Trotsky e as lições da Revolução Russa

Artista desconhecido, Leon Trotski, s/d
image_pdf

Por MICHEL GOULART DA SILVA*

Em Lições de Outubro encontra-se um dos primeiros embates de Trotsky no sentido da defesa de uma escrita política da história do processo revolucionário de 1917

O ano de 1924 marca não apenas a morte de Lênin, mas também se constituiu em um marco simbólico para o domínio de Stálin tanto no interior do Partido Bolchevique como no governo da União Soviética. Com isso, também ganharam força os grupos de oposição, em especial a Oposição de Esquerda, liderada por Leon Trotsky. Quando o desenvolvimento da burocracia stalinista ainda era um processo em gestação, Trotsky apontou diversas críticas a isso, sendo produto desse embate inicial obras como Literatura e revolução, de julho de 1924, e Lições de Outubro, concluído em setembro do mesmo ano.

Em Lições de Outubro encontra-se um dos primeiros embates de Trotsky no sentido da defesa de uma escrita política da história do processo revolucionário de 1917. O stalinismo veio a ser notório pela deturpação dos fatos relacionados a qualquer processo político, tanto na União Soviética como nos demais países para os quais seus métodos e concepções foram sendo paulatinamente exportados. Trotsky percebeu esse processo ainda em germinação, defendendo a necessidade de estudar a fundo os documentos e o processo político da Revolução Russa.

Em Lições de Outubro, Trotsky chamava a atenção para a escassez de obras produzidas acerca da Revolução de Outubro. Trotsky afirmava que “ainda não dispomos de uma única obra que dê um quadro geral seu, fazendo sobressair os seus principais momentos dos pontos de vista político e organizativo”, nem tendo sido editados, inclusive, “os materiais que caracterizam os diferentes aspectos da preparação da revolução ou a própria revolução”.[i] Depois da vitória da insurreição, segundo Trotsky, parece que “decidimos nunca mais ter que o repetir; parece que não esperávamos uma utilidade direta do estudo de Outubro e das condições da sua preparação imediata, quanto às tarefas urgentes de organização ulterior”.[ii]

Diante das derrotas da revolução na Europa, em especial diante da experiência na Alemanha, verificou-se “que na ausência de um partido capaz de o dirigir, o golpe de força proletário tornava-se impossível. O proletariado não pode conquistar o poder através de uma insurreição espontânea”.[iii] Diante disso, Trotsky afirma que seria preciso “(…) pôr na ordem do dia, no partido e em toda a Internacional, o estudo da Revolução de Outubro. É preciso que todo o nosso partido e particularmente as juventudes estudem minuciosamente a experiência de outubro, que nos forneceu uma verificação incontestável do nosso passado e nos abriu uma ampla porta para o futuro”.[iv]

Constatadas as limitações no campo dos estudos acerca de Outubro, Trotsky aponta que, mesmo que não fosse que se repetir na Rússia a experiência da Revolução de Outubro, ela teria que ser estudado, principalmente pelo fato de o proletariado dos demais países ter “que resolver o seu problema de Outubro”.[v] Para Trotsky, isso não significava que a experiência russa devesse ser um modelo a ser seguido mecanicamente pelos demais partidos, afinal “cada povo, cada classe e até cada partido se educam sobretudo a partir de sua própria experiência”.[vi] Nos demais países, como o foi para a Rússia, seria preciso um conhecimento profundo da situação econômica e política concreta, identificando a dinâmica própria da luta de classes, sendo a experiência russa uma referência de possíveis caminhos e não um modelo fechado.

Essas reflexões de Trotsky estavam voltadas principalmente para o público de militantes do partido e da Internacional Comunista. Naquele momento, o stalinismo começava a ganhar espaço e se esboçava o processo que levaria à burocratização do poder soviético e às formulações do socialismo em um só país. No ano anterior à publicação de Lições de Outubro, começou a se organizar no interior do partido soviético o setor que viria a ser conhecido como Oposição de Esquerda, criticando o processo de burocratização do partido e a política econômica levada a cabo por Stalin e seus aliados.

