Um crime delicado

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Por CILAINE ALVES CUNHA*

Comentários sobre o livro de Sérgio Sant’Anna

Máquina fúnebre de artifícios

Um dos princípios básicos de Um crime delicado, de Sérgio Sant’Anna, reside no esforço do narrador de primeira pessoa, Antonio Martins, para controlar e conduzir a interpretação da história, negar a violência sexual que pode ter cometido contra a heroína e assegurar que o sexo tenha sido consensual. Martins minimiza os fortes indícios levantados pela acusação quando ressalta que entre a “verdadeira realidade” e o sujeito medeia a simultaneidade caótica das sensações, pensamentos e emoções. Para instalar a indeterminação dessa sua experiência, o protagonista alega que paixões, desejos, fantasias e interesses perspectivam radicalmente a verdade inscrita na recuperação e representação da memória. Com esses pressupostos, realiza, à maneira de dom Casmurro,[i] uma espécie de autodefesa e produz sua própria versão do ocorrido.

Na disposição da história pelo enredo, apenas quase ao final, na segunda das três partes do romance precipita-se a resolução do conflito e relatam-se os fatos que culminaram no processo de acusação contra ele, com a representação desse processo ocupando a curta e rápida seção final. A história amorosa propriamente resume-se a dois contatos mais íntimos entre ele e Inês, a heroína que possui uma hipermetafórica deficiência em uma de suas pernas e, na ocasião, posa como modelo para o pintor italiano, Vitório Brancatti. Realizadas no apartamento da moça, a primeira visita do herói a ela ocorre no início do livro, e a segunda ao meio da também curta e intermediária seção.

Num estratagema que guarda analogias com o enredo daquele romance de Machado de Assis[ii], a primeira parte ocupa espaço maior do livro. Nela o narrador apresenta os personagens centrais, arma o conflito amoroso, relata seus outros casos sexuais paralelos a este, enquanto discute as condições materiais e os valores éticos e estéticos em que a arte de seu tempo se produz. Nessa inicial e maior seção, o discurso em defesa de si e a acusação do herói contra os demais personagens envolvidos no caso policial concretizam-se antes mesmo que o leitor possa se assegurar das circunstâncias que envolveram a denúncia de estupro.

Num esforço para atestar sua sinceridade e conquistar a cumplicidade do leitor, o herói assume francamente suas paixões, fraquezas e vícios como, por exemplo, certa tendência ao alcoolismo e a amnésia que diz sofrer após alguma embriaguez, como no dia da primeira visita a Inês. Esse encontro emerge aos solavancos, inicialmente por meio da lembrança das sensações experimentadas durante sua presença na casa dela, posteriormente fixado mediante uma frágil coerência lógica, como fragmentos de memória.

A estilização, já na primeira página, do arquitradicional conflito amoroso, o verossímil da embriaguez e a convicção de que a vida resulta de uma confusão entre ficção e realidade contaminam o relato da segunda visita, quando se representa efetivamente o ato que parece estupro. Nesse momento, o leitor pode já ter se deixado convencer pela história do suposto amor à primeira vista, pela sedução e relativização ética do narrador a ponto de, sem conhecer as evidências posteriores e diante do relato rarefeito da primeira visita, se deixar conduzir, durante a leitura do segundo episódio, pelos sentidos com que o narrador motivou anteriormente suas ações desse momento.

Essa verossimilhança ébria, coroada de lapsos, atos falhos, projeções e denegações rarefazem o sentido não apenas desse episódio, mas de boa parte da história de amor. Para rastrear sua memória, o narrador comenta seus pregressos pensamentos e imagens difusas sobre ações e gestos de Inês e sobre a decoração de sua casa. Além disso, seu relato amoroso segue uma linha entrecortada, ao sabor das várias digressões sobre a própria forma de narrar e sobre a cena artística carioca de fins do século XX, em geral presas a algum entrevero com Inês. O álibi da paixão amorosa arrebatadora, da bebedeira e da apresentação ambígua e contraditória dos fatos favorece também que Martins enfraqueça o peso de sua responsabilidade por seus próprios atos.

Num estratagema voltado para enfraquecer e relativizar os fatores envolvidos na acusação do estupro, em diversos momentos a linguagem do discurso amoroso ganha o estilo de uma experiência interior em sofrimento, acentuadamente neurótica, que rói, remói e rumina os mais insignificantes detalhes, as várias e contraditórias interpretações sobre uma mesma ação ou reação de Inês. Em uma dessas passagens, o narrador comenta uma carta-convite que ela lhe enviou para o vernissage Os Divergentes. Na leitura da carta pelo herói, o excessivo peso conferido a um ponto de exclamação, parênteses, espaços entrelinhas, subentendidos e ao perfume impregnado no papel etc. imita uma alucinação neurótica. Nesse dó de peito que tudo relativiza, a representação do episódio central recorre à minimização dos gestos que, a depender do leitor, parecem insignificantes, técnica assim reconhecida, em outra passagem do romance, na definição da escrita como “realce de certas sensações e percepções, fazendo com que outras fiquem esmaecidas”[iii].

Diante dessas condições narrativas, a decisão sobre a culpa ou a inocência do narrador-personagem depende do maior ou menor peso que se confere a sua atração sexual por mulheres que portam alguma deficiência física; da desconsideração ou legitimidade que se destine à prova da acusação de que Inês sofria de constantes ataques epiléticos e desmaios; ou da contra-alegação do narrador de que, no momento exato do ato sexual, não havia como comprovar se ela desmaiou ou se, cúmplice de Brancatti, realizou uma encenação para criar as condições para o ato sexual e, assim, conquistar a sua benevolência em um artigo de sua autoria sobre o quadro de Brancatti; da maior ou menor cumplicidade do leitor com a alegação de Martins de que seu amor pela heroína seria abnegado o suficiente para salvá-la do antagonista e pintor, o provável algoz da moça; com o cego e unilateral retrato que o herói traça da heroína, supostamente frágil, passiva e inapreensível. Há, enfim, ao longo do romance, um acúmulo de motivos que apontam para a impossibilidade de afirmar ou negar a ocorrência do crime.

O afrouxamento do sentido do episódio central indica que cada uma dessas possibilidades dependerá da instância do leitor que conta apenas com a total afirmação de inocência pelo narrador. Um rápido contraponto a seu ponto de vista comparece apenas ao final, em curtos comentários do narrador sobre a fala da acusação e artigos de jornal sobre o caso. Ao longo da historia, o leitor terá de decidir “se está diante de um esperto manipulador de opiniões, um louco com manias conspiratórias ou um ingênuo”[iv].

