Os supridores

Eliezer Markowich Lissitzky, Composição, 1922.
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por DANIEL BRAZIL*

Considerações sobre o romance de José Falero

Vez em quando surge na literatura contemporânea um autor que parece ter surgido do submundo, sem influências ou referências de estilo, e causa impacto pela originalidade, frescor e, quase sempre, contundência temática, permeada por uma certa revolta de classe. Não é um fenômeno brasileiro, algo parecido deve ocorrer em todas as línguas, uma vez que não há nação em que as desigualdades sociais sejam completamente ocultadas.

Lima Barreto, Plínio Marcos, Maria Carolina de Jesus, Ferréz, Paulo Lins e, mais recente, o carioca Geovani Martins, são alguns nomes geralmente citados como paradigmas dessa corrente. Alguns argumentam que até mesmo Machado de Assis poderia ser um exemplo vindo da mesma origem, mas do que falamos aqui é de construir uma obra de voz popular, como porta-voz de seus semelhantes, e não buscando absorver a linguagem e a temática universal dos mestres de sua época. Não basta ter nascido na favela, é preciso transportá-la, traduzi-la em sua escrita.

Obviamente, estamos aqui falando apenas da prosa, sob forma de conto, crônica ou romance. Por vários motivos, a poesia sempre foi um veículo mais versátil para traduzir as angústias nas periferias sociais e culturais de nosso planeta. Até pelo fato de que dispensa papel e gráfica, basta um muro e um pedaço de carvão. Ou a própria voz.

O prosador José Falero é um notável representante dessa linhagem. Nascido na periferia de Porto Alegre, conviveu com a pobreza e a barra pesada do tráfico, da discriminação e da violência policial. Estreou com o volume de contos Vila Sapo, e em 2020 lançou o romance Os supridores, vencedor de vários prêmios.

A narrativa começa de forma cautelosa, introduzindo os personagens e o cenário central do enredo. Um supermercado, onde trabalham Pedro e Marques, os supridores do título. Mais conhecidos como repositores em outras regiões do Brasil, são aqueles funcionários que arrumam as mercadorias nas prateleiras e cuidam para que estejam sempre abastecidas.

Pedro é apresentado como leitor e sonhador inconformado. Almeja uma vida melhor, como todos, e carrega uma instintiva revolta contra a situação de pobreza. Chega a citar Marx nos diálogos com o amigo, que é casado e acaba de receber a notícia de que a mulher está grávida pela segunda vez. Marques acaba sendo convencido de que o único jeito de saírem da miséria é passarem a vender maconha no bairro, nicho em desuso pela preferência dos traficantes da região por cocaína e crack. Passam, portanto, a serem supridores de outra categoria.

Em linguagem que oscila entre a norma culta e a reprodução da fala cotidiana das periferias, cheia de palavrões e sem muita sutileza, José Falero constrói uma trama envolvente, que ganha fluência e contornos de thriller policial na segunda metade da narrativa.

Personagens secundários vão ganhando relevância, como Angélica, a mulher de Marques, o segurança do supermercado, o adolescente Luan, os chefes do tráfico para quem eles pedem autorização para operar, o gerente do supermercado. Delineia-se todo um universo à margem da lei e da ordem, que delimita regras de convívio, que institui uma ética própria de comportamento social. E onde a justiça é feita com as próprias mãos, graças à inércia do Estado.

José Falero conduz a narrativa com segurança, e trabalha na medida certa o perfil psicológico dos personagens até o desenlace eletrizante da trama. A repetição de palavrões pode enjoar alguns leitores mais sensíveis, mas o autor sempre terá o álibi de que “na quebrada se fala desse jeito, tá ligado?”

Os supridores é um romance essencial para compreender a realidade das periferias metropolitanas brasileiras, deste imenso mundo de excluídos que de vez em quando consegue se expressar através de tortuosas vias. Remete ao sonho universal de subir na vida a qualquer preço, e enfoca personagens que acabam pagando um preço alto na gôndola de oportunidades que o supermercado-mundo oferece. E o autor não observa com um binóculo, de longe, como se fosse um acadêmico, mas com uma mirada próxima, na altura dos olhos, com a sabedoria inata de irmão.

*Daniel Brazil é escritor, autor do romance Terno de Reis (Penalux), roteirista e diretor de TV, crítico musical e literário.

