Quo vadis, Aida?

Frame de Quo vadis, Aida?/ Divulgação
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por JOÃO LANARI BO*

Comentário sobre o filme de Jasmila Zbanic

Quo vadis? A expressão é do latim, a língua morta que jaz no subterrâneo do nosso inconsciente linguístico: informa a wikipédia, arauto do saber digital, que a expressão vem de um relato do evangelho apócrifo conhecido como “Atos de Pedro”, no qual, ao fugir de uma provável crucificação em Roma, São Pedro encontra Jesus ressuscitado e pergunta: “Quo vadis?” E Jesus responde: “Romam vado iterum crucifigi” (“Vou a Roma para ser crucificado de novo”).

Pedro desistiu da fuga, voltou a Roma e foi crucificado de cabeça para baixo. “Quo vadis” ressoa também no mundo do cinema: baseado no livro homônimo publicado na Polônia em 1895, seis versões foram produzidas – entre elas a mais conhecida, de 1951, com Deborah Kerr e Robert Taylor, que ganhou o Oscar: cristãos sofrendo sob leões famintos e a piromania de Nero. “Quo vadis, Aida?”, o filme de Jasmila Zbanic, corajosa cineasta da Bósnia, atualiza a pergunta para o trágico passado próximo da enlouquecida guerra civil que atingiu os territórios da antiga Iugoslávia, na primeira metade dos anos 1990.

Atualizar no sentido mais radical possível: seu filme parece inspirar-se num daqueles relatos escabrosos do Antigo Testamento da Bíblia, em que cidades e populações foram dizimadas em nome da pureza étnica-religiosa. O massacre contemporâneo entrou para a história como genocídio de Srebrenica, o pior no Ocidente depois da Segunda Guerra Mundial: aconteceu entre 11 a 25 de julho de 1995, quando 8 mil e 373 bósnios muçulmanos, de adolescentes a idosos, foram executados ou desapareceram, por milicianos travestidos de forças militares compostas por cidadãos bósnios de origem sérvia, apoiados pela Sérvia.

Srebrenica é uma pequena cidade montanhosa com pontes romanas e arquitetura bizantina, no extremo leste da Bósnia: suas principais atividades econômicas são (ou eram) mineração de sal e turismo, através de balneários nas proximidades – um deles, o hotel Vilina Vlas, foi sede de comandos milicianos e cenário de pelo menos 200 estupros e assassinatos de mulheres muçulmanas, em 1992 (depois do conflito, voltou a funcionar).

Quo vadis, Aida? organiza sua narrativa a partir do que vê a intérprete Aida, a serviço das forças de paz da ONU em Srebrenica: a cidade foi declarada em abril de 1993 “área livre de qualquer ataque armado ou qualquer outro ato hostil”, sob a proteção de uma pequena e frágil unidade de militares holandeses, os chefes de Aida.

As tropas comandadas pelo general Ratko Mladic não se deixaram impressionar com essa normativa internacional e perpetraram o massacre, nas duas semanas de julho de 1995. O equilíbrio entre o particular ficcional da família de Aida e o coletivo da tragédia é um dos pontos fortes do filme: poucas vezes o letreiro inicial “baseado em fatos reais e personagens ficcionais” foi tão adequado.

O dilema moral de Aida – salvar seus próximos, marido e dois filhos, utilizando o crachá de funcionária internacional e apelando para exceções duvidosas, ou resignar-se diante do drama coletivo que se anunciava? – instala a referência bíblica no âmago da personagem. Em um mundo onde os limites de convivência humana foram ignorados ou ostensivamente abolidos, qual o sentido do dilema? Para onde vais, Aida?

Ratko Mladic é dos personagens mais sinistros dos anais da violência humana. Conseguiu ficar foragido por quinze anos depois que o conflito na Bósnia se encerrou por meio de acordo multilateral de paz em fins de 1995: Sérvia e Estados Unidos chegaram a oferecer cinco milhões de euros por informações que levassem à captura do general, afinal detido em 2011. Acabou condenado a prisão perpétua pelo Tribunal Penal Internacional de Haia. Em Quo vadis, Aida?, seu personagem performa uma das melhores interpretações do filme, ao lado do hesitante coronel holandês e, claro, de Aida.

