Capitalismo e democracia são incompatíveis

Imagem: Lara Mantoanelli
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por GRACE BLAKELEY*

Apesar da previsão liberal de que a expansão dos mercados livres levaria a mais democracia, o autoritarismo só aumenta

Está se tornando cada vez mais difícil ignorar o fato de que a democracia em todo o mundo está em declínio.

Por um lado, muitos dos Estados mais poderosos do planeta – da China à Arábia Saudita – são governados por regimes autoritários que dão sinais de estar se fortalecendo. Por outro lado, o respeito pelas normas democráticas liberais – como o direito de protesto e a independência do judiciário – está em declínio nos regimes estabelecidos. E muitos Estados que pareciam caminhar para democracia – como Hungria e Turquia – estão presos em uma espécie de purgatório “democrático iliberal”.

Ao todo, cerca de 72% da população mundial vive sob alguma forma de regime autoritário, segundo alguns especialistas. Pesquisadores da Freedom House dizem que cerca de 38% da população mundial vive em países que podem ser classificados como “não livres”. O acadêmico liberal Larry Diamond classificou o declínio da democracia em todo o mundo de “recessão democrática”.

A erosão da democracia tem sido especialmente difícil para os liberais conceituarem. Afinal, as coisas não deveriam ser assim. A queda do Muro de Berlim deveria acabar com quaisquer questões remanescentes sobre a compatibilidade da democracia e do capitalismo. Este último inevitavelmente se expandiria, trazendo consigo direitos e liberdades que muitos no mundo rico passaram a considerar garantidos. O resto do mundo estava destinado a convergir para o modelo iniciado pelo Ocidente.

Os teóricos liberais e os formuladores dessas políticas desenvolveram uma série de argumentos para explicar a aparente contradição entre a expansão do capitalismo e o recuo da democracia.

Os que estão à direita do espectro político situam o problema nos “inimigos da democracia” estrangeiros. Para esses pioneiros da nova Guerra Fria, Xi Jinping e Vladimir Putin – embora curiosamente não Mohammed bin Salman ou Viktor Orban – são os culpados por fazerem lavagem cerebral nos povos ocidentais amantes da democracia com propaganda autoritária.

Centristas tendem a afirmar que o verdadeiro problema são os “extremistas de ambos os lados”, argumentando que socialistas democráticos como Bernie Sanders e Jeremy Corbyn, que nunca chegaram nem perto de alcançar o poder do Estado, compartilham tanta culpa pelo retrocesso democrático quanto os ex-líderes mundiais da direita populista como Boris Johnson e Donald Trump.

Qualquer avaliação do problema é, obviamente, inteiramente individualista. Muitos liberais acreditam sinceramente que o maior desafio para a democracia hoje são alguns “bandidos” corrompendo um sistema que, de uma forma geral, funciona bem.

Esses argumentos são, obviamente, totalmente absurdos. O apoio à democracia não está diminuindo por que os eleitores estão sofrendo lavagem cerebral com propaganda inimiga no TikTok. O apoio à democracia está diminuindo porque a democracia simplesmente não funciona da maneira que nos disseram que funcionaria.

Em primeiro lugar, a combinação de capitalismo e democracia deveria trazer prosperidade e progresso para todas as nações que a adotasse. Por um breve período após a queda do Muro de Berlim, quando a globalização tomou conta do mundo, essa história parecia verossímil. A crise financeira acabou com essa ilusão coletiva no Norte global. A geração que atingiu a maioridade durante a crise de 2008 teve que se ajustar à realidade de que provavelmente não estará em melhor situação do que seus pais.

Mas mesmo antes da crise financeira, a crise asiática do final da década de 1990 demonstrou para muitos no mundo em desenvolvimento que a abertura de seus mercados ao capital internacional pode ser uma receita para o desastre. Alguma combinação de autoritarismo e controle de mercado parecia a resposta natural.

Em segundo lugar, o progresso trazido pela democracia e pelo capitalismo deveria levar a mais democracia. Freios e contrapesos acabariam com a corrupção. Uma população instruída elegeria os líderes “certos”. E, em vez de fazer campanha com ideologias ultrapassadas, esses líderes competiriam por votos apelando para o “eleitor mediano”, trazendo moderação para sociedades anteriormente divididas.

Em vez disso, a corrupção está aumentando, a ideologia está de volta e as pessoas continuam elegendo os líderes “errados”. Afinal, criar sociedades tão estratificadas que a classe dominante mal consiga entender as preocupações dos eleitores comuns não seja uma receita tão infalível para a democracia.

