A vida tem algum propósito?

Imagem: Alotrobo
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por ANDRÉ MÁRCIO NEVES SOARES*

Questionamentos sobre uma espécie que não deseja mais se renovar

Se eu nascesse uma muriçoca, por que iria querer viver muito tempo se o que faço é apenas sugar o sangue dos outros animais? Se eu nascesse uma formiga operária, por que iria querer viver muito tempo, se meu destino seria apenas trabalhar indefinidamente e lutar sem tréguas contra eventuais invasores, em prol da comunidade?

Se eu nascesse uma abelha obreira, por que iria querer viver muito tempo, se minha função seria apenas trabalhar incessantemente construindo favos, coletando material no ambiente (pólen, água e néctar), produzindo mel e cera, alimentando a rainha e defendendo a colmeia dos ataques, inclusive, de um ser enorme, quase invencível e alienígena (o homem), que costuma roubar a produção da colônia?

Se eu nascesse uma vaca, por que iria querer viver muito tempo, se seria obrigada a fornecer leite ao homem que me confinaria e sequer me permitiria alimentar dignamente meus filhotes? Se eu nascesse um leão, por que iria querer viver muito tempo, neste mundo terrível em que a cada dia o território animal diminui, por causa da ganância irrefreável do homem?

Se eu nascesse um elefante, gostaria de viver menos, por causa do aumento exponencial da catástrofe climática e do enorme risco de vir a ser mutilado por caçadores em busca do meu marfim. Se eu nascesse um gorila, por que iria querer viver tanto quanto meu primo humano, se ele me aprisionaria em jaulas, sob o pretexto de me preservar, ou me condenaria aos confins do planeta, em razão da sua sanha indesculpável por mais terras.

Mas tendo nascido um humano, eu posso sugar o sangue dos outros. Posso obrigar um monte de iguais a trabalhar para mim, até a exaustão, sob o pretexto de beneficiar a comunidade. Posso roubar o produto do trabalho dos outros iguais que não preciso fazer trabalhar para mim. Posso colocar muitos dos iguais a mim em trabalho ininterrupto, mesmo que isso eventualmente custe o correto cuidado dos descendentes deles. Posso reivindicar mais território para apenas especular.

Posso manipular a natureza sem me preocupar com os efeitos nefastos sobre o clima da terra, pois, ainda que viva bastante, a perspectiva de morrer antes que tudo acabe massageia meu consumismo egoísta. Posso, por fim, cultivar todas as terras férteis do planeta, sem qualquer intenção de promover a igualdade entre meus semelhantes, mesmo que isso cause a exaustão da fauna e da flora de um mundo lindo de morrer, mas que teve o azar de me ver nascer.

Mas, olha, nasci humano e não quero fazer nada disso! Quero doar meu sangue, para que outros vivam. Quero minha comunidade forte, saudável e feliz através do trabalho, mas também sem ele, porque, afinal, o trabalho só tem sentido se promover o bem, a inclusão, o aprendizado e a boa vida. Quero aprender com quem sabe, para não precisar me apropriar de nada que não é meu. Quero os meus iguais, minha própria espécie, livre das correntes da ignorância, da fome e da desigualdade. Para isso, muito mais que meras vidas estéreis, secas como folhas no final da estação, é preciso dotar a minha espécie de sonhos bons, de desejos comedidos e condições decentes de sobrevivência para todos.

Todavia, bem sei que meus desejos são incompatíveis com a sociedade humana da falsa “pós-modernidade”. Digo falsa porque estamos a retroceder no tempo, em termos das garantias básicas de civilidade intra e inter-muros em todos os países. É verdade que a humanidade nunca foi uma espécie animal em equilíbrio com a natureza, ao contrário da grande maioria de espécies que sempre habitaram nosso planeta. Mas a escalada de destruição que temos conhecimento ao longo de séculos, milênios quiçá, é de tal monta, que não basta mais querer voltar a ser humano.

A cada geração nascemos menos como humanos e mais como algum tipo de híbrido, que tem entrado em simbiose com a evolução maquínica da sociedade rarefeita da vida desligada. Pois a cada geração que passa, parece que perdemos um pouco mais da consciência do que realmente importa para sermos simplesmente felizes. Ao invés, elevamos como condição para a nossa felicidade o afeto fugaz, o brilhareco midiático, o dinheiro fácil e virtual, tudo digerido com coquetéis de psicotrópicos necessários para uma vida sem propósito.

Mas a vida tem algum propósito? É possível que para todas as espécies citadas acima a vida tenha propósito. É desnecessário enumerá-los. O maior deles é a reprodução, ou seja, a perpetuação de cada espécie. Porém, para nós nem isso mais é um propósito, na medida em que boa parte da humanidade não deseja mais ter filhos, e uma outra parte ainda tem porque é tão miserável que não consegue sequer evitar. Então, qual seria o propósito de uma espécie que não deseja mais se renovar? Atualmente, preferimos pensar em clonar a nós mesmos, para termos uma segunda vida ou, quem sabe, vida eterna.

