Porque não torço para a seleção

imagem: Serkan Göktay
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Por VINÍCIO CARRILHO MARTINEZ*

Uma seleção nacional deve representar o conjunto mais amplo da sociedade

Em tempos de Copa, por que não torço para a seleção (minúscula)? Por inúmeras razões e bem racionais, vou até enumerar algumas:

Não me alinho ao mercado futebolístico: na verdade, defendo a tese de que devemos acabar imediatamente com todos os esportes profissionais. Entendo que nossos recursos, energias, capacidades, habilidades deveriam ser direcionadas ao esporte amador. Que o esporte amador seja parte constituinte do currículo e do esforço pedagógico – da escola pública à Universidade. Para atender a essa ideia, teríamos que modificar a CF88, retirando alguns dos incisos do artigo 217 e acrescentando outros na forma de uma PEC.

Neste sentido, não posso torcer para mercenários. Tipo específico de atletas que são os jogadores selecionados. Em contrapartida, 95% dos jogadores de clubes ou ligas menores, no Brasil, não recebem sequer um salário mínimo – além de todas as outras modalidades que “vencem na raça”, sem incentivos. O fosso da desigualdade social e da concentração de renda é absurdo no futebol, atuante como espelho e reflexo das mazelas e das misérias nacionais.

Jamais usarei a camiseta amarela com escudo CBF. Essa Confederação, a exemplo de muitas outras, me traz péssimas recordações (i)morais, ilegais, ilegítimas. Quando “chefiamos” a FIFA não foi diferente – basta puxar pela memória ou “dar um google”. Além do mais, tanto quanto os símbolos nacionais foram capturados pelo fascismo déspota (2016-2022), esta tal camiseta amarela está associada às piores formas de sociabilidade desde o final do século XX. Nosso ufanismo é e sempre foi fascistoide.

Ninguém nunca me verá na bandeira, pauta, agenda, motivações e ações fascistas. Este artigo é também uma Carta ao fascismo, na qual repudio, em indignação total e no âmbito da ação política possível, toda captura fascista da identidade nacional. Nesta Carta ao fascismo, sacramento que jamais irão me ver ao lado de um indivíduo que prometeu engalanar o ex-presidente (derrotado) com a camiseta marca CBF – caso vençam o campeonato.

Se não fosse “só” por isso, ainda digo que não torço porque minha imagem de seleção – representativa do povo brasileiro – é a de Sócrates (mesmo não sendo corinthiano), porque representa a torcida, o movimento “Democracia Corinthiana”. O nome, referência ao filósofo grego, não foi à toa, não foi em vão! Minha memória ainda resgata a seleção, por questões técnicas, de Telê Santana (1986).

Por fim, não torço por essa seleção – ou melhor, torço para que seja derrotada – porque desde sempre aprendi em casa que futebol e política não se misturam. Ou não se misturavam, até que o fascismo ganhou o poder. Meu pai sempre nos ensinou, quando crianças, que a seleção de 1970 (inicialmente comandada por um comunista de carteirinha: o técnico João Saldanha era integrante do PCB) ganhou o tricampeonato na bola, na maestria de gênios que a galáxia raramente reúne para o banquete dos torcedores: outro momento inesquecível, menor é claro, pôde ser visto com o Barcelona de Lionel Messi. Por outro lado, a política, o banquete dos deuses, estava proibida pelos anos de chumbo da ditadura de 1964. Mas, a Taça de 1970 não foi presenteada aos torturadores, corruptos, assassinos daquela época. Foi elevada à simbologia de grandeza do povo brasileiro. Pelé, Garrincha, Tostão, Gérson, Rivelino e outros eram povo, exatamente ao contrário dos fascistas-mercenários de 2022.

A última: não torço porque isso faria meu pai revirar no túmulo.

Se você torce por isso que está aí, chamando-a de “seleção nacional”, convido para que repense, pois, como diz a expressão, uma seleção nacional deve representar a nação, o povo, o conjunto mais amplo da sociedade. E o que vemos nesse punhado de jogadores pode ser tudo, menos a representação social, nacional. São milionários, mercenários, na sua maior parcela representam o próprio bolso, quando não se aninham no fascismo, com dancinhas imbecis. Aqui ainda cabe lembrar que a dancinha é uma parcela de pagamento pela não-condenação das fraudes fiscais e outras afrontas ao erário e ao poder público. Em suma, o mercenário, mesmo em situações gravíssimas, é fascista para defender os próprios interesses.

Você gostaria de saber que sua audiência nos jogos auxiliou a alimentar essa máquina mercenária e fascista? Eu, se fizesse isso, nunca mais teria sossego na vida. Minha consciência seria o pior tormento da alma e do corpo: não há como perdoar (esquecer) a misoginia, os abusos, a corrupção, o genocídio praticado na pandemia, o descaso proposital frente às políticas públicas e aos atos mais simples da rotina administrativa (“desgoverno”). Não dá para perdoar, esquecer, amolecer diante disso que ainda vivemos.

Não dá e não vou. A todos os envolvidos, desejo o máximo rigor da lei, sem distinção de cor, idade, sexo, nível de escolaridade, condições físicas, emocionais, sociais ou econômicas. Desejo, para alguns (algumas), um veraneio prolongado nos presídios federais de Porto Velho e Mossoró: são os melhores para o tipo de gente que roubou os símbolos nacionais, a seleção nacional, que destruiu a civilidade, que se alimentou da negação da vacina contra a COVID-19, para a estrita diversão fascista. Esse diversionismo, essa alienação futebolística, precisa acabar e rapidamente.

Não dá pra torcer para um conjunto desses, ainda mais lembrando que 30 milhões de pessoas passam fome, morrem de fome, esquecidos, excluídos, banidos, ferrados pelo poder político – ainda mais esse, colonizado pelo fascismo.

Eu torço, sim, pela restauração de tempos não-fascistas, torço pelo êxito da luta constante em defesa da dignidade humana, pela saúde e educação pública. Torço pela Constituição, pela democracia, pelo Estado de direito; torço para que a inteligência social volte a ser nosso guia: mesmo com todos os atropelos, erros e malfeitos praticados antes de 2016, nada se compara ao atual fascismo mercenário – salvo o nazismo.

*Vinício Carrilho Martinez é professor do Departamento de Educação da UFSCar.

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