Alguns comentaristas um pouco mais ponderados admitem que essa leitura incrivelmente simplista pode não captar toda a história. Numa nova série de podcasts para o Financial Times, Martin Wolf parece genuinamente preocupado com o futuro da democracia, aceitando uma pequena parte da culpa que recai sobre ele e os seus colegas.

O problema, Martin Wolf parece acreditar, é que os neoliberais, em todo o seu zelo pelo fim da história, ampliaram o livre mercado rápido demais. A terapia de choque dos anos 1990 não foi acompanhada de medidas para aliviar as tensões sociais e econômicas que trouxe consigo.

O argumento lembra aquele apresentado pelo teórico político Karl Polanyi, que acreditava que os mercados livres capitalistas se espalhavam rápido demais para que as sociedades se adaptassem. Aqueles cujas vidas e ideais foram ameaçados pela ascensão deste admirável mundo novo se oporiam à invasão da ‘sociedade de mercado’, muitas vezes apoiando homens fortes autoritários.

Liberais progressistas como Martin Wolf tendem a acreditar que a solução para o problema virá de alguma forma de capitalismo regulado. Frequentemente, esses comentaristas são keynesianos defendendo um retorno ao consenso social-democrata do pós-guerra.

Mas esse tipo de nostalgia não é mais saudável do que a manifestada pelos apoiadores de Donald Trump, que anseiam por retornar a um mundo anterior à disseminação da “ideologia de gênero”. Afinal, há uma razão pela qual o consenso keynesiano se desfez.

À medida que o crescimento econômico desacelerou, a batalha latente entre trabalhadores e empregadores que vinha borbulhando sob a superfície de repente explodiu no mainstream político. Sem os lucros excedentes extraídos do resto do mundo para manter esse conflito em segredo, a classe dominante ficou com apenas uma opção: a guerra total contra os trabalhadores.

Por esta razão, embora seja absolutamente óbvio que as democracias capitalistas precisam de algumas medidas para reduzir a desigualdade enquanto combatem o colapso climático, a visão capitalista progressista para o futuro não tem chance de ser aplicada. Resta apenas uma conclusão: capitalismo e democracia nunca foram realmente compatíveis, para começar.

*Grace Blakeley é jornalista, redatora do site Tribune.

Tradução: Ricardo Kobayaski.

Publicado originalmente no portal Jacobinlat.


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • Hans Kelsen e o eros platônicoplatão 16/10/2024 Por ARI MARCELO SOLON & LEONARDO PASSINATO E SILVA: Para Kelsen, a doutrina política platônica está calcada na homossexualidade do filósofo, circunstância que explicaria uma tendência totalitária do projeto filosófico platônico
  • Genocídio sem hesitaçãoemaranhado 17/10/2024 Por ARUNDHATI ROY: Discurso de aceitação do prêmio PEN Pinter 2024, proferido na noite de 10 de outubro de 2024
  • A longa marcha da esquerda brasileiravermelho 371 19/10/2024 Por VALERIO ARCARY: Nos dois extremos estão avaliações de que ou a esquerda “morreu”, ou que ela permanece “intacta”, mas ambos, paradoxalmente, subestimam, por razões diferentes, o perigo bolsonarista
  • Influencer na Universidade públicapexels-mccutcheon-1212407 21/10/2024 Por JOHN KENNEDY FERREIRA: Considerações sobre a performance na Universidade Federal do Maranhão.
  • Forma-livreLuizito 2 20/10/2024 Por LUIZ RENATO MARTINS: O modo brasileiro de abstração ou mal-estar na história
  • Não existe alternativa?lâmpadas 23/06/2023 Por PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS: Austeridade, política e ideologia do novo arcabouço fiscal
  • Armando de Freitas Filho (1940-2024)armando de freitas filho 27/09/2024 Por MARCOS SISCAR: Em homenagem ao poeta falecido ontem, republicamos a resenha do seu livro “Lar,”
  • A tragédia sem farsaestátua 17/10/2024 Por BARUC CARVALHO MARTINS: Breves comentários sobre a derrota da esquerda na eleição municipal
  • Van Gogh, o pintor que amava as letrasfig1samuel 12/10/2024 Por SAMUEL KILSZTAJN: Van Gogh costumava descrever literalmente seus quadros em detalhes, abusando de adjetivar as cores, tanto antes de pintá-los como depois de prontos
  • O belicismo de Sir Keir Starmer, o trabalhistabélico uk 18/10/2024 Por JOSÉ LUÍS FIORI: Sir Keir Starmer já conseguiu superar o chanceler alemão Olaf Scholz como a liderança mais belicista dentro da Europa, em relação à escalada da Guerra na Ucrânia

PESQUISAR

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES