Síndrome de asperger

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Por EMILIANO JOSÉ*

A origem nazista por trás do termo “Síndrome de Asperger” revela como a ciência pode ser pervertida por ideologias mortíferas. Questionar diagnósticos apressados é defender a singularidade humana contra a tirania dos rótulos

Já disse – várias vezes – do meu incômodo com a medicalização da vida. Especialmente, medicalização da infância e adolescência, embora não desconheça a horizontalidade dessa epidemia. Vou atrás das razões do incômodo, e só arrisco.

Talvez sejam as lembranças de Carla França, psicóloga, amor da minha vida, cuja partida definitiva para o reino dos encantados deu-se no dia 1º de agosto do ano passado. Carla era devotada às crianças e adolescentes. A atividade profissional dela como psicóloga voltou-se quase exclusivamente para esse contingente. Naturalmente, mais para aquele público desassistido, os mais pobres.

Trabalhava, nos últimos 20 anos da vida, no Ministério Público, onde dedicou-se à tarefa de, usemos a expressão, reduzir danos, lutar por políticas públicas capazes de enfrentar os desafios impostos pela miséria, concentração de renda, e impactos dessa situação sobre a vida das crianças.

Nos anos vividos com ela, criança e adolescente eram presenças cotidianas. Como uma questão social, independentemente do lado familiar, propriamente. Talvez por isso. A aura dela, pairando sobre mim, me instigando.

Sombra criminosa

Recentemente li O eu soberano, livro de Elizabeth Roudinesco, instigante, demolidor, belo trabalho sobre os gigantescos problemas das chamadas por ela derivas identitárias, a questão do identitarismo. Pensei em escrever sobre o trabalho dela, ainda não pus mãos à obra.

De repente, chega às minhas mãos uma resenha publicada por ela sobre o livro Les Enfants d’Asperger. Le dossier noir des origines de l’autisme, da professora de história da Universidade de Berkeley, Edith Sheffer.

Ignorância é sempre um problema. Não tinha a mínima ideia das origens do nome emprestado a uma espécie do transtorno do espectro autista, chamado Síndrome de asperger. A resenha de Elizabeth Roudinesco me foi enviada por Maria Auxiliadora Mascarenhas Fernandes, psicanalista baiana, amiga, voltada na prática dela sobretudo às crianças e adolescentes.

Confesso: levei um susto. Coisas da ignorância, insisto. Admitindo desconhecimento também por alguns leitores, arrisco dividir um pouco das informações da resenha de Elizabeth Roudinesco, eventualmente, e só eventualmente, buscando outras referências. E o faço porque considero importante reforçar a importância do tema.

O médico e o monstro

Tudo começa com Hans Asperger, um nazista e assassino de crianças, psiquiatra austríaco reconhecido, capaz de impor a visão e o nome dele nos estudos sobre o autismo até os dias atuais.

Penso na natureza da ciência. Nas ilusões propagadas por ela. Na suposta imparcialidade de que ela se acredita portadora. Como se fosse infensa à história. Como se não tivesse a ver com a trajetória dos seres humanos envolvidos na manipulação dela, aqui manipulação dita científica, mas, também manipulação dos resultados e, se quiserem, manipulação midiática, imposição de discursos, a transformar monstruosidades em conquistas históricas.

Como pudesse a ciência se desenvolver independentemente do contexto histórico, da ideologia, do pensamento dominante, e até da correlação de forças. Só pensar nos cientistas a descobrir os segredos da fabricação da bomba atômica, e assistir depois Hiroshima e Nagasaki, e o mundo até hoje à beira do abismo.

Hans Asperger, pretenso inventor da célebre e discutível síndrome, só mais recentemente teve descoberta a sombra criminosa deixada por ele, e criminosa aqui não é uma metáfora.

No livro de Edith Sheffer, o gentil doutor, homem de bem, culto e rígido, católico cumpridor dos deveres religiosos, casado, e bom procriador, cinco filhos, ali ele aparece com a devida cara. Nele convivem o médico e o monstro, mais o monstro.

Não nos assustemos: esse homem de bem, deixo ao leitor o uso das aspas, homem de bem formado pela Universidade de Viena, tornou-se criminoso protagonista da eutanásia de crianças consideradas por ele “anormais”, política contemplada pelos nazistas na Áustria. Uma espécie de arianismo austríaco.

Não bastasse o livro de Edith Sheffer, há também o depoimento do historiador Herwig Czech, da Universidade de Viena, a mostrar a adesão de Hans Asperger ao nazismo e por isso recompensado com o cargo de professor na universidade.

De acordo com Herwig Czech, Hans Asperger participou de organizações afiliadas ao partido nazista, legitimou abertamente as políticas de higiene racial e cooperou decisivamente com o programa de eutanásia infantil.

O contexto austríaco, quando da chegada das tropas alemãs, 1938, inteiramente favorável ao nazismo. Soldados recebidos com entusiasmo pela maioria da população. Isso não pode ser subestimado.

As massas e a servidão voluntária. Jamais ignorar o entusiasmo das massas com o nazifascismo. Quase 1 milhão de austríacos integraram as forças armadas da Alemanha nazista. E houve austríacos a serviço dos campos de concentração e servindo na administração de Hitler – maioria dos burocratas a executar a política da “solução final” era austríaca.

Eliminar vidas indignas

Os cientistas austríacos, incluído aí Hans Asperger, esses homens e cúmplices, consideravam-se benfeitores da humanidade e pretendiam, como os alemães dedicados à ciência, é, eles consideravam todas aquelas monstruosidades como tal, ciência, pretendiam eliminar crianças cujas vida não fossem dignas de serem vividas, na visão deles, e de Asperger.

Eliminar aquelas crianças incapazes de manifestar alguma Gemut, termo a designar alma, emoção, sociabilidade. Como não tinham alma, eles pensavam assim, melhor eliminá-las, extirpá-las da convivência humana – a ideologia ariana, o pensamento nazista.

É com essa tão boa consciência, com esse espírito saneador, com o objetivo de tornar limpa, higiênica, a raça humana, a realização do programa de extermínio de crianças no quadro da Sociedade de Pedagogia Curativa e da Universidade de Viena.

E notadamente no Spiegelgrund, clínica infantil onde morreram 789 crianças no programa de eutanásia, dispensário ligado ao magnífico hospital Steinhof, complexo de saúde de Viena. Um horror de tal dimensão, praticado sob as bênçãos da ciência, assim considerada.

Há um Memorial para as vítimas de Spiegelgrund, em Viena, na área verde em frente ao “Teatro Art Nouveau”, do Centro Médico Social Baumgartner Höhe, do Hospital Otto Wagner, erguido em 2003. Estrelas luminosas homenageiam as quase 800 crianças e adolescentes assassinadas na instituição de eutanásia nacional-socialista “Am Spiegelgrund”, entre 1940 e 1945.

Edith Sheffer revela, a partir de arquivos minuciosamente estudados, como Asperger retoma por conta dele o termo “autismo”, na verdade criação do psiquiatra suíço Eugen Bleuler em 1907 para designar uma volta sobre si mesmo, na avaliação dele, de natureza psicótica, e uma ausência de todo contato, podendo chegar ao mutismo.

Psicopatia autística

Adepto da ideologia nazista, Hans Asperger se apropriou da abordagem de Eugen Bleuler para criar a categoria de “psicopatia autística”, a lhe permitir diferenciar os irrecuperáveis, enviados então ao Spiegelgrund, e os educáveis, capazes de Gemut, dignos de sobreviver.

Uma verdadeira, autêntica hierarquia mortífera, racista, própria da ideologia, da morbidez nazista.

Edith Sheffer conseguiu, com a pesquisa dela, descobrir e revelar como se desenvolviam as monstruosidades. Envolviam tratamentos com enxofre e vomitórios, tortura e morte por injeção letal. Um inferno na terra.

Hans Asperger, responsável pelo assassinato de 44 crianças, publica em 1944 trabalho onde desenvolve a teoria da diferença entre duas categorias de psicopatia autística: a positiva e a negativa.

Após a queda do nazismo, permanece em Viena, e consegue se fazer passar pelo salvador das crianças cujas vidas foram poupadas. Segue brilhante carreira. Republica a tese universitária dele de 1944, eliminando os sinais das concepções nazistas dela. No desenvolvimento dos trabalhos dele, no entanto, vai afirmar a necessidade de distinguir autistas superiores dos autistas inferiores.

O uso do cachimbo faz a boca torta, e assim ele faz retornar à cena a concepção nazista da psicopatia autística. Deixou o rabo de fora, outra vez. O monstro revela-se, o médico se recolhe. Ou caminham juntos e misturados, inseparáveis.