Um dos aspectos mais interessantes do livro de Trotsky é refletir, ainda que de forma embrionária, sobre o processo de crise aberto com a derrota dos processos revolucionários na Europa e seu impacto sobre o ânimo da militância comunista, especialmente diante do ascenso do fascismo na Itália, a partir de 1922, e das sucessivas derrotas ocorridas na Alemanha, entre 1919 e 1923. Em reflexão sobre a dinâmica organizativa do partido, afirma Trotsky:

“Regra geral, as crises no partido surgem a cada viragem importante, como prelúdio ou consequência. É que cada período de desenvolvimento do partido tem os seus traços especiais, exigindo determinados hábitos e métodos de trabalho. Uma mudança tática acarreta uma ruptura mais ou menos importante nesses hábitos e métodos: nele reside a causa direta dos choques e das crises”.[vii]

Essa reflexão procura mostrar como a dinâmica da luta de classes e as disputas políticas na sociedade podem impactar a organização revolucionária. Trotsky, em referência à dinâmica dos processos políticos, aponta que,

“(…) se a viragem tiver sido demasiadamente brusca ou inesperada e o período posterior tiver acumulado demasiados elementos de inércia e de conservadorismo nos órgãos dirigentes do partido, este revelar-se-á incapaz de assumir a direção no momento mais grave, para o qual vinha se preparando durante anos ou dezenas de anos. O partido deixar-se-á devastar por uma crise e o movimento passará batido por ele, em direção à derrota”.[viii]

Em grande medida essa é a descrição da atuação stalinista em diferentes experiências ao longo de décadas. Trotsky, em sua reflexão, aponta para o papel central do partido no processo revolucionário. Nesse sentido, Trotsky afirma que “a revolução proletária não pode triunfar sem o partido, contra o partido ou através do partido”.[ix] Para Trotsky, “o papel do partido é tanto maior quanto mais formidavelmente recrudesceu a consciência de classe do seu inimigo”.[x]

Segundo Trotsky, essa importância fundamental do partido não nasce do acaso. Os membros do partido devem entender o processo que levou à situação política e organizativa tanto do proletariado como da própria organização dos trabalhadores. Nesse sentido, retomando a importância do estudo da experiência revolucionária russa, Trotsky aponta que “o partido pode e deve conhecer todo o seu passado para apreciá-lo convenientemente e pôr as coisas nos seus devidos lugares. A tradição de um partido revolucionário não é feita de reticências, mas de clareza política”.[xi]

Os argumentos apontados por Trotsky para destacar a importância de se estudar o processo revolucionário russo estão relacionados às especificidades do próprio período, baseados pincipalmente nas necessidades da luta dos trabalhadores, no papel da organização política e na defesa do internacionalismo proletário.

*Michel Goulart da Silva é doutor em história pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e técnico-administrativo no Instituto Federal Catarinense (IFC).


[i] Leon Trotsky. As lições de outubro. São Paulo: Sundermann, 2007, p. 21.

[ii] Leon Trotsky. As lições de outubro. São Paulo: Sundermann, 2007, p. 21.

[iii] Leon Trotsky. As lições de outubro. São Paulo: Sundermann, 2007, p. 24.

[iv] Leon Trotsky. As lições de outubro. São Paulo: Sundermann, 2007, p. 25.

[v] Leon Trotsky. As lições de outubro. São Paulo: Sundermann, 2007, p. 22.

[vi] Leon Trotsky. As lições de outubro. São Paulo: Sundermann, 2007, p. 25.

[vii] Leon Trotsky. As lições de outubro. São Paulo: Global, 1979, p. 27.

[viii] Leon Trotsky. As lições de outubro. São Paulo: Global, 1979, p. 27-8.

[ix] Leon Trotsky. As lições de outubro. São Paulo: Global, 1979, p. 114.

[x] Leon Trotsky. As lições de outubro. São Paulo: Global, 1979, p. 115.

[xi] Leon Trotsky. As lições de outubro. São Paulo: Global, 1979, p. 117.


