Sessão especial de justiça

El Lissitzky, Wendingen vol. 4, no. 11, 1921
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por ARNALDO SAMPAIO DE MORAES GODOY*

Comentário sobre o filme dirigido por Costa Gravas

O “estado de exceção” é período de anormalidade constitucional que se pretende recorrentemente regrar, limitar e nomear, com objetivos de normalização, em termos constitucionais e, no limite, também com balizas legais e regulamentares. Essa anormalidade na conjuntura de uma pretensa normalidade é sua característica mais marcante. Tem-se um permanente problema para a teoria do direito público.

Há um dilema regulamentador, uma aporia, que acompanha a conceituação e a prática do “estado de exceção”, que de algum modo encontra-se confinado a fronteiras que supostamente abstrairiam a vontade política da vontade normativa, isto é, a ação política propriamente dita razão normativa. Além do que, como a experiência histórica tem apontado, o “estado de exceção” deslumbra aqueles que o decretam, e que o pretendem definitivo. As experiências da Alemanha nazista, do franquismo, do salazarismo, do fascismo, da França de Vichy e do Estado Novo, para nomear apenas alguns, são exemplos emblemáticos dessa assertiva.

Historicamente, o papel do Poder Judiciário no “estado de exceção” é relegado à mera repetição de fórmulas supostamente legais. O funcionamento da justiça (sic) na Alemanha Nazista, e a atuação de um juiz celerado, Roland Freisler, ilustram bem a assertiva. O tema é recorrentemente tratado no cinema. Costa-Gravas, cineasta grego naturalizado francês, enfrentou a questão em vários filmes, a exemplo de Z, de Estado de sítio, bem como de Sessão especial de justiça.

Este último, rodado em 1975, é especialmente intrigante, justamente porque revela a concepção de um sistema judiciário que em nome de uma imaginária razão de estado deixa de lado os princípios mais elementares da tradição jurídica ocidental. Refiro-me, mais objetivamente, ao fato de que o tribunal retratado no filme aplicou uma lei retroativa em matéria penal.

Os fatos teriam ocorrido durante a República de Vichy. Trata-se do Estado Francês, de 1940 a 1942, liderado pelo Marechal Philippe Pétain. Montou-se um modelo de colaboração com os invasores da Alemanha nazista, de triste memória. No sentido oposto, a Resistência Francesa, que inclusive contou com importantíssima participação popular. É um momento marcado por intenso heroísmo. Em Vichy (uma conhecida instância hidromineral), no entanto, governava-se de acordo com as determinações de Berlim. É nesse ambiente que Costa Gravas ambientou Sessão especial de justiça.

As cenas se desdobram em 1941. Um oficial alemão fora assassinado em Paris, numa estação do metrô, por combatentes da Resistência. Os insurretos eram jovens. Em represália, o governo do Reich exigiu que as autoridades locais identificassem os agressores, punindo-os com severidade. Demandaram a pena de morte. Havia uma ameaça contida na exigência, no sentido de que franceses seriam executados, como represália, caso não se alcançasse suspeitos, para execução sumária. Ao governo francês deu-se um prazo fatal de menos de uma semana. Fixou-se inclusive o número de execuções: deveria haver seis mortes.

O alto comando do governo francês precisa, primeiramente, redigir e publicar uma lei, com o objetivo de criar um tribunal de sessão, prescrevendo, inclusive, penas retroativas. Há um conflito entre o ministro da justiça e o ministro do interior. Aquele se julgava competente para tratar do assunto. Recusava a concepção dessa lei, sobremodo porque teria defendido tese acadêmica argumentando pela impossibilidade de aplicação retroativa de leis. Pressionado, cedeu ao Marechal Pétain (que de resto não aparece no filme). Convencido de que uma razão de estado justificava a medida, reelaborou sua concepção do problema, que passou a ser um falso problema. Passou a defender esse tribunal. Seduzido pelo poder, rearranjou suas convicções jurídicas. É o velho tema dos intelectuais e do poder.

No próximo passo, após redigida a lei, o ministro buscou membros da magistratura e do ministério público para o início do funcionamento do tribunal. Costa-Gravas ilustra o tema do fascínio que o poder exerce sobre a burocracia tradicional, especialmente em épocas de exceção. Houve algumas recusas. Alguns magistrados e advogados aceitam os novos papeis, sempre movidos por interesses pessoais, que denunciam uma total distância para com parâmetros de decência. Sabem que é um tribunal forjado para executar inocentes.

A busca por supostos réus é trágica. Não se tinha a mínima noção de quem cometera o assassinato. Levam para o tribunal opositores que respondiam por delitos mínimos. Escolhem as vítimas mediante um odioso modelo de triagem. Havia uma predileção no indiciamento de judeus. A cúpula do governo fez com que os membros desse tribunal se vissem como soldados, no campo de batalha. A condenação, nessa lógica, era um esforço de guerra, doloroso, porém necessário. Entre nós, no Brasil, conhecemos um infame tribunal que funcionou na primeira fase do governo de Getúlio Vargas, e que contou, entre seus julgadores, com políticos da expressão de Francisco Campos. Esse tribunal organizou-se no contexto de um decreto assinado em 28 de março de 1931.