Como é própria da prosa de ficção que elege por estilo a permanente contradição e a potenciação da ambiguidade, a suspensão da resolução do conflito permite ao autor real, entre outras coisas, analisar a natureza da consciência do narrador-autor, de seu modo e estilo de narrar, de interpretar a história e avaliar o cenário artístico brasileiro contemporâneo.

Antônio Martins manifesta orgulho quando se apresenta, uma vez ao leitor e outra à heroína, como um crítico de teatro profissional, com esse grifo e essa ênfase pomposa dele próprio. Se autoavaliando como um intelectual anacrônico de 50 anos, o alto valor que dispensa ao exercício de seu juízo crítico traduz-se, em suas crônicas de jornal, em hostilidades e impostação de superioridade sobre artistas cujas obras descreve. Com essa supervalorização de sua atividade profissional, Martins inverte pesos e medidas ao formular a cômica suposição de que Inês e Brancatti, ao elegerem o crítico de teatro por crítico da arte plástica, não saberiam destinar valor à especialização, vale dizer, à divisão do trabalho intelectual e à compartimentalização do saber em áreas estanques.

Martins instrumentaliza sua atividade profissional como estratégia de conquista amorosa e das relações de poder que trava com as mulheres. Em meio a elas, procura ocupar posição de domínio, alimentando preferência pelas submissas, mas impotência diante das que assumem altivo sentimento de igualdade. A sinceridade de suas reiteradas afirmações de amor pela heroína pode ser mais bem avaliada se o leitor se lembrar de que, durante essa paixão supostamente avassaladora, ele mantém três outros casos contemporâneos de sua história com Inês. Após o ato sexual com esta, o narrador experimenta a saciação de sua vontade de potência, registrada com essa maiúscula: “Que grande sensação de Poder, quando emolduro aqui não apenas o corpo de uma mulher dentro de um cenário crepuscular, mas a própria emoção de ter esse corpo nos braços”[v].

Martins tampouco se intimida em responsabilizá-las por algum desacerto sentimental ou sexual. Como diz não se lembrar se foi ele quem, na primeira visita, despiu Inês supostamente adormecida (ou desmaiada?), nem se se apossou de seu corpo nu naquelas condições, aventa outra possibilidade infame ao dizer que, se nudez houve, ela poderia ter resultado de um descuido da moça para se despir devidamente por trás do biombo de seu quarto-sala.

Mas no relato de outra cena sexual com uma segunda parceira, a desinibida Maria Luísa toma a iniciativa de seduzi-lo. Como não encontra a ereção, o herói procura se justificar por meio de uma fórmula que, a depender do leitor, poderá ser avaliada como afirmação de uma particularidade “natural”: “a mulher sempre tem a ver com o fracasso de um homem”.

Posta na boca de uma amiga que o acolhe após a noite de amor malsucedida, o adágio vil permite-lhe, mais uma vez, se desresponsabilizar por suas próprias prenoções. Na estratégia argumentativa mais decisiva para persuadir juiz e jurado de sua inocência, alega que pouco importa se Inês estava inconsciente no momento do ato sexual. Importaria nessa ótica que a suposta opressão de Brancatti teria ocasionado “convulsões internas” em Inês que, assim, não exercia na ocasião o pleno uso de suas faculdades mentais.

Inconsciente ou semiconscientemente, ao lhe abrir as portas do apartamento ela já teria manifestado “das profundezas de sua consciência” vontade de se entregar a ele. Afinal, “não seria o verdadeiro amor o encontro de dois inconscientes?”[vi]. A formulação desse argumento reúne um misto de bordão machista, pseudorromântico e pseudopsicanalítico, numa previsão de um leitor que, partilhando de sua ótica, poderia morder a isca e concordar com esse sadismo.

Martins insinua que o exercício profissional e jornalístico do crítico teatral, embora não produza obras, “vai apertando o cerco em torno daqueles que o fazem, espremendo-os, para que eles exijam de si sempre mais e mais, na perseguição daquela obra imaginária, mítica, impossível, do qual o crítico seria coautor”[vii]. Seu culto do racionalismo apresenta-se, à maneira de um Rameau, como uma razão cínica que confunde sua “iluminação crítica” com uma obra de arte. Essas convicções motivam sua decisão de que ele também pode se lançar no campo artístico e compor Um crime delicado, um misto de crítica da arte, romance sentimental e policial e, ao fim, satírico.

Ainda que não seja tão estúpido, já que domina epidermicamente os princípios estéticos de diversos movimentos artísticos e obras singulares, Martins se comporta como um Floc bem-sucedido, o tolo crítico de literatura de O Globo, de Recordações de Isaías Caminha, de Lima Barreto, que se toma por sábio. Sérgio Sant’Anna põe em cena um autor ficcional e medalhão que faz desse traço de caráter um dos eixos centrais do estilo de sua narração joco-séria.

Ao compor o herói com esse perfil e a narrativa com essa ordem de procedimentos, o autor real atualiza, de modo bem inventivo, a tradição de narradores irônicos que, em Cervantes, Swift, Laurence Stern, Stendhal, Flaubert, Machado de Assis, entre tantos, estabelecem um embate crítico do autor com sua criatura, desta consigo própria e com sua própria forma de narrar.

Uma operação de reversão da falsa ingenuidade e sinceridade do narrador de Um crime delicado reverbera a reflexão, em boa parte cênica, plástica e visual, sobre a própria atividade crítica e artística do narrador, interligada a seus valores éticos e estéticos e à sua prática amorosa. Suas experiências particularizam e ilustram o diagnóstico de Sérgio Sant’Anna sobre certa tendência da arte contemporânea.

Para armar seu enredo, ele aciona técnicas da écfrase nas passagens que ficcionalizam comentários de obras de arte, com larga função na história central. As digressões do narrador sobre o assunto descrevem com maior atenção três obras da exposição Os Divergentes: duas do pintor Nílton, amigo de Inês, e outra de Brancatti, A modelo, quadro por ela protagonizado. Além dessas obras, Martins recupera de memória artigos de jornal, de sua autoria, sobre peças de teatro encenadas contemporaneamente à vivência de sua história com a heroína. Feito isso, Sant’Anna monta um jogo de espelhos entre literatura, pintura e peças teatrais, interligando estas àquela.

Analogamente a As meninas, de Velázquez, em que a tela visível ao fundo com o retrato do rei Felipe IV e sua esposa ilumina o que é dado no conjunto do quadro[viii], as paráfrases de suas crônicas teatrais e a descrição dos quadros são dispositivos fundamentais para que o romance realize um ajuste irônico de contas consigo mesmo e um balanço do autor real sobre aspectos da cena artística contemporânea. Nesse jogo de espelhos, as características e a crítica negativa de Martins sobre essas obras de arte espelham negativamente o próprio estilo de sua narração.

