Por CARLOS EDUARDO MARTINS*
Lula optou por uma frente antifascista que incorporou segmentos da centro-direita vinculada ao golpe de 2016 para ampliar o leque de alianças
As eleições brasileiras de 2022 foram marcadas pela centralidade do debate sobre o fascismo como ameaça institucional à democracia liberal no país. Tal discurso ganhou hegemonia na vasta coalizão que respalda a candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva e reúne um arco que vai desde parte expressiva da centro-direita liberal envolvida no golpe de 2016 até amplos segmentos das esquerdas. A amplitude dessa aliança e a forte ênfase em sua unidade condiciona, todavia, uma leitura superficial e limitada do fenômeno do fascismo, que passa a ser restringido no país à atuação da extrema-direita bolsonarista, desvinculando-a do contexto histórico que a promoveu, do bloco histórico em que se fundou e da dinâmica geopolítica de conflitos em que se insere.
Após décadas de hegemonia do pensamento liberal durante a Nova República, que propagou a tese do alto grau de consolidação da institucional da democracia brasileira e sua capacidade de absorver conflitos sociais, o golpe de 2016 atingiu em cheio a soberania popular, cassou direitos políticos, limitou o sistema representativo, criminalizou políticas sociais através da Emenda Constitucional 95, e abriu o espaço para a eleição de Jair Bolsonaro em 2018. Tal formulação tangenciou os conflitos de classe no Brasil e as evidências contundentes dos limites da redemocratização brasileira durante a Nova República, como a consolidação econômica, política, institucional e ideológica dos segmentos envolvidos com a articulação, gestão e legado do golpe de Estado, mesmo contrariando dispositivos legais.
A ausência da justiça de transição violou a Convenção Americana de Direitos Humanos do qual o Brasil é signatário e o controle do monopólio midiático, do capital financeiro e do agronegócio sobre o Estado violou vários artigos da Constituição de 1988, ainda que se tenha procurado remover itens, como o parágrafo 3 do artigo 192, em 2003, que limitava as taxas de juros reais no Brasil, mas nunca foi aplicado por decisão majoritária de 6×4 do STF, para o que contribuíram as prerrogativas corporativas do poder judiciário, afastado do controle popular e sob forte pressão e lobby dos rentistas.
A hegemonia ideológica do liberalismo penetrou em setores expressivos da esquerda brasileira e seus erros de análise sobre a configuração de nosso Estado e fundamentos de nossa democracia os desarmou para lidar com os conflitos sociais e políticos emergentes, facilitando a ruptura institucional e o giro neoconservador subsequente. Erros de análise sobre as disputas e o caráter das forças em confronto poderão implicar em avanços efêmeros e novas regressões. Neste texto buscamos promover uma reflexão sobre o fascismo como ideologia e força política, seu recrudescimento e os riscos que promove ao Brasil e à América Latina no século XXI.
Abordamos a condições de sua emergência, seus vínculos com o liberalismo, com as tradições antimodernistas e anti-iluministas, sua especificidade e contradições como forma política, suas dimensões centrais que nos permitem remeter suas variações históricas e contingenciais a um mesmo conceito, tal como se faz com o liberalismo e o socialismo, apesar da imensa diversidade de formas com que apareceram historicamente.
Liberalismo, fascismo e temporalidade do sistema-mundo capitalista
Desde os anos 1980, o fascismo voltou a ganhar relevância nos debates do mundo contemporâneo, após sua derrota colossal nos anos 1940, com a reconstrução da extrema-direita europeia, movida pela oposição à imigração periférica e semiperiférica, principalmente, árabe, o que se expressou na criação e fortalecimento dos seus partidos e na pioneira experiência de participação em um governo de coalizão na Áustria em 2000-2005. Entretanto permaneceu relativamente contido como força política e ideológica pelo largo protagonismo do internacionalismo liberal que orientou a reconversão da hegemonia estadunidense para a pretensão de afirmar sua unipolaridade e governança global no pós-guerra fria, subordinando a Europa através do fortalecimento da OTAN e sua expansão para o leste.
O internacionalismo liberal foi o principal responsável pela terceira onda mundial de democratização analisada por Samuel Huntington (1991), antecedida pela estabelecida entre 1828-1926, impulsionada pela Revolução Francesa e pelos processos de independência nas Américas, e pela de 1943-1962, associada à derrota do nazi-fascismo e aos processos de descolonização e libertação nacionais. A terceira onda de democratização, que Huntington situa a partir da Revolução dos Cravos em 1974, começa em verdade com a explosão dos movimentos sociais e antiimperialistas contra o keynesianismo militar do pós-guerra, mas é subsumida e apropriada pela ofensiva neoliberal que os Estados Unidos passam a liderar com o apoio de Grã-Bretanha e Alemanha.
Tanto a primeira como a segunda ondas de democratização implicaram em movimentos inversos e o autor coloca a possibilidade de que o processo se repita implicando no esgotamento e reversão da terceira onda. Independente dos limites do esquema de Huntington, fortemente centrado nas experiências europeia e estadunidense e no conceito liberal de democracia, e das eventuais imprecisões de periodização, o consideramos útil por nos colocar um marco de longa duração para analisar os movimentos cíclicos e os limites históricos do liberalismo para dirigir a reprodução e expansão do sistema-mundo capitalista.
O internacionalismo liberal baseia-se na pretensão de os Estados Unidos imporem mundialmente a combinação de neoliberalismo econômico, liberalismo político e realismo geopolítico, reservando-se o privilégio de exercerem assimetrias em função de seus interesses nacionais e do excepcionalismo norte-americano, tanto no que se refere à proteção de interesses comerciais, produtivos, financeiros e militares, quanto ao controle de instituições internacionais ou emprego de ações unilaterais. Para isso usam a força do seu poder financeiro, ideológico e militar.