Referência


José Falero. Os supridores. São Paulo, Todavia, 2020, 304 págs. [https://amzn.to/3rxSPpx]


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Marcelo Guimarães Lima Lincoln Secco Samuel Kilsztajn Luiz Roberto Alves Jorge Luiz Souto Maior Flávio R. Kothe Leonardo Avritzer Tales Ab'Sáber Armando Boito Luiz Carlos Bresser-Pereira Eugênio Trivinho Alexandre de Freitas Barbosa Alexandre Aragão de Albuquerque Claudio Katz Francisco de Oliveira Barros Júnior Marcus Ianoni Dennis Oliveira Mário Maestri Boaventura de Sousa Santos Renato Dagnino Paulo Martins Henry Burnett Fábio Konder Comparato Gilberto Maringoni Airton Paschoa Andrés del Río Mariarosaria Fabris Everaldo de Oliveira Andrade Denilson Cordeiro Ricardo Fabbrini Heraldo Campos Michael Roberts Carlos Tautz Paulo Nogueira Batista Jr Sergio Amadeu da Silveira Ronald León Núñez Valerio Arcary Bento Prado Jr. Ricardo Abramovay Carla Teixeira Jorge Branco Afrânio Catani Flávio Aguiar José Raimundo Trindade Francisco Pereira de Farias Vladimir Safatle Chico Whitaker José Luís Fiori Yuri Martins-Fontes Michael Löwy Daniel Brazil Chico Alencar André Márcio Neves Soares João Sette Whitaker Ferreira Thomas Piketty João Paulo Ayub Fonseca Michel Goulart da Silva José Micaelson Lacerda Morais João Adolfo Hansen Paulo Capel Narvai João Carlos Loebens Ari Marcelo Solon José Machado Moita Neto Sandra Bitencourt Bruno Machado Henri Acselrad Vinício Carrilho Martinez Rodrigo de Faria Ricardo Musse Leonardo Sacramento Benicio Viero Schmidt João Feres Júnior Salem Nasser Eliziário Andrade José Costa Júnior Leonardo Boff Luis Felipe Miguel Bruno Fabricio Alcebino da Silva Kátia Gerab Baggio Eleonora Albano Julian Rodrigues Luiz Bernardo Pericás Alysson Leandro Mascaro Milton Pinheiro Luciano Nascimento Eduardo Borges Marcelo Módolo Atilio A. Boron Marjorie C. Marona Érico Andrade Gabriel Cohn Caio Bugiato Osvaldo Coggiola Otaviano Helene Alexandre de Lima Castro Tranjan Eleutério F. S. Prado João Lanari Bo Daniel Costa Maria Rita Kehl Lucas Fiaschetti Estevez Marcos Aurélio da Silva Igor Felippe Santos Elias Jabbour Bernardo Ricupero José Geraldo Couto Luiz Renato Martins Ronald Rocha Vanderlei Tenório Marcos Silva Tarso Genro Paulo Sérgio Pinheiro Anselm Jappe Marilena Chauí Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Marilia Pacheco Fiorillo Rubens Pinto Lyra Slavoj Žižek Jean Pierre Chauvin Fernão Pessoa Ramos Rafael R. Ioris Lorenzo Vitral Gilberto Lopes Berenice Bento Juarez Guimarães Celso Favaretto Valerio Arcary Fernando Nogueira da Costa Gerson Almeida João Carlos Salles Annateresa Fabris Paulo Fernandes Silveira Antônio Sales Rios Neto Ladislau Dowbor Luiz Eduardo Soares Leda Maria Paulani Antonino Infranca Dênis de Moraes Andrew Korybko Manuel Domingos Neto Tadeu Valadares Eugênio Bucci André Singer Remy José Fontana Luiz Marques Liszt Vieira Francisco Fernandes Ladeira Manchetômetro Luiz Werneck Vianna Celso Frederico Plínio de Arruda Sampaio Jr. Antonio Martins Walnice Nogueira Galvão Matheus Silveira de Souza José Dirceu Ronaldo Tadeu de Souza Ricardo Antunes Daniel Afonso da Silva Jean Marc Von Der Weid Priscila Figueiredo Luís Fernando Vitagliano

NOVAS PUBLICAÇÕES