Reparação histórica

Imagem: Lucas Vinícius Pontes
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por FRANCISCO FERNANDES LADEIRA*

No campo eleitoral, vencemos o fascismo

Em dezembro de 1989, os brasileiros foram às urnas, em segundo turno, para escolher o presidente da República, após duas décadas de regime militar. De um lado, estava Fernando Collor de Melo (PRN), representando os interesses das elites econômicas. De outro lado, a candidatura popular de Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

Na época, apesar de ter apenas nove anos, eu já me interessava por política. Como todo indivíduo que almeja por uma sociedade justa, sem a manutenção de determinados privilégios, fui a favor de Lula. Lembro que aquele pleito dividiu a sociedade brasileira, naquilo que costumam chamar de “polarização”. Fernando Collor liderava as pesquisas de intenção de votos (já havia vencido o primeiro turno), mas, à medida que ia chegando o dia da eleição, Lula se aproximava de seu rival. A virada não era somente possível, como também se mostrava, matematicamente, uma tendência. No entanto, às vésperas da eleição, dois fatores surgiram como “baldes de água fria” para nós da esquerda.

No programa de Fernando Collor do horário eleitoral gratuito, uma ex-namorada de Lula acusou o petista de pedir a ela para abortar uma gravidez. Já no Jornal Nacional foi exibido um (manipulado) compacto sobre o último debate entre presidenciáveis, em que foram enfatizados os piores momentos do petista e as melhores falas do candidato do PRN.

Jamais saberemos se esses dois acontecimentos foram determinantes para a vitória de Fernando Collor, ou mesmo em que medida influenciaram na perda de votos da chapa petista. O fato é que aquele pleito polarizado deixou um sentimento de decepção que acreditávamos nunca mais ser reparado. As outras quatro eleições que Lula disputou foram bastante previsíveis, os brasileiros foram às urnas praticamente já sabendo o resultado (tanto nas duas derrotas para Fernando Henrique Cardoso; quanto nas duas vitórias sobre Serra e Alckmin). Muitos na esquerda, até hoje, pensam em como o Brasil teria avançado no tocando à justiça social se Lula tivesse tomado posse em 1990.

Após os dois mandatos de Lula, vieram seis anos de Dilma Rousseff, um golpe de Estado, governo Temer e prisão de Lula (com sua consequente perda de direitos políticos). O PT até tentou lançar o ex-presidente como candidato ao Planalto, em 2018, mas acabou o substituindo por Fernando Haddad, que perdeu a eleição para Jair Bolsonaro.

Com todas as reviravoltas do cenário político, eis que, em 2022, o quase improvável aconteceu. Lula teria a oportunidade de disputar um segundo turno tão polarizado quanto aquele do longínquo 1989. Só que, neste ano, o adversário da vez, Jair Bolsonaro, possuía mais “armas” e jogava muito mais sujo do que Fernando Collor.

Se, na primeira eleição após o regime militar, Lula enfrentava as elites e a grande mídia; em 2022, o petista, além de seus opositores históricos, também teve que derrotar o fanatismo religioso, as milícias, uma Polícia Rodoviária Federal partidária, as fake news, a máquina pública e, principalmente, o fascismo.

Entretanto, no segundo turno entre Lula e Jair Bolsonaro, os eleitores poderiam comparar os mandatos presidenciais de ambos os candidatos (o que não era possível em 1989). Enquanto o governo Lula foi marcado por inclusão social, construção de universidades, valorização das artes, protagonismo do Brasil no cenário internacional e incentivo à ciência; o mandato bolsonarista foi caracterizado pelo alto custo de vida, milhões de famintos, ataques aos direitos trabalhistas, delírios ideológicos, desmatamento da Amazônia, descaso com a Educação, ódio à ciência e uma desastrosa gestão pública em relação à pandemia da Covid-19. Nunca foi tão fácil escolher um presidente.

Estes e outros fatores nos indicavam que mais quatro anos de Jair Bolsonaro seria um mergulho num tipo de obscurantismo que nos remeteria aos piores momentos da história brasileira (ou mesmo da humanidade). Não por acaso, muitos afirmavam que 2022 era a “eleição presidencial mais importante das nossas vidas”. O próprio Lula declarou: “Foi a campanha mais difícil da minha vida. Não foi uma campanha de um homem contra outro, foi uma campanha de quem ama a democracia contra quem é a favor do autoritarismo”.