O padrão-ouro de sua doutrina política é o liberalismo com limitados compromissos sociais, ajustado de acordo com a zona do sistema-mundo. Estabelecem zonas de interesse estratégico, mas o universalismo em que se apoiam tende à expansão e divide o mundo em espaços livres, sob sua liderança, e totalitários, a serem conquistados mediante sua direção moral e ideológica, por guerras híbridas, sanções, bloqueios ou intervenções militares. O universalismo liberal estadunidense inclina-se a multiplicar os conflitos internacionais, entra em choque com o realismo geopolítico, mas não lhe é radicalmente oposto, buscando incorporá-lo de forma subordinada à sua liderança. Abre assim o espaço para o conceito de mudança de regime, que os neoconservadores liberais manejam inclinando-se para o emprego do hard power e os progressistas para o uso do soft power.
Se George W. Bush articulou o golpe de Estado fracassado na Venezuela (2002), o exitoso no Haiti (2004) e interveio no Afeganistão e no Iraque, Obama associou-se aos golpes de Estado no Paraguai (2012) e no Brasil (2015), interveio na Líbia, manteve a guerra no Afeganistão e apoiou a guerra civil contra Bashar al-Assad. A América Latina e o Caribe, incluídos no espaço de hegemonia regional dos Estados Unidos, desde a sua projeção para o hemisfério ocidental com a Doutrina Monroe, endossada por seu domínio posterior do Atlântico, são objeto de estratégias de liderança moral, dominação e contenção tanto pelo internacionalismo liberal, na versão progressista ou neoconservadora, quanto pelo pensamento realista, que prioriza estratégias de manutenção de poder, coloca o credo liberal em plano secundário, e considera a democracia parte do excepcionalismo norte-americano.
O liberalismo apesar de priorizar a liderança intelectual e moral não descarta a ruptura institucional contra sistemas políticos representativos através do emprego da manipulação, fraude ou força, uma vez que inclui entre os regimes totalitários aqueles que Alexis Tocqueville chamou em Democracia na América de tiranias das maiorias. Estas se referem não apenas às que priorizam a busca da igualdade para limitar a concentração de renda e riqueza, como caracterizou o autor francês, mas também as que fundadas no apoio de grandes maiorias populares privilegiam a soberania nacional em detrimento dos arranjos internacionais impulsionados pelos centros hegemônicos.
Abre-se assim o espaço para a aliança com o fascismo. Ludwig Von Mises, em seu livro Liberalism in classic tradition (1927), saudou Benito Mussolini com o argumento de ter salvado a Europa da barbárie, definiu o fascismo como uma força ocidental, impregnado pelo princípio civilizatório da propriedade privada em contraste com o bolchevismo oriental, e apontou que a diferença entre o liberalismo e o fascismo não está no emprego da violência, mas na centralidade que se dá a ela. Para Ludwig Von Mises, a vitória contra o bolchevismo só poderia ser completamente atingida no plano das ideias, oferecendo o fascismo apenas uma solução emergencial e provisória.
Em Onipotent government; the rise of total state and total war (1944), se Ludwig Von Mises preocupou-se em igualar o nazifascismo e o bolchevismo como expressões do totalitarismo, também se empenhou em mostrar suas diferenças, assinalando em favor do primeiro o interesse em preservar e impulsionar a propriedade privada apesar de submetê-la à sua direção. Friedrich Hayek, em The principles of a liberal social order (1966) e em Law, legistation and liberty (1979), apontou no que chamou de democracias ilimitadas a principal fonte de totalitarismo da modernidade, problemática já evidenciada em O caminho da servidão (1944), e defendeu o estabelecimento de ditaduras de transição para destruí-las e restabelecer, quando possível e sem prazos fixados, democracias contidas, restringidas pelos limites impostos pela propriedade privada, eufemismo para ocultar a acumulação capitalista.
Para ele, a liberdade individual é o valor supremo e a democracia apenas um meio para atingi-la, o liberalismo é a antítese do totalitarismo e a democracia do autoritarismo. Por isso, tomou partido, em sua nomenclatura, de liberalismos autoritários contra as democracias totalitárias, razão pela qual colaborou com as ditaduras de Salazar em Portugal, de Pinochet no Chile e com os golpes de Estado pró-liberais que se estabeleceram no Cone Sul nos anos 1960 e 1970.
Se Friedrich Hayek, Ludwig Von Mises e os membros da sociedade de Mont Pellerin representam uma visão específica de liberalismo, tornaram-se o paradigma liberal dominante a partir dos anos 1980, com a adesão da grande burguesia dos países centrais às políticas e à institucionalidade neoliberal para reverter a ofensiva dos movimentos sindicais e sociais e conter ou destruir as demandas de expansão dos direitos sociais e individuais. Por outro, lado, para a América Latina e Caribe, as diferenças nos Estados Unidos entre liberais progressistas e conservadores sempre foi muito exígua, dada a vinculação dos padrões de acumulação dependentes à superexploração dos trabalhadores, o que implicou no apoio logístico e político a tentativas de golpes de Estado, ou de intervenções militares, bem sucedidas ou não, de liberais reformistas, como John Kennedy, Lyndon Johnson, Barack Obama, ou conservadores, como Dwight Eisenhower, Richard Nixon, Gerald Ford, Ronald Reagan, George Bush e George W. Bush.