Vitório Brancatti assume na história a função de uma espécie de eu ideal do qual o autor ficcional absorve princípios artísticos e certos procedimentos picturais, mas para quem transfere suas próprias questões, fragilidades morais e artísticas que não admite para si, nem para o leitor. Esse estratagema leva o herói a teatralizar sua própria autocrítica, mas dessa forma escamoteada. Entre os traços de Brancatti que repercutem em Martins, Inês torna-se objeto de contemplação, inspiração e representação de ambos.

A relação que estabelecem com ela é mediada pela convenção da masculinidade como favor e proteção. À crença de Martins de que deve salvar sua Dulcineia corresponde o gesto do pintor de bancar o aluguel da habitação dela. Entre o herói e Inês “interpunha-se a figura daquele outro, antecipando-se a mim no papel de protetor”.[ix] A prescrição cega da ideia de arte e de feminino com que apreendem e delimitam o perfil da heroína, à revelia dela, torna-se fundamental para que o romance trace um fio tênue entre “realidade” e arte.

Durante a exposição Os Divergentes, Martins descobre que o apartamento de Inês, que anteriormente visitou, encontra-se totalmente representado em A modelo, com a heroína em primeiro plano. Na narrativa e na pintura, seus cômodos não se separam por portas e paredes, à exceção do banheiro e da cozinha, com o restante delimitado por um biombo que demarca quarto e sala. Nesse momento, a coincidência entre o cenário da casa e o do quadro gera a primeira confusão no romance entre arte e vida. Esse jogo de espelhos cria uma superimagem da pintura de Brancatti duplicada e narrativizada na história de Antônio Martins.

O conjunto da sala com o quadro representando a heroína, o biombo e, em sua lateral, o divã e o cavalete, com a tela em branco e uma muleta nele depositadas, são realidade e artifício, objetos da decoração da casa de Inês, cenário da tela de Brancatti e de uma parcela da história de Martins. O maledicente narrador insinua que o apartamento poderia funcionar também como um quarto de garota de programa, ainda que afirme que essa acusação nada teria a ver com padrões morais burgueses e forenses.

O reconhecimento da similaridade entre o cenário do quadro e o apartamento serve a Martins de álibi para sustentar que as impressões sobre o que realmente poderia ter acontecido em sua primeira visita resultaram de uma sugestão subliminar da pintura, dos efeitos da contemplação do quadro em sua mente. Nessa confusão entre pintura e crônica do cotidiano, A modelo poderia ter despertado suas fantasias sexuais enquanto ele lá estivera, mas sem que então se desse conta de sua presença no local. Naquela primeira visita, Inês talvez não tivesse tirado o quimono por trás do biombo, tal como Martins antes imaginara, se a representação da calcinha e o sutiã tiver tido o poder de fertilizar suas fantasias sexuais.

Na segunda visita a ela, ele constata que os móveis do apartamento foram rearranjados por Brancatti para, interpreta o narrador, criar o efeito de uma confortável sala de chá e de aconchego. Martins experimenta então a desconfiança/acusação de que a nova decoração do ambiente teria almejado deixá-lo à vontade para que, com isso, ele mordesse a isca de sedução lançada por Inês e redigisse um artigo favorável ao quadro. Nesse momento, ele apreende o apartamento como uma instalação, acentuando ainda mais a indistinção entre arte e vida. Analogamente, se não conseguiu manter a ereção ao transar com Maria Luísa, isso teria ocorrido por ele não ter encontrado, no desempenho sexual da moça, o “pecado e os véus de proibições e convenções” a que se acostumara com a leitura das peças de Nelson Rodrigues.

No andamento temporal da narrativa, Martins encena uma espécie diferente de d. Quixote que, inicialmente “vítima” dos efeitos visuais de A modelo, posteriormente, numa segunda leitura do quadro já reinstalado na casa de Inês, teria tomado consciência de sua anterior inocência. Nessa sutil e mutuamente negativa diferença entre os dois tipos de consciência que contemplaram o quadro, a inicialmente ingênua, mas posteriormente “iluminada” e não menos alienada, observa-se que os efeitos da pintura sobre Um crime delicado são de outra ordem.

Nesse sentido, o autorretrato de Nílton, exposto durante Os Divergentes, representa cortes em sua face da qual jorra ineptamente um líquido vermelho, coagulado na mancha de mesma cor de outro quadro desse mesmo pintor, disposto ao lado do primeiro. Uma vez que não se trata de obras reais, mas de pinturas que se dão a ver filtradas pela percepção do narrador, essas três obras – A modelo, a instalação no apartamento e o autorretrato de Nílton – ressoam na forma de Um crime delicado. Na relação do estilo narrativo de Martins com as artes plásticas, tudo se passa como se os tracejados dessas obras se imprimissem em sua consciência e posteriormente, durante a composição de Um crime delicado, jorrassem no estilo de sua narração.

Do mesmo modo que o espectador do quadro deve fixar seus olhos inicialmente na modelo, posta em primeiro plano, assim também o leitor, já na primeira página de Um crime delicado, deve deter sua atenção em Inês, objeto das constantes preocupações do narrador ao longo da história. Num técnica de romances sentimentais, em Um crime delicado Inês surge, como em A modelo e ainda de acordo com a crítica do narrador a esse quadro, em dimensões maiores e desproporcionais à importância que adquire ao longo da história. Jogando inicialmente a isca de que o romance tratará de um conflito amoroso e, imediatamente, suspendendo sua resolução, Martins poderá, à maneira de Bento Santiago, prender o interesse do leitor e, enquanto isso, se defender previamente das acusações finais.

Em outra análise de Martins sobre A modelo, o conjunto na posição lateral do quadro, constituído por uma muleta e uma tela em branco sobre um cavalete poderia ser lido como uma escultura, um ready-made assim montado, diz o narrador, para um contraponto autodivergente com o restante do quadro, com intenções autoparódicas e numa abstração que permitiria ao pintor se resguardar de possíveis objeções contra o traço mimético e representativo do restante central na tela maior. A despeito disso, continua Martins, sendo Inês de fato manca, a muleta poderia ser também interpretada como um gesto ao acaso da heroína de depositá-la no cavalete e, com isso, perde seu poder de abstração para reforçar a representação naturalista do restante da obra.