Ora, quem se clona a si mesmo, por enquanto, são os vírus. Assim, se eu nascesse um vírus, iria poder me infiltrar no organismo dos outros para usufruir das benesses que lá já existem. É isso que a espécie humana busca para seu futuro?

*André Márcio Neves Soares é doutorando em Políticas Sociais e Cidadania pela Universidade Católica do Salvador (UCSAL).


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Milton Pinheiro Ricardo Fabbrini Slavoj Žižek Francisco Pereira de Farias Bernardo Ricupero Otaviano Helene Igor Felippe Santos Samuel Kilsztajn Boaventura de Sousa Santos Fernando Nogueira da Costa Daniel Afonso da Silva Eugênio Trivinho Vanderlei Tenório Valerio Arcary Berenice Bento Marjorie C. Marona Lorenzo Vitral Valerio Arcary Andrew Korybko Annateresa Fabris André Márcio Neves Soares Paulo Martins Marcelo Guimarães Lima Everaldo de Oliveira Andrade Bento Prado Jr. Francisco Fernandes Ladeira Henri Acselrad Benicio Viero Schmidt Michael Löwy Daniel Costa Leonardo Avritzer Michael Roberts José Raimundo Trindade José Machado Moita Neto Plínio de Arruda Sampaio Jr. Armando Boito Marilena Chauí Dênis de Moraes Bruno Fabricio Alcebino da Silva Eduardo Borges Luiz Eduardo Soares Érico Andrade Flávio R. Kothe Jorge Branco Carlos Tautz Matheus Silveira de Souza João Lanari Bo Eugênio Bucci Luiz Werneck Vianna Rubens Pinto Lyra Priscila Figueiredo Sandra Bitencourt Vinício Carrilho Martinez Carla Teixeira Gilberto Lopes João Paulo Ayub Fonseca Francisco de Oliveira Barros Júnior Mariarosaria Fabris José Luís Fiori Paulo Capel Narvai Alexandre Aragão de Albuquerque Bruno Machado Ronaldo Tadeu de Souza Mário Maestri Marilia Pacheco Fiorillo Dennis Oliveira Yuri Martins-Fontes Tales Ab'Sáber Rodrigo de Faria Ladislau Dowbor Ronald Rocha Paulo Nogueira Batista Jr Celso Frederico Marcus Ianoni Marcos Aurélio da Silva Fernão Pessoa Ramos Rafael R. Ioris Elias Jabbour Tarso Genro Luciano Nascimento João Feres Júnior Anselm Jappe Ricardo Musse Luiz Marques Gerson Almeida Antonio Martins Lucas Fiaschetti Estevez Sergio Amadeu da Silveira Eliziário Andrade Antonino Infranca Alysson Leandro Mascaro Daniel Brazil Fábio Konder Comparato João Sette Whitaker Ferreira Julian Rodrigues José Micaelson Lacerda Morais Salem Nasser Michel Goulart da Silva André Singer Leda Maria Paulani Jorge Luiz Souto Maior Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Alexandre de Lima Castro Tranjan Luís Fernando Vitagliano Claudio Katz João Adolfo Hansen Jean Pierre Chauvin Ronald León Núñez Jean Marc Von Der Weid Caio Bugiato Ricardo Abramovay Ari Marcelo Solon Alexandre de Freitas Barbosa Lincoln Secco Ricardo Antunes Renato Dagnino Denilson Cordeiro Marcelo Módolo Osvaldo Coggiola Juarez Guimarães Vladimir Safatle Luiz Roberto Alves Chico Alencar Antônio Sales Rios Neto Kátia Gerab Baggio Luiz Carlos Bresser-Pereira José Costa Júnior Celso Favaretto Atilio A. Boron Airton Paschoa Flávio Aguiar Remy José Fontana Marcos Silva Eleonora Albano Afrânio Catani Gabriel Cohn José Dirceu Henry Burnett Tadeu Valadares Paulo Fernandes Silveira Luis Felipe Miguel Walnice Nogueira Galvão Luiz Renato Martins Gilberto Maringoni José Geraldo Couto Heraldo Campos João Carlos Salles Eleutério F. S. Prado Luiz Bernardo Pericás Chico Whitaker Maria Rita Kehl Paulo Sérgio Pinheiro Liszt Vieira Leonardo Boff Thomas Piketty João Carlos Loebens Manuel Domingos Neto Andrés del Río Manchetômetro Leonardo Sacramento

NOVAS PUBLICAÇÕES