O uso instrumental que o liberalismo pretende fazer do fascismo suscita contradições e conflitos em maior ou menor grau. O emprego da violência contra o sistema representativo e a soberania popular fortalece o patrimonialismo e o monopólio estatal, ameaçando a autonomia relativa e a centralidade dos monopólios empresariais que o liberalismo quer impor. Norberto Bobbio em Dal fascismo ala democracia (1997) apontou as diferenças entre um fascismo conservador e outro subversivo. O primeiro se constitui no prolongamento do liberalismo buscando superá-lo e aperfeiçoá-lo, quando este perde a capacidade de enfrentar a ameaça das esquerdas ou do socialismo. O segundo busca implementar uma mudança de Estado e de regime político de caráter permanente. Podemos a partir da formulação de Bobbio propor a existência de dois tipos de fascismo: o fascismo liberal que busca limitar os danos que a violência produz no sistema representativo e na autonomia relativa da sociedade civil diante do Estado; e o fascismo radical que busca substituir o sistema liberal por um regime ditatorial permanente.
A abordagem do fascismo deve ser integrada ao enfoque do sistema-mundo para inscrevê-lo na temporalidade do sistema capitalista. Immanuel Wallerstein (1995) distinguiu três grandes ideologias em confronto pela disputa do mundo a partir do século XIX: o liberalismo, o socialismo e o conservadorismo radical. A força de expansão da civilização capitalista deu centralidade ao liberalismo que se baseou no estabelecimento do sistema político representativo no plano nacional e na instituição do sistema interestatal no plano mundial. Tal centralidade tornou o socialismo e o conservadorismo, em grande parte dos casos, apêndices do liberalismo.
O autor chega a mencionar o estabelecimento de ideologias hifenizadas, socialismo-liberal e conservadorismo-liberal, que modificam substancialmente a forma de organização e funcionamento do arcabouço propositivo e programático de suas matrizes para subordiná-las ao liberalismo. Entretanto, esta subordinação não é definitiva e em conjunturas de debilidade das tendências seculares do capitalismo, o liberalismo se fragiliza, e o conservadorismo e o socialismo tendem a buscar autonomia, retomar sua radicalidade e romper com suas formas liberais. Wallerstein considera o fascismo a forma mais avançada de conservadorismo radical e é possível pensar sua relação com a ordem liberal como adaptativa e contraditória em diversos níveis, o que fará variar as suas formas de expressão (Wallerstein, 1983).
O fascismo pode sobreviver como movimento e partido político submetido ao regime representativo, tracionado pelo centro de gravidade liberal, em tensão com suas formulações originais, dilema no pós-guerra do Movimento Social Italiano, do Partido Nacional-Democrático alemão, da Ação Francesa e da Frente Nacional. Pode ainda constituir uma ditadura circunscrita ao plano nacional, casos do regime fascista de Mussolini até 1935, ou nazista de Hitler até 1936, e dos regimes de exceção latino-americanos dos anos 1960, 70 e 80; ou ainda um regime expansivo e imperialista que desafia o sistema interestatal e a hegemonia do liberalismo no plano mundial, ameaçando um dos pilares do sistema-mundo capitalista.
O ponto colocado por Immanuel Wallerstein e que sustentamos em nosso livro (Martins, 2020) é que estamos entrando em um período de caos sistêmico, de crise terminal da globalização neoliberal, o que retira do liberalismo sua capacidade centralizadora, abrindo espaço para a emergência de formas radicais de fascismo e para a inversão pelos movimentos e partidos fascistas de sua relação de submissão ao liberalismo. Tal cenário se evidencia com a multiplicação de movimentos e lideranças de natureza fascista e sua articulação internacional desafiando a hegemonia liberal.
A inserção de tais movimentos e partidos no processo histórico da temporalidade do sistema-mundo capitalista é um marco analítico necessário e coloca em questão as tentativas de classificação modelar e abstrata dos movimentos e partidos de extrema-direita como pós-fascistas ou neofascistas, que terminam por negligenciar a dinâmica da realidade concreta em que estão inseridos.
A retomada dos elementos centrais do paradigma fascista é uma possibilidade crescente e o conceito de fascismo deve buscar distinguir seus componentes estratégicos das formas histórico-contingenciais com que se apresentou em diversas conjunturas, da mesma forma como se faz com o conceito de liberalismo político para remeter à longa continuidade de defesa dos princípios da acumulação capitalista mediante o Estado representativo e a defesa do sistema interestatal, por mais variadas que tenham sido suas formas, monárquicas ou republicanas, com sufrágio censitário ou universal, com anexação de periferias e semiperiferias por meio de imperialismo formal ou informal.
Fascismo: conceito e história
Gyorgy Lukács em A destruição da razão (1954) analisou o fascismo alemão como a forma mais desenvolvida de irracionalismo, ainda que não necessariamente a última, e cujo principal objetivo era o de destruir o projeto de emancipação humana da sociedade de classes, fosse ele radical e revolucionário, ou moderado e progressivo, afetando as relações de poder entre as classes. A força do irracionalismo fascista corresponderia assim à potência e alcance no sistema-mundo do projeto emancipatório que pretenderia exterminar. Possuindo uma função eminentemente destrutiva, sua história e o desenvolvimento de sua lógica interna estariam condicionados pela do inimigo que se busca destruir.
O seu conteúdo, forma, método e narrativa estariam vinculados à negação do processo de emancipação social em curso com o desenvolvimento das forças produtivas e a organização política e social dos trabalhadores. O fascismo poderia assim se apresentar ciclicamente na história. Derrotado nas lutas de classes, mas contida ou destruída a ameaça emancipatória, poderia renascer quando este projeto se recompusesse. A interpretação do fascismo como uma ideologia orientada para a luta da burguesia contra os trabalhadores, motivada a combater uma classe trabalhadora organizada em torno de um projeto emancipatório, foi criticada por Nicos Poulantzas que o viu fundamentalmente como uma solução para as disputas intraburguesas quando a classe trabalhadora já se encontra derrotada.
Ele situou o fascismo como uma alternativa para a recondução do padrão de dominação durante a fase imperialista no âmbito de uma crise ideológica geral, que inclui a do marxismo-leninismo como visão revolucionária de transformação da realidade social. Essa alternativa implicaria a extinção dos partidos tradicionais, a imposição do partido único fascista, estabelecendo novas contradições referentes a composição pequeno-burguesa original de sua liderança política e os interesses do grande capital com que se compromete.