Nesse caso, o cavalete, a muleta e a tela em branco tornam-se resultado de um enlatamento de Duchamp, de um “acaso preparado” que descontextualiza o jogo casual da seleção dos objetos de uso pelo artista francês. Por fim, numa última possibilidade, a “escultura” ao fundo poderia também ser lida como um gesto irônico de Brancatti, intencionalmente kitsch para assim a criticar a conversão de Duchamp, pelos imitadores contemporâneos, em “monumento ao lugar-comum”[x], vale dizer, a degradação de “seu gesto único em aborrecido rito público”[xi].

Também o autor ficcional deglute e reúne ecleticamente, conforme se verá, diferentes estilos e pressupostos artísticos antagônicos[xii], numa fusão entre arte da representação com uma pura abstração nada conceitual, mas sensorial e afetiva, fusão esta que Sérgio Sant’Anna torna kitsch, banal e ordinária. Ao envolver seu conflito amoroso com a leitura da pintura e da “instalação” de Brancatti, Martins pode ter transformado-as, num hiper-realismo eclético, em expressão de sua experiência pessoal.

Assim, na segunda visita a Inês, ele se envaidece com a suspeita, confirmada pela moça, de que Brancatti adquirira a muleta que ela nem usava, quando a acusa, assim como o apartamento, de resultar de um jogo de probabilidades estabelecido de acordo com os caprichos do pintor. Mas também Martins, sem maiores evidências, supõe que ao tocar novamente Chet Barker no aparelho de som, como fez na primeira visita, ela teria pretendido reviver a primeira noite em que teria adormecido. Para ele, durante o ato sexual, o tremor da heroína semidesperta do “desmaio”, considerado por ele como teatro de mau gosto, mas inerente a epiléticos como ela, poderia também atestar o estado de excitação com as carícias dele.

Nessa cena de maior poder alegórico do romance, se é verossímil que o rearranjo do apartamento de Inês resultou de uma produção de Brancatti na forma de uma instalação para seduzir Martins, o inverso também o é. O herói pode ter reorganizado interiormente a decoração do apartamento como uma instalação, de tal forma que as mudanças nele observadas coincidam com a ficção de seu desejo. O narrador-autor pode ter apreendido os gestos da moça e o rearranjo dos móveis na sala e produzido imaginariamente esse quadro em consonância com suas afecções e desejos que projeta Inês. Pode enfim ter montado uma ficção dessa “realidade” como matéria de seu processo de defesa e de Um crime delicado, como estratégia de enxadrista de “racionalidade extremada” seguindo a direção contrária de vanguardas estéticas que propuseram uma concepção de arte fora do controle total da razão.

Nesse suposto delírio estético, o herói que teria sido “vítima” dos efeitos da arte em seu inconsciente, comicamente se autoconstitui, na segunda visita, como sujeito e artista central da obra que analisa. Num possível surto de megalomania, o “divergente” Martins transforma-se interativamente em personagem de seu duplo e figura essa mania de grandeza como revolta da criatura contra seu criador, como diz.

Se nada pode ser certificado, também é verossímil dizer que ele delimitou sua rivalidade com Brancatti e sua relação amorosa com Inês em matéria da “instalação” e esta em fato real. Se assim for, novamente se deixou consumir e fisgar-se por essa ilusão de realidade que inscreve na pintura-instalação, convertendo esse “Duchamp de merda”, como diz sobre A modelo, em expressão de sua vida interior, amorosa e profissional, em um espelho hiper-realista dessas suas vivências. Numa segunda operação, converte essa sua contrafacção da contrafacção em romance que oferece ao leitor como testemunho de sua inocência nada crítica.

Tendo em vista esse quiasma oblíquo, o narrador-personagem aliena-se nos pressupostos estéticos da tradição já petrificada por seus imitadores. Como se observa nos narradores de primeira pessoa de Machado de Assis, a interposição de uma distância temporal entre a consciência que viveu a ação e aquele que narra posteriormente pode proporcionar o estranhamento do antigo eu ingênuo e uma reflexão sobre sua pretérita alienação. Brás Cubas é um canalha sedutor que reconhece sua cumplicidade com o sistema escravocrata e seu ponto de vista preso à defesa de suas paixões e interesses, transforma sua canalhice em móvel de sua ação, mas introduz, enquanto isso, a contradição em meio a ela.

Mas muito ironicamente, Sérgio Sant’Anna eliminou a distância entre a consciência narrada e a narrante, impede-a de se estranhar criticamente, enquanto potencializa ainda mais o grau de abertura e ambiguidade de sua narrativa satírica. Em Martins, o hiato temporal entre a ação pretérita e o presente da narração não implica divergência do narrador consigo mesmo. No gesto de se autoconstituir personagem de Brancatti e de se revoltar contra seu suposto criador ele pode ter cometido um crime estético: sua esteticização da vida não vivificou seu espírito, tampouco sua experiência, mas alcançou apenas praticar um jogo de xadrez profissional e comercial entre ele e Brancatti.

Martins define a luta travada no tribunal como um “processo estético”, melhor traduzido por ele no signo do “jogo de xadrez” de um crítico “criminoso, como louco, em sua racionalidade extremada”[xiii], atributos esses que, segundo ele, caracterizam também o pintor. Nessa citação de natureza inversa ao jogo de xadrez por Duchamp, A modelo e Um crime delicado ganham fins distintos daquele de quem absorvem a metáfora. A publicidade midiática produzida com o processo, as relações da produção e circulação da obra de arte com o mercado jornalístico e vice-versa levou posteriormente Brancatti a conquistar prestígio nacional e internacional, quando Martins efetivamente se torna personagem indissociável da pintura, com os convites dos eventos em que ela foi mundialmente exposta sendo impressos com seu retrato.

A acusação de que a produção da obra de Brancatti objetivou montar um espetáculo midiático transfere-se finalmente para a decisão do crítico-artista de compor Um crime delicado. Se for verdade que o apartamento-instalação era meio para a publicidade, assim ocorre também com Martins. No instante em que seu rival colhe o prestígio conquistado com o processo, o narrador aproveita o encarecimento do valor de mercado de seu próprio nome para compor seu romance. Pode assim continuar a ver a si e o título de seu livro estampado nas folhas do jornalismo cultural. Embora já seja famoso como crítico de teatro e consiga manter seu emprego em outro jornal, espera se confirmar também como escritor de “obras de criação”.

Um crime delicado, redigido durante os idos de 1990, dialoga com as avaliações que desde então discutem a possibilidade de que parcela da arte brasileira tenha se rendido à indústria cultural e encerrado o processo de perpetuação das utopias e da experimentação modernistas. Martins narra imediatamente após o julgamento que o livrou da condenação, mas simbolicamente do interior da história da arte do Brasil contemporâneo e das discussões sobre a possibilidade de que o legado de vanguardas estéticas estivesse sendo suplantado por tendências artísticas ditas “pós-modernas”.

