Cadernos do movimento operário

Carmela Gross, Desenho da Série Vulcões - rascunhos, 2018, nanquim sobre papel, 15 x 21cm.
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Por EDITORIA dos CADERNOS

Apresentação do primeiro número da revista, recém-lançada

 “Proletários de todo o mundo, uni-vos!”

O desenvolvimento das forças produtivas impulsionado pela revolução algorítmica e o salto de qualidade no grau de concentração e centralização dos capitais levaram ao paroxismo a capacidade do capital de explorar o trabalho em escala global. A expansão de cadeias de valor que combinam tecnologia sob controle do capital financeiro dos países imperialistas com força de trabalho barata dispersa por todos os cantos do planeta, mas fortemente concentrada nas economias que fazem parte do elo fraco do sistema capitalista mundial, impulsionou a formação de um sistema produtivo cujo funcionamento extrapola mais do que nunca as fronteiras do espaço econômico nacional. A tendência, já manifesta no curso da ascensão mundial dos monopólios, foi fator decisivo de deflagração da era das guerras mundiais.

A formação de forças produtivas transnacionais criou um circuito de produção e circulação de mercadorias que compromete irremediavelmente a capacidade dos Estados nacionais de conter as taras do capital. As bases objetivas para um “desenvolvimento capitalista nacional” foram definitivamente superadas. Não há retorno possível à era do keynesianismo e do Estado de Bem-Estar Social, senão de um modo extremamente degradado e, politicamente, contrarrevolucionário. A lógica destrutiva da acumulação capitalista foi levada à sua potência máxima. Chegou a hora da verdade. A humanidade terá de escolher entre socialismo ou barbárie.

É a urgência da necessidade histórica do socialismo que coloca a premência do resgate do caráter internacional da revolução socialista. É fato reconhecido – e contra o qual nos colocamos – que a tradição histórica de debate e reflexão sobre as lutas sociais no Brasil esteve, por longo tempo, vinculada exclusivamente a parâmetros nacionais – quando não nacionalistas – e pautada pela ótica do nacional-desenvolvimentismo.

Na contramão de tal tradição, tanto quanto da arapuca das falsas e efêmeras melhorias que apenas iludem e capturam o potencial de luta dos trabalhadores, entendemos que o combate dialético, político e histórico contra o gigantesco capital global requer a unificação de vastas forças internacionais, reunindo o movimento operário e demais setores oprimidos para confrontar os megaconglomerados empresariais. Todas as lutas são hoje mundiais. De fato, conglomerados globais e consórcios orgânicos de interesses envolvem hoje grandes máquinas estatais, centros de pesquisa científico-tecnológica, e, simultaneamente, incontáveis atores na mídia como no cenário político de vários países; tais grupos atuam em escala planetária, arrastam consigo produtores locais e atrelam as organizações ditas multilaterais a planos de expansão ou de contração programadas – inclusive quanto à conversão de matrizes energéticas.

Logo, sem a construção de um front concreto de reflexões, debates e lutas na escala internacional, não haverá como fazer frente aos donos do dinheiro e aos agentes a seu serviço, que não estão mais limitados por quaisquer marcos nacionais. Encontram-se hoje sob risco extremo a humanidade, mutilada por práticas de genocídio instauradas como políticas de Estado, e até o próprio planeta, que sofre o extermínio de regiões e espécies.

A constituição de uma plataforma para lutas dessa ordem de grandeza, na escala internacional, supõe, por sua vez, a consolidação e o apoio de uma perspectiva histórica fundada na memória internacional das lutas de trabalhadores e demais explorados e oprimidos.

Daí a ênfase que os Cadernos do movimento operário – dentro da tradição de universalidade e internacionalismo que nasceu com a Primeira Internacional – vão dar à recuperação de documentos, traços e sinais de vínculos internacionais das lutas históricas dos variados movimentos de trabalhadores, bem como de setores e grupos de explorados e desapossados pela marcha devastadora do capitalismo. Nesse sentido, por conta do valor estratégico e exemplar do capítulo histórico em questão, a revista dedicará especial atenção à tarefa de desvendar e debater aspectos e questões do retrocesso sofrido pela primeira grande revolução proletária da história. Assim, destacará detalhada e documentalmente traços e circunstâncias das perseguições de que foram alvo, entre outros, aqueles que na URSS pretenderam fazer avançar o projeto da revolução permanente e mundial contra a exploração e a opressão.