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
A rede de proteção do banco Master
28 Nov 2025 Por GERSON ALMEIDA: A fraude bilionária do banco Master expõe a rede de proteção nos bastidores do poder: do Banco Central ao Planalto, quem abriu caminho para o colapso?
2
A poesia de Manuel Bandeira
25 Nov 2025 Por ANDRÉ R. FERNANDES: Por trás do poeta da melancolia íntima, um agudo cronista da desigualdade brasileira. A sociologia escondida nos versos simples de Manuel Bandeira
3
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
4
A arquitetura da dependência
30 Nov 2025 Por JOÃO DOS REIS SILVA JÚNIOR: A "arquitetura da dependência" é uma estrutura total que articula exploração econômica, razão dualista e colonialidade do saber, mostrando como o Estado brasileiro não apenas reproduz, mas administra e legitima essa subordinação histórica em todas as esferas, da economia à universidade
5
A disputa mar e terra pela geopolítica dos dados
01 Dec 2025 Por MARCIO POCHMANN: O novo mapa do poder não está nos continentes ou oceanos, mas nos cabos submarinos e nuvens de dados que redesenham a soberania na sombra
6
Colonização cultural e filosofia brasileira
30 Nov 2025 Por JOHN KARLEY DE SOUSA AQUINO: A filosofia brasileira sofre de uma colonização cultural profunda que a transformou num "departamento francês de ultramar", onde filósofos locais, com complexo de inferioridade, reproduzem ideias europeias como produtos acabados
7
Raduan Nassar, 90 anos
27 Nov 2025 Por SABRINA SEDLMAYER: Muito além de "Lavoura Arcaica": a trajetória de um escritor que fez da ética e da recusa aos pactos fáceis sua maior obra
8
A feitiçaria digital nas próximas eleições
27 Nov 2025 Por EUGÊNIO BUCCI: O maior risco para as eleições de 2026 não está nas alianças políticas tradicionais, mas no poder desregulado das big techs, que, abandonando qualquer pretensão de neutralidade, atuam abertamente como aparelhos de propaganda da extrema-direita global
9
O empreendedorismo e a economia solidária
02 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Os filhos da classe média tiveram que abandonar seu ambicionado projeto de explorar os integrantes da classe trabalhadora e foram levados a desistir de tentar vender sua própria força de trabalho a empresas que cada vez mais dela prescindem
10
Totalitarismo tecnológico ou digital
27 Nov 2025 Por CLAUDINEI LUIZ CHITOLINA: A servidão voluntária na era digital: como a IA Generativa, a serviço do capital, nos vigia, controla e aliena com nosso próprio consentimento
11
Walter Benjamin, o marxista da nostalgia
21 Nov 2025 Por NICOLÁS GONÇALVES: A nostalgia que o capitalismo vende é anestesia; a que Benjamin propõe é arqueologia militante das ruínas onde dormem os futuros abortados
12
Biopoder e bolha: os dois fluxos inescapáveis da IA
02 Dec 2025 Por PAULO GHIRALDELLI: Se a inteligência artificial é a nova cenoura pendurada na varinha do capital, quem somos nós nessa corrida — o burro, a cenoura, ou apenas o terreno onde ambos pisam?
13
O arquivo György Lukács em Budapeste
27 Nov 2025 Por RÜDIGER DANNEMANN: A luta pela preservação do legado de György Lukács na Hungria de Viktor Orbán, desde o fechamento forçado de seu arquivo pela academia estatal até a recente e esperançosa retomada do apartamento do filósofo pela prefeitura de Budapeste
14
Argentina – a anorexia da oposição
29 Nov 2025 Por EMILIO CAFASSI: Por que nenhum "nós" consegue desafiar Milei? A crise de imaginação política que paralisa a oposição argentina
15
O parto do pós-bolsonarismo
01 Dec 2025 Por JALDES MENESES: Quando a cabeça da hidra cai, seu corpo se reorganiza em formas mais sutis e perigosas. A verdadeira batalha pelo regime político está apenas começando
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES