Por ISABEL LUSTOSA*
Comentário sobre o documentário dirigido por José Joffily
Logo no começo do filme, Sinfonia de um homem comum, de José Joffily, o narrador/diretor nos informa do reencontro com um amigo de longa data, que lhe contou uma história incrível. Fica claro assim que a voz do narrador, na verdade, exprime o pensamento do protagonista e que a narrativa é conduzida pelas informações e fontes fornecidas por ele.
Depois da abertura, para quem não conhece o embaixador José Maurício Bustani, o que vemos é um pianista muito irritado com a qualidade do som do piano que lhe designaram, exigindo que o troquem pelo Piano no. 1 que ele sabia que existia e que foi pessoalmente procurar em outra sala. Enfim, uma abertura que nada a ver com armas de destruição em massa. Ele seria o pianista do concerto da Orquestra Sinfônica Jovem do Rio de Janeiro, composta de jovens de uma favela e regida por Tobias Wolkman, do Teatro Municipal.
Na sequência, o músico mal-humorado logo se revela ser também o mesmo José Maurício Bustani, personagem de uma trama internacional que bem merecia ser convertida, com aquela competência que os norte-americanos tem para contar as histórias mais complicadas, em uma série ficcional típica do Netflix ou em um filme de ação (tem até a revelação de uma parede recheada com aparelhos de escuta pela CIA). Não que o documentário de José Joffily padeça do mal da falta de clareza. Ao contrário, é absolutamente bem narrado, bem sequenciado e objetivo.
Consegue contar ao espectador a história de um diplomata brasileiro que, ocupando uma posição internacional de alto relevo, como primeiro Diretor Geral da OPAQ (Organização para a proibição das armas químicas), especialmente em um mundo sujeito a tantas guerras, tentou impedir os Estados Unidos e seus aliados de destruírem o Iraque com base na falsa acusação de que Sadam Hussein tinha armas de destruição em massa.
O governo de George Bush e seus associados queriam o petróleo do Iraque e um bom pretexto surgiu com o ataque terrorista às torres gêmeas em 11 de setembro de 2000. Sadam Hussein e os iraquianos nada tiveram a ver com aquela tragédia. Mas isto não foi obstáculo para que o poderoso império promovesse uma campanha baseada na islamofobia, incrementada por uma mídia parcial e apoiada por políticos oportunistas ou acovardados com o objetivo de invadir o Iraque.
Por conta de sua função, José Maurício Bustani dispunha de informações seguras de que Sadam Hussein já não tinha mais aquelas armas que tinham sido destruídas durante a primeira guerra do Iraque. Era sabido nos círculos especializados que 95% das armas iraquianas não existiam mais desde 1991 e que não teria havido condições técnicas que permitissem ao Iraque (re)fabricá-las. Mesmo que 5% delas ainda existissem, seu prazo de validade teria expirado por volta de 1995. Em 2000 já não teriam possibilidade de serem usadas.
No estrito cumprimento de suas atribuições previstas pela Convenção sobre a Proibição de Armas Químicas, José Maurício Bustani deveria assegurar que todos os países se tornassem membros da Organização. No momento em que deve início aquele embate, ele já havia assegurado a participação de quase 150 países. Restavam os países árabes, sempre preocupados em manter aberta a possibilidade de obterem algum tipo de arma de destruição em massa para se protegerem de possíveis ataques por bombas químicas ou nucleares de Israel.
Como resultado de trabalho diplomático desenvolvido desde que assumiu suas funções em 1997, acrescido da credibilidade crescente do desempenho isento da Organização, José Maurício Bustani, conseguira convencer os governos do Iraque e da Líbia, a ingressarem na OPAQ. Ora, isto deixaria mais do que evidente que aqueles regimes não dispunham mais de tais armas porque estariam sujeitos às inspeções da Organização. Ao comunicar às delegações dos Estados Unidos e demais países membros do Conselho de Segurança das Nações Unidas a iminente adesão daqueles dois países, Bustani esbarrou no objetivo secreto de Bush. A partir daí ele tornou-se o alvo preferencial dos ataques da extrema direita norte-americana, então liderada pelo vice-presidente, Dick Cheney e por Donald Rumsfeld, tendo como operador o hoje notório John Bolton, que seria personagem também importante no governo Trump.
O bombardeio midiático com vistas a levar José Maurício Bustani à renúncia incluiu acusações de incompetência e, nos bastidores, uma ameaça digna da máfia, quando Bolton foi pessoalmente ao seu gabinete exigir que renunciasse até o final do dia, dizendo em tom de ameaça que “sabia onde seus filhos moravam” (por acaso, os dois rapazes estudavam em universidades americanas e a única filha no Reino Unido). José Maurício Bustani não renunciou.
Pediu apoio ao governo brasileiro que o tinha indicado para aquela posição. Fernando Henrique Cardoso saiu pela tangente, não teve peito para enfrentar as pressões e recomendou também a renúncia. Na entrevista, FHC, com seu estilo característico, alegou que José Maurício Bustani não ocupara aquela função como representante do governo brasileiro e sim por ter sido eleito por uma assembleia internacional. Enfim, entregou o diplomata aos tubarões.