Um estereótipo

Na resenha de Elisabeth Roudinesco, aparece na conclusão do livro de Edith Sheffer uma comovente história. A autora dá a palavra ao filho dela, a quem ela dedica o livro. Diagnosticado autista aos 17 meses, ele explica o quanto se sentiu humilhado na escola por tal designação, e isso o levou a rejeitar toda e qualquer ideia de síndrome.

O autismo, para ele, não é um handicap ou um diagnóstico, ele dirá. Trata-se de um estereótipo, a condenar alguns indivíduos. Na opinião dele, as pessoas consideradas autistas devem ser tratadas como as demais. Se isso não ocorre, elas se tornam menos sociáveis.

A obra de Edith Sheffer, na opinião de Elisabeth Roudinesco, mostra que o delírio pode levar a classificações discriminantes, capazes, eu diria, de causar sofrimentos profundos nas pessoas atingidas por tais classificações, resultado, muitas vezes de ideologias, concepções de mundo, às quais poderíamos chamar delirantes, como o faz Elisabeth Roudinesco.

O delírio, ali, corporificado na extrema-direita, representada então pelo nazismo, cujo espectro volta a assombrar o mundo em tantos lugares, com destaque para os EUA, e a se manifestar, de modo bárbaro, em novo holocausto, Gaza, assistido tranquilamente pela maior parte dos poderes do mundo.

O delírio existencial aparece sublinhado no prefácio do livro, assinado por Josef Shovanec. Diagnosticado esquizofrênico, depois como integrante dos acometidos pela Síndrome de asperger, livrou-se, com a vida dele, dessa maldição imposta pela ciência, olha ela aí de novo.

Está certa a autora: melhor seria abandonar essa assustadora, discriminatória, preconceituosa denominação “síndrome de asperger”. Por tudo. E está certa, também, Elisabeth Roudinesco, ao recusar a denominação “dossiê negro” ao livro de Edith Sheffer, abusivo subtítulo da edição francesa. O trabalho dela não é isso, conforme Elisabeth Roudinesco, e é bom recusar por evidenciar uma compreensão racista.

Meu incômodo vai diminuindo. Sigo firme, convicto da compreensão da diversidade da pessoa humana. Na convicção do quanto é necessário conviver amorosamente com todas as pessoas, com a singularidade delas, compreendendo a Medicina como ciência a contribuir com a humanidade de cada uma, e não como tentativa de aplacar emoções, sentimentos, pensamentos próprios de cada um.

Uma criança rebelde, inquieta, insubmissa diante de professores ou dos pais, merece atenção, respeito, carinho, e não simplesmente um diagnóstico, sempre apressado, de TDHA, com todas as variações, classificações da Medicina, da ciência, a chamada Síndrome de Asperger, entre elas.

E, dado o diagnóstico, sobrevém, além do preconceito, da discriminação, a medicalização, inevitavelmente, com todas as consequências dela.

Ninguém há de negar respeito à presença da Medicina, intervenção dos médicos. A Medicina é permanente conquista da humanidade.

Nem por isso, cabe deixar de duvidar sempre diante de diagnósticos apressados, de ideologias a serviço dos monumentais lucros da indústria farmacêutica, revestidas de invólucros pretensamente científicos.

Essa dúvida, permanente, é direito dos pacientes. Direito à vida. À singularidade do ser humano.

*Emiliano José é jornalista, escritor, membro da Academia de Letras da Bahia.

Referências


ASPERGER, Hans. Hans Asperger, o nacional-socialismo e a “higiene racial” na Viena da era nazista”. Em Autismo Molecular, publicado pela primeira vez em 19 de abril de 2018, e depois, corrigido, em 21 de junho de 2021.

MEMORIAL para as vítimas de Spiegelgrund. National FUND. Fundo nacional criado em 1995 para expressar a responsabilidade da Áustria com a vítimas do nacional-socialismo.

O PEDIATRA colaborador dos nazistas. Revista Pesquisa Fapesp. Edição 268, junho de 2018.

ROUDINESCO, Elisabeth. Resenha do livro As crianças de Asperger. Boletim eletrônico, Informativo online sobre as atividades do Departamento Psicanálise com Crianças do Instituto Sedes Sapientiae, Ano VI, número 10, edição de janeiro a junho 2019.


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