Nossa perspectiva é a da revolução mundial contra o capitalismo, pois, sem a alteração estrutural na correlação de forças em medida planetária, não temos nenhuma ilusão de que eventuais conquistas, na escala local ou nacional, possam perdurar contra o cinturão de ferro sistêmico com que o capitalismo hoje asfixia e corrói o planeta. Sem uma união internacional, e a abertura simultânea de frentes de luta em vários países, as conquistas eventuais na esfera local serão breves e sem margem para a consolidação das práticas socialistas, como um novo limiar para a humanidade. Exemplos de revoluções traídas ou sufocadas não faltam: URSS, China, Cuba, Nicarágua etc.

Daí a preocupação em contribuir para a reelaboração de uma nova memória dos combates operários, tanto quanto de toda luta antiexploração e antiopressão de raça e gênero. Reelaboração fundada no rigor crítico e na apuração das verdades do processo histórico, segundo critérios postos por Marx e pela tradição aberta pelo movimento de trabalhadores, mediante a auto-organização na forma de conselhos e organizações federativas similares.

Trabalharemos a partir da crítica e releitura de fontes e documentos históricos, valendo-nos da revista irmã – os Cahiers du mouvement ouvrier, publicados na França desde 1998 – e dos acessos a documentos e materiais por ela obtidos, após a abertura dos arquivos secretos russos; arquivos que estiveram longamente em mãos de burocratas e algozes das lutas contra a opressão e a exploração do trabalho e das formas de vida em geral.

Temos por princípio a concepção de que a clareza e a consistência das razões nascem da escuta sem temor dos confrontos de argumentos e razões, como base empírica indispensável à crítica e à reflexão. Daí a prioridade estratégica dos conflitos de ideias e relatos diversos na construção da memória para esta publicação.

A reconstrução efetiva do movimento operário e do seu papel-chave no processo revolucionário de superação do capitalismo e formação do socialismo na escala internacional só se fará mediante lutas de base e tendo a verdade histórica por apoio real. Exige, pois, tanto estratégia e práxis internacionalistas, quanto a concepção da memória não como algo dado, mas como um processo crítico em elaboração, rumo a um futuro socialista, fraterno e livre, nutrido da discussão e do debate, os mais amplos.

Sem memória comum, não há unidade na luta que seja possível. A unificação das lutas tem por condição o compartilhamento e a universalização das memórias na luta geral contra a exploração e a opressão. Em suma, o internacionalismo e a construção da memória constituem duas faces de um mesmo processo, a que os Cadernos pretendem atender, segundo a consigna de que cada nova luta, para ser vitoriosa, deve portar em si a síntese de todas as lutas passadas, incluindo as derrotadas. Esta é a razão de ser dos Cadernos e da prioridade em termos historiográficos e críticos que atribuiremos, no curso do trabalho editorial, ao internacionalismo e à difusão das memórias de lutas.

“A defesa do movimento operário”, escreve o historiador Jean-Jacques Marie, “é também e em grande parte a preservação de sua memória, de seu passado, de sua história real, cada vez mais obscurecida.” Porém, como processar o trabalho da memória nos dias que correm, em meio a tantos impedimentos que agora envolvem, além de novas formas de controle ideológico, as mais avançadas técnicas industriais de condicionamento das subjetividades e da sociabilidade?

A resposta se encontra, nos parece, no próprio componente histórico do materialismo dialético. Uma história crítica que examine dialeticamente as determinações materiais é tarefa decisiva e urgente; que não se prenda a uma análise meramente evolucionista e empirista de fatos que envolvem os modos de trabalho e a situação da classe operária; que não se limite a uma simples sucessão de fatos desconectados, mas seja percebida a partir da leitura proposta por Marx em que, na dinâmica da investigação, apenas as formas sociais mais evoluídas é que nos oferecem ferramentas para a compreensão das anteriores e não o contrário (afinal, é a partir da anatomia do homem que se conhece a do macaco e não o oposto). Uma recuperação crítica da memória que, enfim, revele, pelas contradições determinadas, a força do movimento operário no curso de seu enfrentamento com o capital no processo de produção da vida material. Sempre segundo a percepção ideológica de que não é na mera observação dos fatos visíveis, de fatos que são revelados, que a história se processa, mas, antes de tudo, naquilo que a burguesia procura ocultar, não exibir no confronto das classes.

