Uma mulher negra no STF?

Imagem: Donald Tong
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por RAYNER DOS SANTOS RODRIGUES*

Esta indicação enfrenta resistências dos que ainda negam a centralidade do debate sobre as opressões às minorias na construção de um outro país verdadeiramente democrático

O sistema colonial português criou uma filosofia étnica que serviu de fundamento para a construção do ordenamento social brasileiro. Estabelecendo níveis civilizatórios de acordo com a composição étnica, a partir desta ideologia edificou-se uma hierarquização social pautada não na capacidade ou incapacidade de cada um, mas na cor e origem de nascimento – nesta hierarquia o negro compõe o seu nível mais baixo.

Assim, como os espaços de poder e prestígio social representavam os interesses da classe senhorial, sua composição era branca, já que, por meio daquele mecanismo de seleção racial, quanto mais se sobe ao topo da pirâmide social, mais branca é sua composição.

Com o fim do escravismo, ainda que sob novas formas, esta filosofia étnica se manteve e, por isso, estabeleceu, também, a estratificação social da sociedade de classes. Nela, novos mecanismos mantém o negro imóvel na parte inferior da sociedade brasileira, de modo que os espaços de poder e prestígio continuam sendo a representação da elite brasileira e, por isso, continuam sendo brancos. No Supremo Tribunal Federal não foi diferente: criado em 1891, sua composição histórica é marcada pela indicação de 171 ministros, destes, 168 brancos, sendo apenas 3 mulheres, nenhuma delas negra.

É certo que a indicação de uma mulher negra, por si, não é capaz de reformular uma instituição que sempre cumpriu o papel de garantia dos interesses das elites nacionais e internacionais, como no seu papel no golpe de 2016 – o grande acordo nacional, com o Supremo, com tudo –, na proteção à atuação ilegal da Operação Laja Jato, na retirada da candidatura de Lula na eleição presidencial de 2018 e no aval para a venda e destruição do que restava dos setores industriais nacionais, perpetradas por Paulo Guedes e Jair Bolsonaro – por este motivo, aliás, é preciso a indicação daquela que tenha um compromisso real com a defesa da soberania nacional e do desenvolvimento econômico e social do país, algo inexistente nas últimas indicações.

Mas, nesta sua limitada capacidade de atuação para a transformação do país dado esse caráter classista do judiciário, a indicação de uma mulher negra possui diversos papéis importantes, além do estritamente técnico. Por se tratar de uma nova perspectiva sobre os diversos temas, sua presença induz a uma série de debates, sobretudo sobre a questão racial, a exemplo do ocorrido nas universidades brasileiras após a entrada dos cotistas.

Além disso, sua representação em um espaço de poder e prestígio social possibilita interromper nos demais negros e negras um processo de negação de suas identidades, já que, por atrelar sua condição social inferiorizada à cor de sua pele, é comum entre esta parcela da população procurar se “embranquecer” na tentativa de ser melhor inserido nos circuitos de consagração e ascensão social – o que significa, por consequência, uma negação de seu papel político, enquanto sujeito negro, na transformação radical dessas estruturas sociais racializadas.

Mas, esta indicação enfrenta resistências daqueles que ainda negam a centralidade do debate sobre as opressões às minorias na construção de um outro país verdadeiramente democrático. Se, como dizem, a raça e o gênero não são critérios de escolha, e sim a qualificação técnica, então teria a mulher negra alguma pré-disposição natural à incapacidade de compreensão jurídica, uma vez que nenhuma delas foi indicada em 132 anos? O que este argumento tenta esconder é que o gênero e a raça sempre foram, sim, critérios de escolha e, se assim os são, por que não uma mulher negra no STF?

*Rayner dos Santos Rodrigues é graduando na Faculdade de Direito da USP.

A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Luiz Renato Martins Manchetômetro Tarso Genro Lorenzo Vitral Luiz Werneck Vianna Leonardo Avritzer José Geraldo Couto Luiz Roberto Alves Leda Maria Paulani Paulo Fernandes Silveira Ricardo Antunes Caio Bugiato Eduardo Borges Alysson Leandro Mascaro Ronald Rocha Denilson Cordeiro Alexandre Aragão de Albuquerque Annateresa Fabris Afrânio Catani Dennis Oliveira Fábio Konder Comparato Igor Felippe Santos Leonardo Boff Juarez Guimarães Slavoj Žižek Valerio Arcary Everaldo de Oliveira Andrade Lincoln Secco Boaventura de Sousa Santos Marcus Ianoni Ari Marcelo Solon José Luís Fiori Ricardo Abramovay Alexandre de Freitas Barbosa Marcos Aurélio da Silva André Márcio Neves Soares Ronaldo Tadeu de Souza Ricardo Musse Ricardo Fabbrini Érico Andrade Renato Dagnino Gerson Almeida Eugênio Trivinho Gilberto Maringoni Liszt Vieira Salem Nasser Samuel Kilsztajn João Feres Júnior Ladislau Dowbor Luiz Bernardo Pericás Berenice Bento José Costa Júnior Chico Alencar Paulo Capel Narvai José Micaelson Lacerda Morais Michael Löwy Chico Whitaker João Paulo Ayub Fonseca Jean Marc Von Der Weid Carla Teixeira Luis Felipe Miguel Francisco Fernandes Ladeira Milton Pinheiro Plínio de Arruda Sampaio Jr. Heraldo Campos Celso Favaretto Flávio Aguiar Antonio Martins Eugênio Bucci Mariarosaria Fabris Andrés del Río João Carlos Salles Marcelo Módolo Priscila Figueiredo Dênis de Moraes Antonino Infranca Remy José Fontana Claudio Katz José Machado Moita Neto Michael Roberts Bento Prado Jr. Eleonora Albano Marilena Chauí Bernardo Ricupero José Raimundo Trindade Marcos Silva Daniel Afonso da Silva Henry Burnett Eliziário Andrade Jean Pierre Chauvin Benicio Viero Schmidt Daniel Brazil Daniel Costa Armando Boito João Carlos Loebens Bruno Machado Vanderlei Tenório Leonardo Sacramento Andrew Korybko João Lanari Bo Sandra Bitencourt Rubens Pinto Lyra Francisco Pereira de Farias Jorge Branco Sergio Amadeu da Silveira João Sette Whitaker Ferreira Anselm Jappe Mário Maestri Maria Rita Kehl Atilio A. Boron Michel Goulart da Silva Tadeu Valadares Fernando Nogueira da Costa Luciano Nascimento Lucas Fiaschetti Estevez Marcelo Guimarães Lima Luís Fernando Vitagliano Vinício Carrilho Martinez Antônio Sales Rios Neto Luiz Carlos Bresser-Pereira Marjorie C. Marona Julian Rodrigues Celso Frederico Tales Ab'Sáber Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Luiz Marques Otaviano Helene Ronald León Núñez Fernão Pessoa Ramos Alexandre de Lima Castro Tranjan André Singer Paulo Sérgio Pinheiro Rafael R. Ioris Flávio R. Kothe Yuri Martins-Fontes Walnice Nogueira Galvão Francisco de Oliveira Barros Júnior Valerio Arcary Carlos Tautz Eleutério F. S. Prado Airton Paschoa Kátia Gerab Baggio Osvaldo Coggiola Gabriel Cohn Rodrigo de Faria Vladimir Safatle Matheus Silveira de Souza Henri Acselrad João Adolfo Hansen Bruno Fabricio Alcebino da Silva Jorge Luiz Souto Maior Paulo Nogueira Batista Jr Thomas Piketty José Dirceu Luiz Eduardo Soares Marilia Pacheco Fiorillo Elias Jabbour Manuel Domingos Neto Gilberto Lopes Paulo Martins

NOVAS PUBLICAÇÕES