Por JOÃO LANARI BO*
Prefácio do autor ao livro recém-lançado
1.
O leitor tem diante dos seus olhos uma coletânea de resenhas e artigos tratando de filmes e diretores dessa constelação que é o cinema russo. Focando na década de 1970 em diante até a era Putin, com destaque para antes e depois da queda da União Soviética, em 1991 – a coletânea é necessariamente fragmentada, organizada a partir de textos escritos para as publicações eletrônicas A Terra é Redonda e Vertentes do Cinema, além da Cinética (Funeral do Século), a quem o autor desde já agradece. Mesmo fragmentada, tem a pretensão de oferecer um painel da produção cinematográfica daquele imenso e formidável país, agora engajada num conflito de consequências imprevisíveis.
O escopo é, a um só tempo, amplo e limitado. Necessariamente as escolhas foram limitadas por opções estéticas, assim como pela possibilidade de acesso aos filmes – é evidente que a produção audiovisual russa é muito maior do que o presente recorte.
A guerra – ou as guerras, a Guerra Patriótica (como os russos referem-se à 2ª Guerra Mundial) e seus desdobramentos, Guerra Fria, Afeganistão, Ucrânia, e mesmo as Guerras Culturais no ambiente russo contemporâneo – balizam igualmente o recorte. Mas desse recorte espera-se que seja possível extrair uma percepção da vida política na Rússia, fundada na inserção que esse conjunto de filmes visava no imaginário dos espectadores.
É inevitável a eleição de marcos históricos para a organização desse painel. A revolução bolchevique e seus desdobramentos, por óbvio, seguem como tema relevante na produção contemporânea. Aí se incluem o período de Brejnev – definido como “estagnação” por Mikhail Gorbatchov – a perestroika e o fim de uma era, chegando ao que se configura como pós-comunismo, de Boris Iéltsin a Vladimir Putin.
O conjunto tem exceções – a principal, naturalmente, são as produções originárias de um país ex-membro da órbita soviética, a Ucrânia. Por exemplo, a trajetória do ucraniano Aleksandr Dovjenko, um dos grandes realizadores do período soviético, é examinada com maior profundidade – pelo valor de sua obra e dificuldades do diretor com o poder em Moscou.
2.
A seção “Cinema em Zonas de Conflito” é dedicada a filmes contemporâneos ucranianos.
A escrita aqui é obrigada a conviver com um (acelerado) processo em curso. País invadido em fevereiro de 2022 pela Rússia de Vladimir Putin, a Ucrânia resiste. Como os cineastas, russos e ucranianos, têm reagido a esse turbilhão geopolítico? O cinema é uma janela, a um tempo opaca e transparente, como sabemos. O desafio de articular texto e contexto numa conjuntura como essa é incontornável.
Hoje, com a invasão em fevereiro de 2022, a representação da guerra tornou-se uma arena de combate entre as percepções russa e ucraniana do conflito. Se na Rússia os cineastas estão divididos quanto a apoiar ou não a guerra com o país vizinho, na Ucrânia a atividade cinematográfica integrou-se à resistência contra o invasor.
Império ou nação? Os historiadores da epopeia russa se debruçam sobre esse impasse: em 1991, cai o império soviético, a experiência mais ousada, para o bem e para o mal, de governabilidade comunista, em um território ainda maior que o império tsarista, rodeado por repúblicas soviéticas vassalas e subservientes. O cinema, espaço de representação dos sujeitos da história – a população, o Estado –, é um palco privilegiado, onde se expõem as negociações em torno dessa procura pela identidade nacional moderna.
Nesse mundo de vertigem digital em que vivemos, o cinema segue, cada vez mais, como uma janela para a história – ou melhor, para o arco da história, esse emaranhado de processos das mais variadas configurações, que aparece e reaparece diante dos nossos sentidos. A história não é, portanto, um processo contínuo e homogêneo. Investigar essas imagens, rever esse emaranhado, é uma tarefa que cabe à arte e à cultura, dizia Walter Benjamin.
*João Lanari Bo é professor de cinema da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (UnB). Autor, entre outros livros, de Cinema para russos, cinema para soviéticos (Bazar do Tempo) [https://amzn.to/45rHa9F]
Referência

João Lanari Bo. Rússia, Ucrânia e o cinema em tempos de guerra. Brasília, Editora Confraria do Vento, 2025. [https://abrir.link/PbIOk]
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