Se o enfoque de Lúkacs superdimensionou a centralidade da luta entre burguesia e proletariado no advento e afirmação do fascismo, Poulantzas ao destacar as contradições intraburguesas perdeu de vista a dimensão estratégica da luta entre capital e trabalho, ao invés de matizá-la. O declínio do liberalismo, ideologia de preferencial do grande capital, é de fato um elemento chave para a ascensão do fascismo, mas a projeção deste como solução para a crise ideológica ao invés do restabelecimento de formas pretéritas como a monarquia e a aristocracia, relaciona-se com a existência de uma nova classe social como ameaça, o proletariado, e requer para combatê-lo uma síntese híbrida entre a apropriação específica de instrumentos institucionais modernos criados pelo próprio liberalismo e o direcionamento da flecha do tempo ao passado para recriá-lo de forma distinta, na tentativa de destruir e controlar processos sociais estabelecidos pelo próprio desenvolvimento das forças produtivas.
Se a derrota dos setores mais organizados da classe trabalhadora é de grande importância para impedir que a ideologia emancipatória preencha o vácuo ideológico do declínio do liberalismo, por outro lado é a sua ameaça que constitui o combustível do fascismo e da adesão dos principais segmentos do grande capital à liderança política oriunda dos setores pequenos e médios da burguesia e das frações superiores em declínio. Apesar da derrota das experiências insurrecionais na Alemanha e na Itália, da República Socialista da Baviera e do Bienio Vermelho, em 1919-1920, a ameaça da revolução socialista no Ocidente permaneceu durante os anos 1930-40, até ser controlada pela recomposição do liberalismo sob hegemonia dos Estados Unidos, ocupação militar da Europa Ocidental, estabelecimento do sistema de Bretton Woods e de um novo padrão de acumulação mundial, limitando geograficamente a influência da URSS e do campo socialista, apesar da instabilidade causada pelos movimentos de liberação nacional nas periferias, em particular na Argélia, Cuba e Vietnã, o que causou efeitos ideológicos mediante o desenvolvimento das doutrinas de contrainsurgência.
Na caracterização do fascismo devemos tomar em consideração os seus objetivos, sua base de classes e a sua definição como regime, movimento político e ideologia. Podemos definir o fascismo como um regime de terror e uma ditadura para o grande capital que emerge a partir da era do imperialismo, vinculado ao estabelecimento dos monopólios e à fusão do capital bancário com o capital produtivo. O fascismo elege o socialismo, o internacionalismo proletário, a organização emancipatória ou reformista dos trabalhadores e a ascensão social dos pobres como seu principal inimigo.
Busca substituir ou subordinar o liberalismo político ao emprego institucional ou paralelo da violência para eliminar ou restringir a limites secundários a competição política. Pretende impor o estabelecimento de uma sociedade totalitária ou corporativa para ocultar e naturalizar as divisões de classe, remetendo-se para isso à reinvenção integrista de identidades pretéritas e do folclore, exterminando ou perseguindo os que a ameacem ou se incluam fora dos seus limites, reivindicando para isso a violência e a guerra como virtude. As bases dessa sociedade corporativa se estabelecem pelo princípio da fé e da convicção e pelo primado do irracionalismo sobre a razão.
O fascismo almeja a construção de uma sociedade rigidamente hierarquizada sob a direção de um líder, opondo-se ao princípio democrático do número em favor da reivindicação da existência de uma aristocracia da natureza. Se lança contra a modernidade e a constituição jacobina de 1793, utilizando para isso instrumentos da própria modernidade como a apropriação e uso de suas escalas, por meio do domínio sobre organizações de massa, partidos políticos ou tecnoburocracia estatal de amplo alcance.
Definimos o regime fascista como uma ditadura que emprega o terror para o grande capital porque não é exercido diretamente por seu sistema político típico, o liberalismo, que permite o controle do monopólio da violência estatal pela sociedade civil burguesa e o estabelecimento de um Estado forte para controlar e submeter os trabalhadores, mas que é vulnerável aos monopólios empresariais em razão da subordinação de sua elite política a mecanismos competitivos de disputa eleitoral e ao mercado mundial capitalista através da disputa por fluxos de capitais e mercadorias. Ernest Mandel utilizou o termo expropriação política da burguesia para caracterizar os regimes fascistas, apontando a contradição central entre a classe social para quem estes dirigem suas políticas públicas, o grande capital, e o intermediário que exerce a liderança política, a pequena ou média burguesia.
Mandel (1976) criticou com acerto a simplificação cometida pela III internacional que definiu, por meio do 13º Pleno do Comitê Executivo da Internacional Comunista, o fascismo como um regime de terror dos setores mais reacionários do capital financeiro, inscrevendo-se no desenvolvimento da teoria do socialfascismo, que igualou fascismo e social-democracia, e cujas origens remontam a Joseph Stalin, Grigory Zinoviev, em 1924, e teve em Rudolf Schlessinger seu mais destacado formulador no Partido Comunista Alemão.[i]
Tal formulação exerceu grande influência no marxismo e se manteve inclusive em autores como Georgy Dimitrov (1935), um dos responsáveis pela mudança da política do socialfascismo pela de frente populares. Dimitrov afirmou que o fascismo era o poder do próprio capital financeiro, ainda que apontasse ser a mudança de uma forma estatal por outra e não a substituição de um governo por outro, como sugeria a teoria do socialfascismo. Mesmo um autor sofisticado como Theotonio dos Santos (1978) que trouxe um conjunto de elementos pioneiros e inovadores para a análise do fascismo, o definiu como um regime de terror do grande capital, na etapa do imperialismo, exercido pela pequena burguesia.
