Harvard University Press, 2017, p. 42.

[iii] Constituição dos Estados Unidos da América, artigo um, seção dois, alínea 5; e artigo um, seção três, alínea 6.

[iv] Contra o Presidente Richard Nixon, em razão do escândalo do Watergate, foi aberta uma investigação na House of Representatives em 1974, havendo Nixon renunciado ao cargo antes de concluído o procedimento.

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