Ao falar de si, narradores irônicos, como Martins, podem relatar do ponto de vista do além-morte, após alguma grande perda, do fim de alguma grande experiência e, ainda de acordo com Bakhtin, a partir das últimas questões dos fins de um tempo para, assim, testá-las e pô-las à prova de verdade nas mais diferentes experiências e aventuras[xiv]. Como uma espécie de bufão, Martins fala de tal forma que uma mesma observação sobre sua própria atividade crítica e artística e sobre o cenário artístico de seu tempo pode conter um rebaixamento do grave e uma elevação do baixo. Nessa reinvenção dos procedimentos da sátira menipeia, a relativização de tudo também deixa entrever, de modo cênico e visual, um ponto de vista crítico do mundo artístico que o cerca.

As observações de Martins sobre seu meio artístico e cultural abalam a legitimidade de sua razão crítica na apreensão dos acontecimentos, de suas técnicas artísticas, de sua autorrepresentação e daquilo que narra e descreve, jogando-os em terreno movediço. Suas contradições podem se apresentar aos solavancos, numa disposição em que diferentes avaliações sobre uma mesma matéria distribuem-se em distintos espaços do livro, numa interligação de segmentos dispersos, como a declarada recusa do naturalismo cujos procedimentos o romance absorve. Nessa estrutura em zig-zag é possível que a um relato grave de um episódio corresponda páginas adiantes um juízo moral sobre ele. Aparentemente solto, esse juízo se projeta, no entanto, sobre a cena antes lida para contradizer e abalar uma anterior e firme convicção ética ou estética.

O romance se organiza como simulacro de um episódio da vida do herói, como narrativa passional e policial que desemboca em análise crítica e satírica. Digo simulacro não só porque o enredo prioriza apenas uma parcela da história de vida de um herói ficcional, mas também devido ao fato de esse fragmento sentimental e policial ganhar peso menor ao longo do romance.

As digressões sobre a arte, o amor e a ética no sistema de produção de mercadorias mundializado suspendem constantemente o relato passional e joga a história de amor e do crime para as margens, desequilibrando a proporção quantitativa entre elas. Até quase ao final, quando se arma o conflito propriamente falando, o narrador compõe um cenário configurado pela representação de tendências da arte brasileira. Como se trata também de um narrador autoirônico, o pós-moderno Martins aproveita para se retratar, em suas contradições, como um artista alienado por decisões próprias e por seu tempo histórico.

O herói afirma sua liberdade intelectual, a neutralidade de seu exercício crítico, ainda que, num contraponto “vaselinoso”, também valorize a parcialidade de seu juízo, complacentemente justificada na fórmula de que ela é naturalmente humana. Em uma passagem, aposta altissonantemente que a atividade crítica exige um esforço racional contra as emoções. Mas ao denunciar o apelo sexual da adaptação de Nelson Rodrigues, confessa que, ao assisti-la, deixou-se estimular pelos atrativos físicos das atrizes.

Também minimiza a evidência, entre outras, de que, logo após o primeiro contato com Inês, a redação de seu artigo sobre a peça Folhas de outono contaminou-se pela expectativa de que ela o lesse, o que poderia favorecer a conquista. Apelando para a cumplicidade do leitor, o sarcástico narrador assim se justifica: “Porém, qual de nós poderá dizer que nunca foi capturado pela coisa sentimental?”[xv]. Seu artigo com elogios à atuação da heroína de Vestido de noiva foi produzido para calar a boca da atriz, parceira frustrada e única testemunha do abalo em sua virilidade. Antônio Martins perde sua liberdade intelectual ao transformar sua atividade crítica em meio para outros fins.

O texto dedicado a Albertine, a adaptação teatral de Em busca do tempo perdido, permite ao autor reafirmar para si sua potência viril e cognitiva e, com isso, recuperar sua autoestima abalada após o caso com Maria Luísa. Mas esse texto também se torna emblemático do estilo da linguagem “crítica” de seu autor. Boa parte de sua avaliação sobre a peça efetiva-se em dois longos parágrafos, um deles de mais de uma página, ambos com poucas orações principais. Em meio a elas, o articulista acumula conjunções, subordinadas, apostos, parênteses, travessões, em fragmentos de frases separados apenas por esses sinais gráficos ou por vírgulas, com poucos pontos que ordenem as informações no conjunto.

Se esses traços são compreensíveis em autores que procuram desorganizar a linguagem e contestar o racionalismo, no racionalista Martins a justaposição de descrições e juízos, que mutuamente se neutralizam, presta-se tanto ao elogio quanto à censura. Essa profusão sintática figura diferentes avaliações díspares coordenadas, muitas vezes vazadas por chavões. Mas forja também certa obscuridade que possa causar o efeito de eruditismo. Ainda assim, o narrador jubila-se por seu texto resultar em “mero rascunho feito à mão”, escrito com uma “incrível facilidade, como se pensasse com os dedos”[xvi].

Em quem se tem em alta conta e baixa a guarda da autocrítica, soa piegas a informação do herói sobre as nobres intenções de seu romance: “[…] mais do que me defender de acusações controversas e tortuosas, tento explicar-me e entender-me, afetiva e criticamente”. É também com essa mesma falsa seriedade que ele emprega os fundamentos do gênero policial para definir seu estilo narrativo. Nessa consciência que afirma a legitimidade particular de seus interesses, não se sustenta a crença de que, ao relatar o processo judicial, buscava perseguir esse “ideal fugitivo e talvez inalcançável, restando o consolo e a esperança de que, ao buscarmos atingi-lo, talvez iluminemos outras faces, subterrâneas até para nós mesmos, da realidade”[xvii].

As paráfrases que o narrador traça de seus artigos de jornal discutem a deglutição arbitrária de antigas práticas artísticas, recompondo uma pluralidade de estéticas aleatórias que se espelham em sua produção e na de sua geração. As obras em discussão ou guardam resíduos do romantismo, na peça Folhas de Outono; do expressionismo, cubismo e surrealismo, na exposição Os Divergentes; do naturalismo, na encenação teatral de Vestido de Noiva.Um crime delicado deglute, por sua vez, procedimentos e tópicas de todas essas tendências.