A especificação do regime fascista como uma “ditadura e regime de terror para o grande capital” define uma contradição no plano político que é importante destacar e permite enriquecer a análise das conjunturas e situações concretas, apontando as contradições e tensões entre frações e blocos de poder. O uso do monopólio político pela pequena e média burguesia ou por setores decadentes do capital se constitui em um mecanismo de ascensão social que lhe provê resultados impossíveis de se alcançar por meio do mercado capitalista, daí o seu interesse em buscar preservá-lo e expandi-lo aproveitando-se da crise estrutural do sistema de dominação do capital.
Esta contradição pode apresentar-se em graus distintos dependendo dos condicionamentos históricos, geopolíticos e da profundidade da crise do liberalismo global. Ela reabre a discussão sobre se o fascismo constitui apenas um regime reflexo e negativo submetido ao grande capital, relacionado à destruição das esquerdas e à repressão da autonomia política do proletariado, ou se pode desdobrar-se no estabelecimento de um novo sistema mundial e de poder. As respostas de Immanuel Wallerstein e de Ernest Mandel são positivas a este respeito indicando o primeiro a possibilidade de estabelecimento de um império político que elimine o sistema interestatal e o capitalismo como sistema dominante e o segundo, a partir da experiência da Alemanha nazista, a substituição do trabalho assalariado pelo trabalho escravo.[ii]
Se tal regime poderá impor um novo sistema-mundo sem exterminar a humanidade, tamanha a exigência de destruição que implicaria, é uma questão que permanece em aberto e esperamos que nunca seja respondida pela história. Theotonio dos Santos (1978) destaca também a importante contradição do fascismo nos países dependentes entre o seu controle do monopólio estatal e as políticas que realiza para o grande capital, eminentemente estrangeiro, a partir do Estado nacional, o que pode evoluir para conflitos econômicos, geopolíticos e ideológicos importantes.
Theotonio dos Santos aponta a importância de se distinguir as características mais essenciais do fascismo de suas dimensões particulares, provisórias e histórico-contingenciais. Ele aponta que o fascismo é uma ideologia internacionalista e expansiva que compete com o liberalismo e o socialismo no sistema-mundo, situando-se para além de suas especificidades nacionais e regionais. Diferencia regime e movimento fascistas, apontando a autonomia relativa e as contradições entre ambos. Destaca a prioridade do primeiro sobre o segundo para analisar o fascismo como sistema de poder, contrariando a literatura que influenciada pelo período de ascenso dos casos europeus mais notórios, Itália e Alemanha, quando foi mais vibrante sua formulação doutrinária e apologética, colocou a ofensiva ideológica acima da evolução histórica, vendo na base de massas um elemento indispensável para sua configuração.
O autor aponta que o auge do fascismo enquanto movimento social se estabelece nas fases iniciais de tomada de poder, mas sua conversão em regime implica em um distanciamento crescente de suas origens. O que define sua essência como sistema de poder é o estabelecimento de uma ditadura que suprime ou esvazia o sistema representativo transformando-o num rito plebiscitário, o favorecimento do grande capital, o emprego da coerção sobre os trabalhadores com a destruição parcial ou total de seus organismos de representação e direitos conquistados, a perseguição ou eliminação física das esquerdas, o imperialismo e o combate internacional ao socialismo. Quanto mais avança sua afirmação como regime, maior é a tendência a repousar sua legitimidade na força ao invés no consenso, não podendo o respaldo popular ser um item indispensável ou central para classificar um sistema de poder como fascista.[iii]
A partir de sua definição de essência do fascismo, Theotonio dos Santos classificou as ditaduras militares latino-americanas dos anos 1960/70 como casos atípicos de fascismo, em condições de dependência, o que limita sua base pequeno-burguesa como movimento social, em razão da superexploração do trabalho que restringe a extensão desse segmento, constituindo-se em fascismos débeis apoiados na tecnoburocracia militar, cujo monopólio político do aparato estatal pode desdobrar-se em conflitos com o capital estrangeiro e o imperialismo, exemplificados na tentativa da ditadura brasileira dominar as tecnologias nuclear e de informática, em sua ruptura com o TIAR, ou no conflito militar da ditadura Argentina com a Grã-Bretanha pela disputa das ilhas Malvinas.
A fragilidade de um movimento social fascista de origem limitaria o alcance do fascismo brasileiro e as alas liberais do golpe militar de 1964 terminariam por hegemonizar o processo, reafirmar o compromisso do Estado brasileiro com a dependência, limitado pelos impactos do giro neoliberal do imperialismo sobre a dívida externa que havia contraído durante o período neodesenvolvimentista do vulnerável “milagre brasileiro”. O autor apontou, entretanto, que as ditaduras militares latino-americanas que se desmontam nos anos 1980 eram uma primeira etapa de um processo de fascistização de longo prazo contra uma eventual reorganização democrática que colocasse em questão pilares do capitalismo dependente como a superexploração dos trabalhadores (Martins, 2018 e 2022).
Indicou ainda o envolvimento cada vez maior de setores do grande capital na ofensiva fascista diante do estreitamento da pequena burguesia e ampliação do lumpesinato. Apontou ainda a tendência de retorno do fascismo aos países centrais após sua longa derrota no pós-guerra, embora interpretasse equivocadamente a conjuntura recessiva de longo prazo aberta em 1967, como similar à que teria se desenvolvido entre 1917-45, tomando em consideração apenas as variações dos ciclos de Kondratieff.
Desse conjunto de análises importa tomar em consideração o seguinte para formularmos uma definição de fascismo: o fascismo é herdeiro das tradições antimodernistas e anti-iluministas emergentes em oposição à Revolução Francesa, mas representa um salto de escala e de qualidade na repressão às emancipações, uma vez que passa a ter como foco principal a destruição da organização dos trabalhadores e suas lutas contra as opressões de classe, imperialistas, étnico-raciais, de gênero e ecológicas. Sintetiza outras formas antiliberais em um modelo próprio subordinando as tradições estamentais, medievais, monárquicas e coloniais a um Estado moderno e repressivo.