Se do materialismo extraímos a dinâmica da vida material no seu dia a dia; se da dialética temos as contradições determinadas; a reflexão histórica, nos termos do materialismo histórico e dialético, é responsável pela conexão dinâmica entre ambos. Assim, os eventos cotidianos da vida produzida materialmente devem ser examinados pelo filtro de suas determinações contraditórias. Enfim, temos em vista uma noção de história nunca percebida por uma causalidade linear, mas sim causas determinadas por formas sociais de produção, condicionadas pela luta de classes como seu motor.

Cadernos do movimento operário no. 1

É assim, por exemplo, conforme textos que publicamos neste primeiro número, que a história da classe trabalhadora é recuperada na percepção de Rosa Luxemburgo, que confronta “o interesse humanitário” da burguesia, despertado diante da morte de milhares à ocasião de um acidente natural (uma erupção vulcânica na Martinica), com a negligência e a total indiferença de classe ante os horrores ocasionados pelo imperialismo. Aparecem assim a hipocrisia e a duplicidade inerentes à estratégia de classe para que persista a exploração.

É desse modo também que se constata estar a história da classe operária escondida na luta empreendida pela burguesia contra trabalhadores e trabalhadoras nos Estados Unidos diante do “perigo vermelho”. Encontram-se elos da mesma cadeia na morte de dezenas de operárias num incêndio, decorrente da incúria (de classe e criminosa) dos patrões, numa fábrica norte-americana.

Sobressai ainda a postura antioperária nas perseguições impostas por Stálin àqueles que lutavam contra o regime imposto na União Soviética em reação à revolução de 1917. Apresentamos relatos e dados concretos de vários episódios que implicaram formas de repressão as mais ferozes e cruentas.

Adversidades e obstáculos históricos da classe operária se revelam ainda na restrição à circulação de documentos que apontavam as vantagens indevidas, auferidas por alguns membros da cúpula dirigente bolchevique, como salienta o relatório inédito de Preobrajênski, acerca dos privilégios dos habitantes do Kremlin, datado de julho de 1920, aqui publicado.

É nesta linha que está situado o desafio dos Cadernos: percorrer a história da classe trabalhadora, em especial de momentos decisivos da primeira metade do século XX, segundo uma percepção materialista histórico-dialética.

No Brasil e na maioria dos países, o capital está na ofensiva, sem pactos de conciliação, tréguas ou acordos, para restaurar ganhos ou simplesmente lucrar com a crise. A guerra de classes está se fazendo sem meios-termos. Não serão as políticas reformistas e de conciliação que irão reverter tal processo. Em tal quadro, os discursos nacionalistas constituem hoje o eixo comum dos movimentos que promovem a degradação da vida das maiorias e o aumento de sua exploração.

No combate ao capital e aos chavões neofascistoides ora em circulação, nossa estratégia consiste em articular as duas vertentes, a do internacionalismo e a da memória, retomadas como duas faces de uma mesma moeda. Somente da sua compreensão conjunta será possível concretizar a união dos operários e operárias – com maiorias oprimidas e desapossadas do mundo inteiro – para a vitória efetiva e duradoura sobre o capital.

*A editoria dos Cadernos do movimento operário é composta por Ana Paula Pacheco, Baptiste Grasset, Bernardo Cerdeira, Jorge Grespan, Luiz Renato Martins, Marcus Orione, Osvaldo Coggiola, Plínio de Arruda Sampaio Jr. e Rodrigo Ricupero. Editores associados, em Paris: Frank La Brasca e Jean-Jacques Marie.

Referência


Cadernos do movimento operário no. 1. São Paulo, Sundermann / WMF Martins Fontes, out.2021.

Painéis de lançamento da revista [https://www.youtube.com/channel/UCZ1fjLXs_YBZxdMoKid-l0Q]

26/10/2021, 18h-19h – “CMO 1 e a história do movimento operário: uma revista contra a negação, o apagamento e a falsificação de dados e documentos”; com

Angela Mendes de Almeida; Magno de Carvalho; Zé Maria de Almeida; Luiz Renato Martins.

09/11/2021, 18h-19h – “O trabalho operário nos Estados Unidos: situações 1911-1920”; com Aldacy Rachidi; Atnágoras Lopes; Flávio Roberto Batista; Marcus Orione.

16/11/2021, 18h-19h – “A decomposição do partido e o stalinismo”; com Altino Prazeres; David Maciel; Mauro Iasi (PCB); Plínio de Arruda Sampaio Júnior.

23/11/2021, 18h-19h – “A resistência a Stálin e a caça aos trotskistas”; com Dainis Karepovs; Bernardo Cerdeira; Osvaldo Coggiola e Rodrigo Ricupero.

 

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