Folhas de outonos reatualiza o melodrama romântico já desde o título que se cristalizou na primeira metade do século XIX como tópica de muitas poesias ou de títulos de poemas de Byron, Almeida Garret, Bernardo Guimarães, Álvares de Azevedo entre tantos, em geral de modo patético. Em sua crítica, Martins acusa esse traço sentimental da peça, além de ressaltar que o fim trágico da heroína não derivou de uma necessidade intrínseca da história, mas do desejo do diretor de se afirmar no meio teatral e de ver “nos cartazes o seu nome junto ao título poético e outonal com que pretendeu enfeitar as suas angústias”.[xviii] Outra passagem do “discurso de mestre” de Martins aconselha ao diretor abrir para o mundo a janela, no cenário, de onde caem aquelas folhas secas, sair de seu egocentrismo e descortinar o feminino limitado na representação de sua heroína. Como antídoto, propõe cinicamente que ela seja representada no cotidiano doméstico, em atos que a identificam com a dona de casa [xix].

Posta logo no início da história, essa avaliação sobre a peça teoriza o próprio modo com que Martins representará em seguida sua heroína. A acusação de que o egocentrismo do diretor engessou o perfil da protagonista, o deslocamento da moça para as margens da peça remete ao preceito do “eterno feminino”, tantas vezes estilizado como alegoria de algum tipo de Inês de Castro, algum ideal cristão, nacional, artístico, ético etc. Martins encarna em Inês seu próprio ideal de arte vago.

Seu pseudo-heroísmo entende, por exemplo, que a “beleza exótica dos trópicos” deve ser libertada de sua condição de matéria prima de subartistas europeus, como Brancatti, que, nessa ótica, prostituem, escravizam e vampirizam-na. Ainda assim, esse falso ufanismo deixa-se trair como tal quando Martins, ao visitar Inês pela segunda vez, explicita seu colonizado encantamento com a possibilidade de realizar o ritual inglês do chá da tarde nas altas temperaturas do Rio de Janeiro.

O autor estabelece contrastes complementares entre Inês, a modelo manca, e Maria Luísa, a “deusa olímpica” e atriz de TV em ascensão para quem as portas do teatro sempre se abrem, dotada de saúde, beleza e exuberância. Ambas alegorizam respectivamente a beleza possível para aquele tipo de consciência narrante e a outra posta em circulação pela indústria cultural, mas que o passadista Martins, como se se olhasse num espelho, refuta com veemência, hilariantemente considerando-a inexpugnável. Se Martins devora a primeira delas, torna-se objeto da fracassada deglutição da segunda.

No momento do ato sexual com Inês, a lambida no sangue escorrendo por sua orelha machucada pelo brinco, a própria imagem de uma heroína branca, inocente que sempre desmaia, vampirizada por esse tipo de Drácula, cita o gênero gótico tão em voga no século XIX. Como na crítica a Folhas de outono, Martins constrói a sua Inês como produto de sua fantasia, não como ela poderia ter sido por ela mesma caso lhe tivesse dado voz ou representado-a com vida interior. Ainda assim, o narrador lamenta, num cinismo, não compreender o que ela pensava, o que evidencia, mais uma vez, a crítica de Sérgio Sant’Anna à mentalidade patriarcal. Para que ela possa corresponder a seu infantil heroísmo viril de salvá-la, ele a modela como uma bela indefesa e frágil, quase cataléptica, adormecida nos momentos de maior intensidade amorosa e sexual, uma espécie de virgem romântica perseguida por um suposto algoz.

Quando frequenta Os Divergentes, Martins lá reconhece que o convite não se dirigiu a sua pessoa, mas ao crítico de teatro. Sentindo-se usado e tomado de ciúmes, não evita a formulação de um chavão melodramático contaminado pelo estilo dos quadros do pintor Nilton, mas submetido aos fins do dramalhão amoroso: “[…] meu coração estava sangrando”. Nessa ótima cena de humor, o narrador narrativiza o efeito que os clichês dos quadros acarretam em seu discurso. Como se esse sintagma melodramático anterior não fosse suficiente para que seu estado interior ganhasse essa expressão piegas, o narrador o enfatiza ao dizer que sua desilusão teria culminado no “coquetel de sangue jorrando do meu coração ferido”[xx].

Em certo momento, Martins alude à descrição irônica que Machado de Assis faz de Estela, em Iaiá Garcia, quando se encanta com a elegância singela de Inês, carente de adornos. Simultaneamente registra desconfiança, quase uma insinuação contra ela, com as técnicas que regulam o discurso da simplicidade natural, dito “sublime”, supondo que a falta de artifícios seja “o supremo e requintado artifício”.

Mas no estilo da carta que dirige a Inês, após o ato sexual, vale-se de metáforas esgarçadas que lembram novamente um Quixote do século XX retrocedido ao universo romântico: “momentos mágicos que vivemos, para os quais até o crepúsculo parecia querer contribuir”; “os mais significativos da minha vida”; “desejo cada pedaço dele, desde o rosto, os olhos negros, os cabelos, os dentinhos, até os dedos do pé”; “virgindade beatífica” etc. etc. Esse romantismo tardio define o lugar próprio da arte por meio de categorias vagas, essencialistas, míticas e escorregadias, como “uma busca apaixonada, tanto interna quanto externamente, da verdade, com tudo de escorregadio e multifacetado que o seu conceito implica”[xxi].

Em outra desajeitada apropriação de tópicas e traços de diferentes gêneros artísticos, na segunda visita a Inês, Martins se dá conta de que não era branca a tela do cavalete na posição lateral do quadro A modelo, como antes supusera, “mas coberta com uma leve camada de tintas claras, às vezes tendendo para o prateado e o dourado, às vezes para o cinza – não muito melhor do que seria pintado por um desses paisagistas de esquina – um espaço celeste entre nuvens”[xxii].

Nessa nova apreensão da tela anteriormente percebida como branca, Martins antecipa o estilo do relato seguinte, referente ao provável estupro. Também insinua que esse estilo teria sido sugestionado por essa nova percepção da “escultura-cavalete” de A modelo. Com efeito, a narração do ato sexual coincide com o crepúsculo, pintado, numa desastrada prosopopeia romântica, em cores sinistras e em meio à ênfase poética kitsch que o narrador empresta à representação desse ato. Mas em seus dois distintos modos de apreensão daquela mesma tela do cavalete de Brancatti, esse “paisagista de esquina” apõe, de acordo com suas conveniências técnicas e semânticas, o novo quadrado com traços crepusculares sobre o outro anteriormente branco.