Como Estado constitui-se em uma ditadura para o grande capital no período imperialista, aberta ou acoplada ao liberalismo político, que subordina e viola, sendo exercida por setores médios ou segmentos que representam as frações decadentes da burguesia. Tal Estado se vincula de forma contraditória a uma base de massas insurrecional, da qual se utiliza para constituir-se e submetê-la posteriormente à centralização hierárquica do monopólio da violência, como parte de seu próprio desenvolvimento. Sua distinção em relação aos velhos bonapartismos e golpes militares está principalmente em suas escalas de organização, não apenas do partido de massas e da política externa, como indicava August Thailhemer (2009), mas também do aparato repressivo que limita a autonomia da sociedade civil.
O fascismo desenvolve uma ideologia irracionalista, baseada no arbítrio, na crença e no dogma, e apoia-se na longa duração de imposição da coerção sobre a libido, energia vital profunda, e na revolta que não a libera, mas que reforça o exercício violento e punitivo como parte da ascensão de uma nova elite de poder com objetivos específicos, como mencionou Wilhem Reich (1972 [1933]) em A Psicologia das massas do fascismo.
O fascismo como força capaz de disputar e alcançar o poder estatal não se apresenta sozinho na história, mas como parte de um bloco histórico com liberais e conservadores que busca liderar. As expressões clássicas do fascismo, na Itália e na Alemanha dos anos 1920 e 1930, seguiram um percurso de ascensão que combinou a hibridização de violência e institucionalidade sob domínio crescente da primeira, o que só foi possível mediante a aliança com os liberais e os católicos.
Podemos apontar entre as principais características do fascismo dos anos 1920-40: (a) a designação do marxismo, do comunismo, do bolchevismo e da socialdemocracia como os principais inimigos a serem destruídos; (b) O combate visceral ao internacionalismo liberal e às suas principais formas econômicas e políticas, isto é, o capital sem vínculo com o Estado nacional e a democracia representativa. A aristocracia burguesa que o sustentava deveria ser reestruturada, expurgada de seus elementos antinacionais e subordinada à direção fascista. O antisemitismo estabeleceu o critério de corte e circunscreveu os limites da oposição ao capital financeiro a parâmetros étnico-raciais e não de classe. Este seria dividido entre o parasitário e predatório, por ser judeu e antinacional, e o benigno e produtivo, passível de ser integrado ao planejamento nacional e ao desenvolvimento;
(c) O corporativismo, impulsionado pelo racismo, para dissolver as contradições de classe no pertencimento integral à comunidade nacional. O conceito de raça definiu-se tanto por dimensões biológicas quanto culturais e espirituais. A necessidade de controle das populações pelo Estado, o internacionalismo fascista e as alianças que suscitava exigiam que a raça fosse definida de forma abstrata, aleatória e maleável para incluir e excluir populações, grupos e indivíduos de acordo com as necessidades políticas contingenciais. A inclusão na comunidade nacional implicava a apassivamento, à propaganda, ao dogma e à obediência. Autores como Alfred Rosenberg (1978 [1924]) definiram o Estado nacional-socialista como um Estado folclórico e não como um Estado nacional;
(d) A exacerbação dos conflitos interimperialistas, culminando no emprego da violência e da guerra em larga escala contra a União Soviética e os centros do imperialismo liberal na Europa, apesar da pretensão inicial de estabelecer uma aliança com a Inglaterra e de concentrar os esforços na frente ocidental contra a França.
Fascismo hoje
A conjuntura contemporânea está vinculada a crises articuladas que nos inscrevem em um contexto de caos sistêmico marcado pela crise da civilização capitalista, da hegemonia dos Estados Unidos e do padrão de acumulação neoliberal. Neste contexto, projetos distintos se confrontam. Fascismo e socialismo tendem romper com sua subordinação ao liberalismo e disputar a reorganização do sistema mundial. O fascismo apresenta-se cada vez mais como uma força internacional orientada a liderar a confrontação e oposição ao socialismo, ao anti-imperialismo, ao empoderamento e organização dos trabalhadores.
Os Estados Unidos tendem a se transformar no epicentro do fascismo mundial, impulsionados por uma extrema-direita que se apossa cada vez mais do Partido Republicano e se organiza na sociedade civil, estabelece lideranças, penetrando em extensos segmentos de trabalhadores brancos, desorganizados e vinculados a espaços economicamente decadentes. O fascismo norte-americano se origina da reação da burguesia de base nacional e dos setores médios à concentração e centralização de capital, associada à globalização neoliberal, e às novas escalas de internacionalização que impulsiona, reagindo ao declínio produtivo e às desigualdades resultantes.
Todavia, a crescente perda de poder relativo da burguesia estadunidense mais transnacionalizada, em função do deslocamento da competitividade da China para a fronteira tecnológica, a aproxima do projeto de um imperialismo político que busca subordinar o mercado mundial à força do Estado norte-americano. O fascismo estadunidense apela ao racismo para forjar uma identidade nacional causasiana e anglo-saxã, elege como seus principais inimigos a China socialista, o nacionalismo revolucionário, o multiculturalismo e a imigração latino, africana e asiática. Estabelece uma forte ofensiva ideológica irracionalista utilizando-se principalmente das redes digitais, de alguns segmentos da grande mídia e do fundamentalismo cristão pentecostal.