Em A sessão de justiça as sessões do julgamento se processavam a huis clos (portas fechadas). A expressão pela qual se denominam essas sessões (huis clos) é inclusive título de uma peça de Jean-Paul Sartre, escrita em 1944; refere-se a toda fórmula judicial que não passa de uma paródia. Tudo às escondidas. Havia réus que respondiam pela simples distribuição de panfletos, acusações que eram desprovidas de qualquer tipo de prova.

Costa-Gravas fotografou a montagem de uma guilhotina, o instrumento de morte que seria utilizado. Há nessa sequência uma referência muito nítida a procedimento historiográfico de retrocesso. O símbolo de uma resistência gloriosa, a guilhotina, que remete o intérprete à experiência dos jacobinos, torna-se também o símbolo de uma aquiescência reacionária infame, que remete o espectador às incongruências do tempo histórico.

Sessão especial de justiça é um filme atemporal, colocando problemas e dilemas civilizacionais que transcendem o tempo e o espaço geográfico do enredo. A República de Vichy é um momento histórico emblemático, no sentido de que permite que se denuncie a violência de regimes subservientes a opressores, e que justificam a servilidade no velho mantra da razão de estado.

*Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo-USP.

Referência


Sessão especial de justiça (Section spéciale)

França, 1975, 118 minutos.

Direção: Costa-Gravas.

Elenco: Louis Seigner, Roland Bertin, Ivo Garrani, Pierre Doux.

 

Outros artigos de

AUTORES

TEMAS

MAIS AUTORES

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Henri Acselrad José Micaelson Lacerda Morais Alexandre de Freitas Barbosa Eliziário Andrade Marilena Chauí Luiz Marques José Geraldo Couto Daniel Brazil Tarso Genro Thomas Piketty João Carlos Loebens Afrânio Catani Jorge Branco Rubens Pinto Lyra Mariarosaria Fabris Lucas Fiaschetti Estevez João Lanari Bo Valerio Arcary Gilberto Maringoni Leonardo Avritzer Francisco Fernandes Ladeira Rafael R. Ioris Daniel Costa José Luís Fiori Fernão Pessoa Ramos Gabriel Cohn Valerio Arcary João Feres Júnior Osvaldo Coggiola Andrew Korybko Caio Bugiato Heraldo Campos Ricardo Musse Walnice Nogueira Galvão Remy José Fontana Airton Paschoa Bernardo Ricupero Chico Whitaker Anselm Jappe Ronald León Núñez Sergio Amadeu da Silveira Alexandre Aragão de Albuquerque Marcos Silva Eugênio Bucci Marcus Ianoni Priscila Figueiredo Bento Prado Jr. Érico Andrade Manuel Domingos Neto Sandra Bitencourt Milton Pinheiro Otaviano Helene Elias Jabbour Marcelo Guimarães Lima Matheus Silveira de Souza José Raimundo Trindade Gerson Almeida Salem Nasser Roberto Bueno Slavoj Žižek Tadeu Valadares João Adolfo Hansen Henry Burnett Michael Löwy Berenice Bento Samuel Kilsztajn Leonardo Sacramento André Singer Luciano Nascimento Luis Felipe Miguel Eleutério F. S. Prado Carlos Tautz Carla Teixeira Paulo Nogueira Batista Jr Luiz Eduardo Soares Chico Alencar Boaventura de Sousa Santos Denilson Cordeiro Luiz Bernardo Pericás Bruno Machado Marcelo Módolo João Sette Whitaker Ferreira Luiz Carlos Bresser-Pereira Vinício Carrilho Martinez Paulo Martins Ronaldo Tadeu de Souza Yuri Martins-Fontes Eduardo Borges Vladimir Safatle Celso Favaretto Marilia Pacheco Fiorillo Paulo Sérgio Pinheiro João Paulo Ayub Fonseca Marjorie C. Marona Luiz Roberto Alves Flávio R. Kothe Ari Marcelo Solon Everaldo de Oliveira Andrade Jean Pierre Chauvin Roberto Noritomi Eleonora Albano Antônio Sales Rios Neto Dênis de Moraes Vanderlei Tenório Michael Roberts Daniel Afonso da Silva Ricardo Abramovay José Machado Moita Neto Annateresa Fabris Lincoln Secco Gilberto Lopes Dennis Oliveira Plínio de Arruda Sampaio Jr. Marcos Aurélio da Silva Armando Boito Francisco de Oliveira Barros Júnior João Carlos Salles Rodrigo de Faria Ricardo Fabbrini Francisco Pereira de Farias Celso Frederico Leonardo Boff José Dirceu Alexandre de Lima Castro Tranjan André Márcio Neves Soares Eugênio Trivinho Ladislau Dowbor Maria Rita Kehl Claudio Katz Lorenzo Vitral Juarez Guimarães Liszt Vieira Fábio Konder Comparato Julian Rodrigues Renato Dagnino Kátia Gerab Baggio Luiz Werneck Vianna Bruno Fabricio Alcebino da Silva Antonio Martins Flávio Aguiar Jean Marc Von Der Weid Luiz Renato Martins Luís Fernando Vitagliano José Costa Júnior Benicio Viero Schmidt Paulo Fernandes Silveira Igor Felippe Santos Tales Ab'Sáber Fernando Nogueira da Costa Alysson Leandro Mascaro Paulo Capel Narvai Mário Maestri Manchetômetro Ricardo Antunes Anderson Alves Esteves Atilio A. Boron Jorge Luiz Souto Maior Antonino Infranca Leda Maria Paulani Ronald Rocha

NOVAS PUBLICAÇÕES

Pesquisa detalhada