Um dos acordos que Martins estabelece com seu leitor prevê a recusa do naturalismo, na suposição de que pormenores pornográficos seriam de mau gosto. Quando trata da reencenação de Vestido de Noiva, lamenta que a adaptação tenha recorrido à pornografia, mas perdido a dramaticidade, a sugestão e a atmosfera erótica impressas em Nelson Rodrigues. Transmutando o erotismo desse autor em pornografia gratuita, as adaptações de sua obra apelam, diz Martins, para o sensacionalismo comercial. Também considera que, no quadro de Brancatti, a posição de Inês semiencoberta cria um jogo entre inocência e “vulgaridade voyeurística”. Para esse crítico que lembra uma espécie de Alcibíades machadiano, saído de outros tempos, mas diferentemente respeitoso dos cânones e da convenção moral, em Brancatti o procedimento de expor velando a sexualidade feminina privaria-se de valor artístico.

Ao formular, no entanto, a seguinte justificativa, o narrador antecipa a provável réplica do leitor de que também seu relato recorre à pornografia, descreve com minúcias o corpo de Inês e com detalhes o ato sexual com de Maria Luísa:

Descrições de intimidades, pormenores sexuais – embora eu as tenha me permitido em relação à batalha que travei com Maria Luísa I, e perdi – são de um imperdoável mau gosto e só se justificam em determinadas circunstâncias, como por exemplo, as circunstâncias que me levaram a intentar esta escrita, em que, mais do que me defender de acusações controvertidas e tortuosas, tento explicar-me e entender-me, intelectual, afetiva e criticamente[xxiii].

A natureza do argumento leva ao humor impresso nessa viva contradição em ação. Como no estilo característico de Bento Santiago e Brás Cubas[xxiv], a apresentação do argumento sofre um zig-zag, com a representação do fenômeno tido como de mau gosto indo para um lado, e a justificativa para seu uso seguindo outro diferente. A ressalva de que o uso do procedimento dito vulgar somente seria aceitável em circunstâncias em que um escritor se propusesse a escrever poderia facilmente ser empregada para compreender outras tantas circunstâncias de outros para pintarem. Também se torna risível o dó de peito de Martins, sua necessidade individual de se compreender ou qualquer outra desculpa que pretenda monopolizar a exceção à regra em seu favor.

Essa justificativa joco-séria para tal reivindicação também desmorona diante da evidência de que, como Brancatti, Martins, com a composição da obra, eleva suas fantasias sexuais “à categoria de arte” [xxv]. Como na análise que traça daquele, o narrador destaca, num “naturalismo ostensivo”, por várias vezes sua atração pela perna manca de Inês. Produzindo denegações sobre denegações, o narrador não demove a suspeita de que pretendeu com isso também produzir um apelo sensacionalista para fisgar o leitor, ainda que disfarce tais objetivos por trás de um “romantismo suspeito”.

No estilo de seu relato, a petrificação de diferentes estilos de linguagem artística, a monumentalização de chavões e a degradação da tradição literária pode ser detectada já nos limites internos de muitas frases do narrador que tornam kitsch fórmulas românticas, naturalistas e modernistas, entremeadas de falsas impostações de erudição. Ao procurar minimizar seu fracasso sexual, Martins, numa espécie de imitação banal da linguagem naturalista, reduz a ereção a um fenômeno fisiológico, a um “comando irracional do cérebro a um feixe de vasos sanguíneos e nervos”,[xxvi] parecendo, assim, deter domínio científico e objetivo do assunto.

A produção pernóstica de um intelectual suposto erudito manifesta-se também nas inapropriadas citações latinas. Quando se deita com outra Maria Luísa, Martins emite o infame raciocínio de que a miopia literal e intelectual da companheira, assim como sua timidez amorosa, seria apropriada para unir corpo e espírito da moça aos seus, numa cínica referência a mens sana in corpore sano. Para diferenciar as duas Marias Luísas, emprega os numerais I e II e as concebe como mulheres máquinas desprovidas de humanidade, com funcionamento sexual mecânico.

Nos quadros dos pintores reunidos na exposição Os Divergentes, o narrador-crítico observa uma tendência daqueles artistas para romperem consigo mesmo e com os “melhores valores e tendências contemporâneas”. Mas a ruptura que tendências do modernismo impuseram ao estabelecido carece de expressividade nas obras dessa geração contemporânea. Na tela de Nílton, a despeito dos cortes na face do autorretratado, sua “absoluta ausência de expressão e marcas faciais” representaria fielmente o modelo vivo, mal escondendo um desconcertante primitivismo.

Rastreando linhas e traços de um cubismo e surrealismo suspeitos, Martins avalia que alguns quadros apresentam-se duplamente defasados quer em relação ao tempo de origem das vanguardas, quer ao de sua reatualização. Em outros o expressionismo reduz-se a mero “canal de expressão de seus tormentos e deformações mais íntimos, originados pela incapacidade artística ou não”[xxvii].

Na avaliação da peça Albertine, Martins destaca que a menção a Duchamp, na cena em que Proust usa um urinol, compõe um quadro de uma vulgaridade devastadora. No final emblemático da peça, coberto por lençol o autor de Em busca do tempo perdido deitado em um esquife desaba num alçapão, enquanto se destaca no palco uma laje tumular com a inscrição “Marcel Proust, 1871+1922”. Ao fazer coincidir os dois marcos temporais, a diretora teria encenado uma “rebelião contra a arrogância da cultura francesa”, mas também um provincianismo “modernista” ou “pós-modernista”, tanto faz para o eclético Martins. O encerramento da peça, diz ele, lembra um bloco de carnaval farsesco em que dançam mulheres e travestis, espécie de cartão postal para estrangeiros.

Na cena teatral contemporânea ao romance, a liberdade ou o desrespeito aos cânones, certa inovação e experimentação conduzem ou para o formalismo, ou para a farsa, a galhofa e a chanchada, às vezes reunidos numa mesma peça teatral[xxviii]. Aqueles fins do século XX em que se diluíram as fronteiras entre os valores, favorecerem também a emergência dos padrões da subarte, subteatro e subliteratura[xxix].

Esse diagnóstico que poderia desembocar em prática de resistência, libera e favorece a operação de reconversão dos pressupostos artísticos, que envolveram a fundação dos ready-mades, a sua condição de objeto de uso, e da arte em mercadoria. O caminho inverso de desentronização da arte e do artista pode ser observado na reivindicação do narrador de que o crítico-artista e sua produção devem ocupar alto lugar hierárquico. Esse culto, que torna fetiches a ruptura e a crítica, põe em prática, na cena contemporânea, a dissolução da ideia de arte livre da noção de beleza e a consideração de que tal noção teria propiciado um vale-tudo geral.