Adapta a teoria da grande substituição, criada pelo francês Reinaud Camus para banir a população muçulmana da França, com a finalidade de alvejar a imigração, especialmente latina e caribenha, imputando-lhe um risco à preservação da identidade cultural e racial estadunidense. Sua tendência à ruptura com a ordem e as políticas liberais se evidenciam no assalto ao Capitólio e numa política externa que rompe com o internacionalismo liberal e as suas lutas contra as “autocracias”. Pretende definir os interesses estadunidenses em bases realistas, elegendo os adversários estratégicos, mas o unilateralismo que estabelece, manifesto na pretensão de cobrar por proteção militar, se combina com um integrismo que estende a coação a aliados para que se somem ao cerco aos adversários e amplia o cenário de conflitos.
O fascismo estadunidense rompe com o neoliberalismo no plano comercial, pretende restringir a circulação do capital produtivo, mas mantém a internacionalização financeira de onde buscar tirar vantagens da sobrevalorização do dólar. Todavia mantém a forte vinculação com o complexo industrial-militar e diante de um eventual enfraquecimento do dólar e da bolha financeira que o sustenta pode impulsionar a expansão dos gastos militares e a guerra como eixo de um novo padrão de acumulação.
O fascismo europeu é impulsionado pelo declínio produtivo, centralização de capital e desigualdade associados ao padrão neoliberal da integração europeia. Entretanto, encontra-se limitado pela ocupação militar estadunidense através da OTAN da qual não consegue se desvencilhar. O rechaço à China na bifurcação geopolítica que vai se estabelecendo, termina por alinhar os fascismos europeus à liderança estadunidense, restringir a pretensão de autonomia nacional, soberania militar e o projeto de aproximação a uma Rússia conservadora e antiliberal para impedir sua vinculação ao país asiático.
Contrariamente às expectativas neofascistas, a opção de política externa estadunidense liberal é a de bloquear os vínculos da Europa com a China, impedindo a aproximação com a Rússia como país intermediário. Tanto Marine Le Pen, quanto Georgia Melloni e Victor Orban cederam à liderança dos Estados Unidos na guerra na Ucrânia. O que une os diversos fascismos europeus é o rechaço à imigração africana e asiática, principalmente islâmica. Entretanto este rechaço pode tomar vários formatos, incluindo a moderada aproximação a alguns valores liberais, impulsionados pelos movimentos LGBT e feminista, entendidos como parte da civilização europeia em contraposição as orientais ou árabes, caso de Marine Le Pen, ou a defesa do arcabouço cultural iliberal e católico, de que são exemplo Georgia Melloni, Victor Urban e o Vox. Limitado pela subordinação política aos Estados Unidos, o fascismo europeu perde força e capacidade de enfrentamento com os regimes políticos liberais em que se encontra, mas um eventual retorno da extrema-direita à Casa Branca e ao Capitólio poderá ampliar a sua margem de manobra.
Na América Latina, o recrudescimento do fascismo surgiu como resposta à onda de esquerda e centro-esquerda que se estabeleceu de 1999 a 2015 e ao desgaste das burguesias financeira, industrial e primário-exportadora que impulsionaram o padrão neoliberal, tornando-as incapazes de sustentar as alternativas políticas tradicionais. A crise da economia mundial afetou negativamente os preços das commodities e os fluxos internacionais de capitais a partir de 2013-2015, abrindo o espaço para processos de desestabilização articulados pela burguesia interna e pelo imperialismo que resultaram em golpes de Estado e cerco às experiências mais radicais. Os golpes de Estado no Brasil (2016) e na Bolívia (2019), antecedidos pelos de Honduras (2008) e Paraguai (2012), selaram a virada à direita que se manifestou na eleição de Maurício Macri (2015), de Sebastián Piñera (2018), Ivan Duque (2018) e na mudança de rumos do governo Lenin Moreno.
Entretanto, o giro à direita não estabeleceu um padrão estável e teve a importante dissenção da eleição de Manuel Lopez Obrador em 2018. Buscou-se não apenas destruir avanços sociais e políticos alcançados nos Estados nacionais, mas destruir a integração latino-americana e sua articulação com o eixo geopolítico do Sul Global, centrado na China e na Rússia.
O caso paradigmático de ascensão do fascismo na América Latina é o Brasil. O golpe de 2016, a prisão e cassação dos direitos políticos de Lula, articulados sob hegemonia da direita liberal, precisaram se apoiar em uma base de massas radical que alavancou a ofensiva fascista. As eleições de 2018 indicaram o fracasso das candidaturas liberais e sufragaram Jair Bolsonaro em um processo eleitoral atípico. Jair Bolsonaro apoiou-se numa burguesia emergente que passou a deslocar o protagonismo da burguesia tradicional mais internacionalizada que dirigiu a Nova República. Essa burguesia emergente constitui-se por grandes empresas religiosas neopentescostais, que passaram a desafiar a igreja católica, pela mídia oficialista que passou a disputar o protagonismo com a Rede Globo, pelo agronegócio que voltou a expandir as taxas de destruição ecológica, por segmentos do comércio varejista, farmacológico e de armas. Trata-se de um empresariado que barganhou ativismo político militante em troca de favores e apoio estatal.
O discurso de Jair Bolsonaro apontou o comunismo e as esquerdas como os inimigos a serem banidos, associando-os à corrupção estatista, que deveria ser enfrentada com o ultraneoliberalismo. O neoliberalismo, todavia, está em declínio global e não proporciona resultados favoráveis em termos de crescimento econômico, emprego e redução da desigualdade para a América Latina, agravando os seus resultados negativos quando perde seus suportes econômicos, como a expansão do comércio internacional e dos fluxos internacionais de capital com a desaceleração da economia mundial e possível ingresso em uma fase B, recessiva do ciclo de Kondratieff. Tal contradição limita a capacidade de o fascismo expandir sua base de massas, dependendo para isso de um apelo eminentemente negativo, de ataque ao inimigo, para mobíliza-la, face a sua incapacidade de apresentar resultados econômicos e políticos satisfatórios.