Uma assembleia extraordinária da OPAQ foi convocada pelos Estados Unidos. Era ilegítima, pois não estava prevista em sua convenção constitutiva. Contra Bustani votaram os 45 países do chamado “grupo ocidental” (exceto a França), 8 a seu favor e os demais, latino-americanos, africanos e asiáticos se abstiveram. Foi uma derrota inédita, por abstenções, menos que por votos contrários. Curiosamente, até o aliado da véspera – a Índia – votou contra ele. Bush prometera-lhe sistema de defesa antiaérea, do tipo que, pouco antes, fornecera ao Paquistão.
José Maurício Bustani voltou para o Brasil e ficou no que se chama “escadas e corredores” do Itamaraty durante um ano, até ser indicado para a embaixada do Brasil em Londres a convite de Lula e de seu chanceler, Celso Amorim. Foi uma forma de o governo petista demonstrar que reconhecia suas qualidades de homem público. Quando Lula foi recebido por Tony Blair na Inglaterra, levou com ele Celso Amorim e José Maurício Bustani. No documentário, José Maurício Bustani narra conversa divertidíssima, em que Lula pergunta a Tony Blair: “sabe quem é este aqui? O José Maurício Bustani, que você ajudou a derrubar da OPAQ e que acaba de receber como embaixador do Brasil. Ele garante que o Iraque não tem armas de destruição em massa”. A resposta de Blair em nada poderia ter sido mais reveladora: “eu espero que ele não tenha razão”. Vinda da parte de quem havia aderido de olhos fechados aos desígnios dos EUA era, no mínimo, curiosa.
Mas a história de José Maurício Bustani com a OPAQ não terminara ainda. O governo Trump acusou a Síria de usar armas químicas contra seu próprio povo. Era uma nova farsa montada pelos Estados Unidos, Reino Unido etc.. O relatório da inspeção realizada em Douma, na Síria, concluiu que não houve utilização de armas químicas, mas a montagem falsa de um ataque, por parte dos opositores de Bashar al Assad. Era evidente a manipulação de imagens para simular a situação, na onda das fake news que marcaram o governo Trump. O golpe foi tão primário que não foi difícil demonstrar tal absurdo.
A pedido dos antigos inspetores seniores da OPAQ que tinham trabalhado com ele, José Maurício Bustani se dispôs a depor sobre o assunto em uma reunião online do Conselho de Segurança das Nações Unidas. A cena dessa reunião aparece no documentário. Logo no começo, o representante da Inglaterra se opôs à declaração de José Maurício Bustani, alegando que ele fora Diretor Geral muitos anos antes e que o caso era novo (apesar de ser essencialmente o mesmo, incluindo até um papel de destaque para John Bolton). A participação de José Maurício Bustani foi posta em votação e não foi aprovada. Vemos o momento em que ele é dispensado, sem nenhum pedido de desculpas pelo tempo roubado, arruma seus papeis e se afasta da mesa. É uma cena um tanto melancólica.
No entanto, a coragem e a determinação desse brasileiro perseguido pela nação mais poderosa do mundo fazem contrates com a candura, para não dizer outra coisa, de Collin Powell, confessando haver sido enganado pelos serviços de informação americanos. Lembrando que Powell, enquanto chanceler do governo Bush, afirmou com veemência na ONU que o Iraque dispunha de armas de destruição em massa e que, por isso, tinha que ser invadido. Fazem contraste ainda, com a confissão do antigo porta-voz da presidência de Bush, Richard Boucher, hoje professor de História em uma Universidade americana, de que mentira ao agredir verbalmente José Maurício Bustani durante a violenta campanha do governo Bush contra o brasileiro. Mas, tais confissões “póstumas” não impediram a morte de milhares de iraquianos e o desmoronamento do país que a irresponsabilidade criminosa deles deixou para trás. Situação agravada pelo surgimento dos movimentos djihadistas, do Exército Islâmico, com as conhecidas consequências para o Oriente Médio e o resto do mundo.
O drama vivido pelo embaixador José Maurício Bustani faz lembrar o do personagem de Henrik Ibsen em O inimigo do povo. Ali, o médico de uma cidade-balneário da Noruega, Dr. Stockmann, denuncia um problema de saúde pública cuja solução afetaria os negócios turísticos que a sustentavam. Diante dessa perspectiva, todos se voltam contra ele que passa a ser considerado inimigo público e termina arruinado. A defesa da verdade contra interesses dos poderosos é uma missão ingrata e frustrante. Felizmente, o pianista mal-humorado do começo desse filme é um músico erudito de alto nível e encontra nessa arte que o acompanha desde a infância, o conforto e a alegria que o médico de Ibsen não encontrou.
*Isabel Lustosa é pesquisadora e historiadora da Fundação de Rui Barbosa.
Referência
Sinfonia de um homem comum
Brasil, 2023, documentário, 84 minutos
Direção: Jose Joffily
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