Sem dissolver na indiferença a noção de beleza entronizada em museus e no mercado artístico[xxx], valendo-se da indistinção entre bom e mau gosto Martins aproveita essas condições para reivindicar valor de mercado a qualquer obra de criação que assim se autoconstitua: “[…] não poderá uma obra ser ao mesmo tempo péssima e provocativa, vulgar e estimulante, tornando relativo, para não dizer inútil, todo juízo de valor? […] não poderá uma peça crítica tornar-se uma obra de criação tão suspeita e arbitrária quanto A modelo, de Vitório Brancatti?”[xxxi]. A divergência estética pode assim se perpetuar sem mais, numa vulgaridade desprovida de negatividade.

Enquanto se vale inautenticamente de diferentes e contraditórios estilos artísticos, Martins critica essa diluição acrítica, compreendendo que, como instrumento de realização de algum interesse pessoal ou de uma afirmação autoral, ela cristaliza uma prática e um cenário artístico que empobrecem a prática vital.

Da relação entre a instalação/pintura de Brancatti com o possível estupro e da cena em que o narrador incorpora em sua linguagem os traços do quadro de Nílton emergem também o diagnóstico de que esse tipo produção artística torna-se incapaz de gerar um sopro vital na recepção de “êmulos” como Martins. A exposição dos Divergentes foi sediada pelo “Centro de Expressão e Vida”, cujos artistas aí representados lembram mais uma “clínica de desajustados”.

O hiperdimensionamento metafórico da vulnerabilidade da perna de Inês cita Amélia, a heroína que possui um pé especial, de A pata da gazela, de José de Alencar, motivo da irrisão reversa na estilização de Eugênia, em Brás Cubas. Em sua construção preconceituosa da heroína, Alencar pretende realizar um elogio da fusão entre o que considera “baixo” e o médio e assim da mistura estilística. Já Sérgio Sant’Anna, valendo-se com outros fins da irrisão machadiana, alegoriza na muleta a instrumentalização mercantil da tradição crítica da arte e da vida.

Antônio Martins traça comicamente essa avaliação, com a cumplicidade de quem se deixa cooptar por seu tempo de miséria. Suas críticas sobre tendências pós-modernas da arte contemporânea destacam a perpetuação da tradição enquanto a degrada, sem manifestar expectativa alguma com um novo que ainda não chegou. A avaliação sobre a diluição dos princípios, procedimentos e suportes que nortearam a modernidade artística se faz, antes, com uma convicta cumplicidade com o que condena.

O estupro se houve não foi só um delito civil, mas um crime que coloca em ação e pratica a morte dos pressupostos artísticos das vanguardas estéticas do século XX e, assim, torna manca a arte da resistência. Ao negar, criticar e reproduzir a tradição com fins racionalmente calculados, a cega apropriação dos pressupostos das vanguardas do século XX os transforma em muletas ecléticas, meros instrumentos de apoio que assim perdem o pé e claudicam. A morte da arte com valor de museu e de mercado é triturada por uma “máquina fúnebre de artifício”.

*Cilaine Alves Cunha é professora de literatura brasileira na FFLCH-USP. Autora, entre outros livros, de O belo e o disforme: Álvares de Azevedo e a ironia romântica (Edusp)

Referência


Sérgio Sant’Anna. Um crime delicado. São Paulo, Companhia das Letras, 1997.

Notas


[i] Para uma análise do diálogo dos romances do Sérgio Sant’Anna com os de Machado de Assis, cf. MELLO, Jefferson Agostini. “Artes da conspiração: figurações de um intelectual em Um crime delicado in Teresa, revista do programa de pós-graduação de Literatura Brasileira. São Paulo: Ed. 34/ DLCV/FFLCH/USP, n. 10/11, 2010.

[ii] Para uma análise do enredo de Dom Casmurro, cf. GLEDSON, John. Machado de Assis, impostura e realismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 19-46.

[iii] SANT’ANNA, Sérgio. Um crime delicado. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 106.

[iv] DALCASTAGNÈ, Regina. “Personagens narradores do romance contemporâneo no Brasil: incertezas e ambiguidades do discurso”. Diálogos latino-americanos, n. 003. Aarhus: Universidad de Aarhus, 2001, p. 121.

[v] SANT’ANNA, Sérgio. Um crime delicado, op. cit., p. 106.

[vi] Idem, p. 126.

[vii] Idem, p. 28.

[viii] Cf. FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. Trad. Salma Tannus Muchall. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 23. Para uma diferente leitura da função desse procedimento de Velázquez em Um crime delicado, cf. DIAS, Ângela. “Narrar ou parecer: Sérgio Sant’Anna e Ricardo Piglia” in Revista Brasileira de Literatura Comparada. Rio de Janeiro: Abralic (Associação Brasileira de Literatura Comparada), v. 8, n. 9, 2006.

[ix] SANT’ANNA, Sérgio. Um crime delicado, op. cit., p. 34.

[x] Idem, p. 90-91.

[xi] Cf. PAZ, Octavio. Marcel Duchamp ou o castelo da pureza. São Paulo, Perspectiva, 2004, p. 59.

[xii] Sobre a reação de Duchamp e de outras correntes estéticas do modernismo às técnicas da representação objetiva, cf. ARGAN, Giulio Carlo. A arte moderna na Europa, de Hogarth a Picasso. Trad. Lorenzzo Mammi. São Paulo: Companhia das Letras p. 462-465.

[xiii] SANT’ANNA, Sérgio. Um crime delicado, op. cit., p. 121.

[xiv] Cf. BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro, Ed. Forense-Universitária, 1981, p. 97-104.

[xv] SANT’ANNA, Sérgio. Um crime delicado, op. cit., p. 19.

[xvi] Idem.

[xvii] Idem, p. 126.

[xviii] Idem, p. 21.

[xix] Idem, p. 20-21.

[xx] Idem, p. 61-62.

[xxi] Idem, p. 31.

[xxii] Idem, p. 96.

[xxiii] Idem, p. 102.

[xxiv] Cf. HANSEN, João Adolfo. “Representação e avaliação na literatura de Machado de Assis”. Ciência Hoje. São Paulo, v. 43, n. 253, 2008.

[xxv] SANT’ANNA, Sérgio. Um crime delicado, op. cit., p. 90.

[xxvi] Idem, p. 72.

[xxvii] Idem, p. 53.

[xxviii] Idem, p. 78.

[xxix] Idem, p. 90.

[xxx] Cf. PAZ, Octavio. Marcel Duchamp ou o castelo da pureza, op. cit., p. 23-30.

[xxxi] SANT’ANNA, Sérgio. Um crime delicado, op. cit., p. 97.

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