Depois dessa era de catástrofes, a Bósnia e Herzegovina reformatou-se politicamente em uma federação com duas entidades politicamente autônomas, a Federação da Bósnia e Herzegovina e a República Sérvia (que não deve ser confundida com a Sérvia propriamente dita). Até hoje forças da ONU permanecem no país, geograficamente dividido, para garantir o cumprimento do acordo de 1995. Segundo estimativas, 45% da população são muçulmanos, 36% ortodoxos sérvios e 15% católicos: descontada a margem estatística de erro, essa é a fratura religiosa que assombra a Bósnia.

Em 2018, jornalista do The Guardian visitou a região e constatou o seguinte: “Os comentários do TripAdvisor sobre o hotel Vilina Vlas são mistos. Apenas alguns mencionam o cenário de estupros que ele já foi – e se você não fala francês ou alemão, nem vai perceber. O resto é uma mistura de reclamações mundanas sobre quartos sujos e homenagens entusiásticas à floresta e suas fontes termais naturais”.

*João Lanari Bo é professor de cinema da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (UnB). Autor, entre outros livros, de Cinema para russos, cinema para soviéticos (Bazar do Tempo) [https://amzn.to/45rHa9F]

Referência


Quo vadis, Aida?
Alemanha, Áustria, Bósnia-Herzegovina, 2020, 104 minutos.
Direção e Roteiro: Jasmila Zbanic.
Elenco: Jasna Đuričić, Izudin Bajrović, Boris Isaković, Johan Heldenbergh,
Raymond Thiry, Boris Ler.


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • Marx e a financeirização – o exuberante capital fictíciodolar olho 48 18/09/2024 Por RENILDO SOUZA: O papel crucial da ciência e da tecnologia na economia capitalista do século XXI favorece a valorização das mercadorias-conhecimento gerando as chamadas renda-conhecimento
  • Como os soviéticos venceram a desertificaçãocccp 22/09/2024 Por RICARDO CAVALCANTI-SCHIEL: O Grande Plano da URSS para a Transformação da Natureza nos conta que a magnitude do seu impacto só foi possível porque aliou conhecimento, planejamento sistêmico e vontade soberana da nação
  • América do Sul — uma estrela cadenteJosé Luís Fiori 23/09/2024 Por JOSÉ LUÍS FIORI: A América do Sul se apresenta hoje sem unidade e sem qualquer tipo de objetivo estratégico comum capaz de fortalecer seus pequenos países e orientar a inserção coletiva dentro da nova ordem mundial
  • Franz Kafka e seu bestiário em trânsitopexels-moldyfox-3924726 20/09/2024 Por RICARDO IANNACE: Comentários sobre o bestiário em Kafka
  • A revolução silenciosaeb 18/09/2024 Por MARISA BITTAR: Considerações sobre os dados do censo demográfico e a educação brasileira.
  • O livro de CatuloPaulo Martins – Foto_edited 03/09/2024 Por PAULO MARTINS: O que nos resta de Catulo é suficiente para dizer que seu ecletismo genérico (dos gêneros poéticos) é impressionante
  • Fragmentos XXXAirton Paschoa 20/09/2024 Por AIRTON PASCHOA: Uma peça curta
  • Sobre Ernesto GeiselErnesto-Beckmann-Geisel 20/09/2024 Por PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.: Considerações acerca dos méritos do general e algumas comparações com Lula.
  • O caminho do meioamazon 22/09/2024 Por JOSÉ DIRCEU: A Amazon é a nova aposta dos EUA pelo controle dos ativos digitais brasileiros
  • Quem tem medo dos movimentos sociais?pexels-vlada-karpovich-4668360 20/09/2024 Por CARLOS ZACARIAS DE SENA JÚNIOR & MAÍRA KUBÍK MANO: Quando mulheres, negras e negros, pessoas LGBTs e Pessoas com Deficiência acusam alguém, é improvável que o façam sem critério

PESQUISAR

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES