Móvel moderno no Brasil

Elyeser Szturm, da série Nós
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por CELSO FAVARETTO*

Comentário sobre o livro de Maria Cecília Loschiavo dos Santos

Os estudos sobre a integração do moderno no Brasil receberam uma contribuição relevante, e num domínio que, dada sua evidência, tem sido escassamente tratado. O livro de Maria Cecília Loschiavo dos Santos, ao propor uma sistematização historiográfica e iconográfica sobre a produção moderna de móveis no Brasil, não só cobre uma lacuna como incita a reflexão sobre aspectos e modos do impulso de modernização. Compondo um panorama, situando problemas e analisando a produção, o livro deixa entrever que, também na cultura material, os imperativos da atualização se impuseram através dos mesmos lances e desígnios que comandaram as artes.

Pretendendo identificar as origens e o desenvolvimento do desenho industrial brasileiro, especialmente no setor do mobiliário, Maria Cecília ressalta o surgimento da figura do designer em consonância com as transformações do processo de industrialização e associado ao projetualismo arquitetônico. Não ambiciona traçar a história social do móvel utilizado extensivamente, pois isto demandaria análise social, de valores simbólicos e hábitos culturais, além de aspectos estéticos e expressivos.

Focaliza antes o desafio do designer: encontrar soluções formais e tecnológicas para o projeto e execução de móveis e outros utilitários domésticos, requeridos pelo desejo de modernização geral e propósitos específicos dos arquitetos. Da produção artesanal, frequentemente de objetos únicos com pretensão artística, à industrial, visando a um público consumidor em formação, a trajetória descrita busca uma possível especificidade do móvel brasileiro, ora enfatizando a inventividade dos designers, ora as vicissitudes do desenho de produto face às exigências da moda e do marketing.

A história contada por Maria Cecília é interessante; embora feita dos lances típicos da modernização forçada, constituiu ícones e inventores legendários. Da Cama Patente à linha Peg-leve, de Warchavchik a Sérgio Rodrigues, da Poltrona Mole à Gaivota, de John Graz a Tenreiro, de Geraldo de Barros a Fulvio Nanni, delineia-se o empenho em afirmar um móvel que se quer moderno e brasileiro, belo e confortável, sofisticado e, se possível, acessível. O trajeto, muito conhecido porque exemplar dos esforços de modernização em todas as áreas, é marcado pelas oscilações do gosto, a impetuosidade dos projetos, a racionalidade das propostas, e, não menos, as dificuldades de implantação, dado o ritmo improvisador do desenvolvimentismo.

A tipicidade da linha evolutiva traçada por Maria Cecília fica patente no modo como vê a passagem do móvel, de objeto artesanal e obra de arte a produto; ou, de gênero menor a design, essencial no projeto arquitetônico. Dos anos 20 até hoje, a evolução do mobiliário segue as viradas ocorridas na literatura, nas artes plásticas e na arquitetura. As experiências modernistas de Warchavichik, John Graz e Flávio de Carvalho; o projetualismo inaugurado a partir da década de 30 pela arquitetura e a “especificação do projeto”, que responde às exigências do binômio arte-técnica nos anos 50/60, são justificados pelos projetos culturais e transformações estruturais de cada situação histórica. Enfim, a história do móvel moderno no Brasil é efeito da integração capitalista e da modernidade que ela representa, ainda que alucinada pela tematização da “realidade brasileira”.

No período 1950/60, justamente considerado heroico, dá-se por alcançada a maioridade do desenho de produto, pois a fixação de princípios formais e o desenvolvimento tecnológico permitiram o domínio dos materiais e a produção em série e, simultaneamente, certa diferenciação do mercado colaborou para que a visão projetualista assimilasse um público cativo. E este público visado era o mesmo que, culturalmente e politicamente, estaria sintonizado ao reboliço nas artes e nos comportamentos. Entende-se então, por que este destaque não é sustentado ao se tratar da produção posterior, a dos anos 1970/90.

Não é possível uma leitura totalizadora da produção mais recente do design de móveis, pois como acontece nas áreas conexas, é dispersa, preponderantemente recodificadora e, frequentemente, nostálgica. A tão perseguida articulação de forma, função e produção dos projetos modernos viu-se tragada pela voragem do consumo de modas.

O trabalho parece construir a ideia de que, da mesma maneira como as artes realizaram aqui uma figura particular do moderno, conjugando liberdade experimental e crítica cultural, a seu modo o desenho industrial ofereceu uma produção suficientemente significativa para a mudança de hábitos e estilos no domínio dos móveis domésticos e funcionais; e mais ainda, que as vicissitudes dos projetos exemplificaram os percalços da modernização.

Entretanto, talvez seja pouco acentuar que a especificidade do móvel brasileiro, buscada nesses projetos, se deva prioritariamente à “persistência da presença do trabalho artesanal da madeira”, à valorização de alguns materiais brasileiros, o couro e a madeira, dominantes no período de afirmação, e à remissão dos objetos, especialmente as poltronas, a temas igualmente brasileiros. Isto não impediu, contudo, a excelência e a originalidade do trabalho dos moveleiros modernos: de projetos, como Unilabor, Hobjeto e Mobília Contemporânea; de estilos, como os de Joaquim Tenreiro e Sérgio Rodrigues; de soluções, como a Poltrona Leve, a Poltrona mole, a Candango, por exemplo. Estes não traduzem um móvel brasileiro, antes a surpreendente aventura da inventividade brasileira.

*Celso Favaretto é crítico de arte, professor aposentado da Faculdade de Educação da USP e autor, entre outros livros, de Tropicália: alegoria, alegria (Ateliê).

Publicado originalmente no Jornal de Resenhas, no. 02, em 01/05/1995.

Referência


Maria Cecília Loschiavo dos Santos. Móvel moderno no Brasil. São Paulo, Studio Nobel/Edusp, 198 págs.

 

Outros artigos de

AUTORES

TEMAS

MAIS AUTORES

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Francisco Fernandes Ladeira João Paulo Ayub Fonseca Chico Alencar Luiz Carlos Bresser-Pereira Luiz Werneck Vianna Marcos Aurélio da Silva Plínio de Arruda Sampaio Jr. João Feres Júnior Michael Roberts Antônio Sales Rios Neto Lincoln Secco Eugênio Trivinho Alysson Leandro Mascaro Manchetômetro Anderson Alves Esteves Manuel Domingos Neto Daniel Costa Matheus Silveira de Souza Priscila Figueiredo Milton Pinheiro Ricardo Abramovay Francisco de Oliveira Barros Júnior Daniel Brazil Jorge Luiz Souto Maior Denilson Cordeiro Mariarosaria Fabris João Carlos Loebens Everaldo de Oliveira Andrade José Raimundo Trindade Leda Maria Paulani Francisco Pereira de Farias Leonardo Boff Luciano Nascimento Gilberto Lopes Carlos Tautz João Lanari Bo Armando Boito Rubens Pinto Lyra Jean Marc Von Der Weid Ricardo Fabbrini Lorenzo Vitral Heraldo Campos Vinício Carrilho Martinez Paulo Martins Leonardo Avritzer Henry Burnett Claudio Katz José Machado Moita Neto Boaventura de Sousa Santos Eduardo Borges Fernando Nogueira da Costa Paulo Fernandes Silveira Ricardo Musse Caio Bugiato Marcos Silva Anselm Jappe Julian Rodrigues Antonio Martins Rafael R. Ioris João Sette Whitaker Ferreira Atilio A. Boron Valerio Arcary Afrânio Catani Ladislau Dowbor Renato Dagnino Ronaldo Tadeu de Souza Carla Teixeira Bruno Machado Marcus Ianoni João Adolfo Hansen Samuel Kilsztajn José Costa Júnior Juarez Guimarães Antonino Infranca Ricardo Antunes Gilberto Maringoni Luiz Eduardo Soares Gabriel Cohn Paulo Capel Narvai Luiz Marques Paulo Sérgio Pinheiro Igor Felippe Santos Roberto Bueno Alexandre de Lima Castro Tranjan Alexandre Aragão de Albuquerque Fernão Pessoa Ramos Andrew Korybko José Micaelson Lacerda Morais Kátia Gerab Baggio Thomas Piketty Chico Whitaker Bruno Fabricio Alcebino da Silva Mário Maestri Luís Fernando Vitagliano Eleonora Albano Sandra Bitencourt Jorge Branco Tarso Genro Dênis de Moraes Benicio Viero Schmidt Marcelo Módolo André Márcio Neves Soares Érico Andrade Luiz Roberto Alves Jean Pierre Chauvin Paulo Nogueira Batista Jr Bento Prado Jr. Celso Frederico Lucas Fiaschetti Estevez Daniel Afonso da Silva Luiz Renato Martins Liszt Vieira Bernardo Ricupero José Geraldo Couto Tales Ab'Sáber Flávio Aguiar Dennis Oliveira Airton Paschoa Fábio Konder Comparato José Luís Fiori João Carlos Salles Ronald Rocha Sergio Amadeu da Silveira Alexandre de Freitas Barbosa Rodrigo de Faria Osvaldo Coggiola Celso Favaretto Flávio R. Kothe Luiz Bernardo Pericás Leonardo Sacramento Michael Löwy Luis Felipe Miguel André Singer Henri Acselrad Marilia Pacheco Fiorillo Valerio Arcary Roberto Noritomi Vanderlei Tenório Slavoj Žižek Salem Nasser Eleutério F. S. Prado Ari Marcelo Solon Tadeu Valadares Annateresa Fabris Berenice Bento Gerson Almeida Ronald León Núñez Marilena Chauí Yuri Martins-Fontes Elias Jabbour Marcelo Guimarães Lima Marjorie C. Marona Eugênio Bucci Maria Rita Kehl Remy José Fontana Walnice Nogueira Galvão Otaviano Helene Vladimir Safatle Eliziário Andrade José Dirceu

NOVAS PUBLICAÇÕES

Pesquisa detalhada