As eleições no Brasil indicaram tanto essa debilidade do fascismo na derrota de Jair Bolsonaro, quanto sua capacidade organizacional de substituir e reduzir a um nicho estrito a centro-direita tradicional neoliberal na polarização com as esquerdas. A aristocracia liberal, com forte influência cultural, grande poder econômico e capacidade de articular as políticas públicas, mas sem liderança político-eleitoral competitiva, não teve alternativa senão aliar-se com Lula e o Partido dos Trabalhadores para derrotar Jair Bolsonaro e resistir a sua iniciativa de lhe minar a influência sobre o Estado para ocupá-la com uma burguesia emergente.
A aristocracia liberal perde grande parte do desembaraço para frear o projeto de uma democracia com substância social no Brasil, pois tem margem bastante reduzida para manejar a carta da desestabilização, uma vez que corre o risco de jogar água no moinho do fascismo em condições muito piores do que ocorreu entre 2016-18, dado o seu salto organizativo durante a presidência de Jair Bolsonaro.
O fascismo, por outro lado, apesar do seu fortalecimento se vê em uma situação de grande vulnerabilidade. Suas frações mais extremas exigem intervenção militar para impedir a posse e o governo de Lula, mas seu líder se torna acossado por um dilema: se adere e assume a rota de Donald Trump, pode acelerar os processos no Poder Judiciário contra si onde não possui maioria; se assume uma feição moderada e negociadora perde prestígio junto a ala mais radical que o apoia.
As esquerdas também se veem diante de um conjunto de restrições que diminuem sua margem de manobra. Lula optou por uma frente antifascista que incorporou segmentos da centro-direita vinculada ao golpe de 2016 para ampliar o leque de alianças. Essa aproximação lhe trouxe poucos votos. A atração de antigos quadros do PSDB, como Geraldo Alckmin, não impediu a derrota de Lula e Fernando Haddad em São Paulo, que alcançaram praticamente a mesma votação, demonstrando o alto grau de polarização. A presença da centro-direita liberal gera conflitos com a agenda progressista do futuro governo Lula e limites a um programa de desenvolvimento comprometido com a redução da desigualdade, a soberania nacional, a autonomia cultural, a integração soberana e solidária latino-americana, a orientação para o Sul Global, a preservação dos ecossistemas, a expansão do Estado e do gasto público, a reindustrialização, o fortalecimento da ciência e tecnologia, o combate à pobreza e à desigualdade.
Gera resistências também ao enfrentamento com o monopólio midiático, o agronegócio, o capital financeiro e os crimes de terrorismo ou genocídio de Estado. A ala liberal apoia-se na superexploração dos trabalhadores, torna-se incapaz de fundamentar uma democracia representativa sólida e busca preservar a ala fascista que se estruturou nas forças armadas com o golpe de 1964 e limitou a redemocratização. O Brasil é talvez o único país da América do Sul que não estabeleceu uma justiça de transição para punir os crimes de terrorismo de Estado. Sua importância estratégica para a região leva à vigilância e contenção por parte dos Estados Unidos que estabeleceu profundas conexões com as Forças Armadas do país e busca impedir o estabelecimento de um líder regional, com dimensões territoriais e populacionais similares, ocupando um espaço geográfico central para articular os países do subcontinente em processos econômicos e políticos convergentes.
A eleição de Lula sela a nova hegemonia de uma onda de centro-esquerda na América Latina. Os desafios que Lula enfrentará para afirmar-se diante da ala liberal de seu governo, do imperialismo estadunidense e do fascismo devem ser respondidos com um forte engajamento do movimento popular em sua sustentação, respaldando a atuação dos segmentos que constituem a base social capaz de estabelecer uma liderança ideológica socialista e democrática, onde se destacam os trabalhadores da educação e saúde públicas.
O enfrentamento realizado pelo governo Dilma a estes segmentos, derrotou suas lideranças mais combativas, gerando o declínio de sua afirmação ideológica e abriu o espaço para a ofensiva da direita. Realizar um novo pacto com o movimento social organizado deve ser prioridade do novo governo, incluindo-o de forma ativa na frente popular para a construção de um programa de desenvolvimento que possibilite conexões ideológicas com as grandes massas precarizadas.
*Carlos Eduardo Martins é professor do Instituto de Relações Internacionais e Defesa (IRID) da UFRJ. Autor de Globalização, dependência e neoliberalismo na América Latina (Boitempo).
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Notas
[i] Ver o artigo de Lea Haro (2011), Entering a Theoretical Void: The Theory of Social Fascism and Stalinism in the German Communist Party
[ii] “En la forma extrema que revistió sobre todo en Alemania durante la segunda Guerra Mundial, el fascismo pasa de la militarización del trabajo a la supresión del trabajo libre propiamente dicho, al retorno a un trabajo de esclavos a una escala cada vez más amplia. Las «leyes económicas» a que responde este trabajo son leyes específicas que ya no tienen nada de común con las leyes de la economía capitalista (…) «Esto significa que, en el marco de una dictadura política, la última fase del capitalismo tiende a convertirse en un Estado de esclavos. Y así ocurre desde que la competencia desaparece también del mercado del trabajo, hecho de importancia crucial.” (Mandel, 1969 [1962])
[iii] Na formulação das bases doutrinárias do fascismo, Mussolini previa um papel cada vez mais reflexo do indivíduo diante do Estado, em função do aumento do que chama de complexidade da civilização, com crescente restrição das liberdades individuais e transferência da vontade da massa de indivíduos a um só: “Fomos os primeiros a afirmar, diante do individualismo demoliberal, que o indivíduo existe apenas na medida em que se encontra dentro do Estado e sujeito às exigências do Estado e que, conforme a civilização adquire aspectos cada vez mais complicados, a liberdade individual se torna cada vez mais restrita.” (Mussolini, 1930)