Portanto, não havia outra opção: era vencer ou vencer. Felizmente, ao contrário de 1989, o resultado das urnas foi favorável. Assim que foi anunciado Lula como presidente eleito, me veio à mente aquela acirrada disputa com Collor (até mesmo o clássico jingle “Lula lá”” foi regravado este ano, dado a similaridade entre as campanhas). Pelo menos no campo eleitoral, vencemos o fascismo. Aquela emblemática derrota em 1989 teve, enfim, sua devida reparação histórica.

*Francisco Fernandes Ladeira é doutorando em geografia na Unicamp. Autor, entre outros livros, de A ideologia dos noticiários internacionais (CRV).

O site A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores. Ajude-nos a manter esta ideia.
Clique aqui e veja como

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Elias Jabbour Paulo Nogueira Batista Jr Luis Felipe Miguel Paulo Capel Narvai Chico Alencar Leda Maria Paulani Marcos Aurélio da Silva Dênis de Moraes Alexandre Aragão de Albuquerque Marilena Chauí Jean Marc Von Der Weid Renato Dagnino Luís Fernando Vitagliano Tadeu Valadares João Sette Whitaker Ferreira Francisco Fernandes Ladeira Paulo Martins Érico Andrade Celso Frederico Rubens Pinto Lyra Daniel Brazil Andrés del Río Michael Roberts Marcus Ianoni João Carlos Salles Bruno Machado Henry Burnett Flávio R. Kothe Juarez Guimarães Andrew Korybko Gilberto Lopes Sergio Amadeu da Silveira Antonino Infranca Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Heraldo Campos Rafael R. Ioris Leonardo Sacramento André Márcio Neves Soares Tales Ab'Sáber Marcelo Guimarães Lima Ronald Rocha José Costa Júnior Daniel Costa Benicio Viero Schmidt Manchetômetro José Machado Moita Neto Gilberto Maringoni Celso Favaretto Airton Paschoa Luciano Nascimento Antônio Sales Rios Neto Boaventura de Sousa Santos Alexandre de Lima Castro Tranjan Ricardo Musse Gerson Almeida Jorge Luiz Souto Maior Sandra Bitencourt João Carlos Loebens Walnice Nogueira Galvão Luiz Bernardo Pericás Francisco Pereira de Farias Mário Maestri Flávio Aguiar Ricardo Abramovay Priscila Figueiredo Ricardo Antunes Ricardo Fabbrini Igor Felippe Santos Eliziário Andrade Eduardo Borges Gabriel Cohn Luiz Carlos Bresser-Pereira Berenice Bento José Luís Fiori Lucas Fiaschetti Estevez Otaviano Helene André Singer João Paulo Ayub Fonseca Leonardo Boff José Micaelson Lacerda Morais Chico Whitaker Yuri Martins-Fontes Fernão Pessoa Ramos Mariarosaria Fabris Daniel Afonso da Silva Ladislau Dowbor Carla Teixeira Paulo Sérgio Pinheiro Anselm Jappe Luiz Werneck Vianna Bento Prado Jr. Thomas Piketty Tarso Genro Ronaldo Tadeu de Souza Remy José Fontana Leonardo Avritzer Luiz Marques Valerio Arcary João Feres Júnior Marcelo Módolo Kátia Gerab Baggio José Raimundo Trindade Eleonora Albano Armando Boito José Geraldo Couto Jean Pierre Chauvin Fernando Nogueira da Costa Lincoln Secco Michael Löwy Alysson Leandro Mascaro João Adolfo Hansen Ronald León Núñez Samuel Kilsztajn José Dirceu Carlos Tautz Maria Rita Kehl Alexandre de Freitas Barbosa Matheus Silveira de Souza Annateresa Fabris Julian Rodrigues Manuel Domingos Neto Francisco de Oliveira Barros Júnior Everaldo de Oliveira Andrade Bruno Fabricio Alcebino da Silva Valerio Arcary Atilio A. Boron Marilia Pacheco Fiorillo Osvaldo Coggiola Slavoj Žižek Bernardo Ricupero Lorenzo Vitral Michel Goulart da Silva Eleutério F. S. Prado Claudio Katz Vinício Carrilho Martinez Caio Bugiato Afrânio Catani Jorge Branco Fábio Konder Comparato Liszt Vieira Henri Acselrad Paulo Fernandes Silveira Marcos Silva Antonio Martins João Lanari Bo Luiz Eduardo Soares Plínio de Arruda Sampaio Jr. Dennis Oliveira Eugênio Bucci Luiz Roberto Alves Rodrigo de Faria Vanderlei Tenório Eugênio Trivinho Denilson Cordeiro Vladimir Safatle Milton Pinheiro Luiz Renato Martins Salem Nasser Ari Marcelo Solon Marjorie C. Marona

NOVAS PUBLICAÇÕES