Um estranho casamento: neoliberalismo e nacionalismo de direita

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Por Luiz Carlos Bresser-Pereira*

Enquanto, desde 2008, o neoliberalismo está em crise econômica no mundo rico, e, desde 2016, em crise política, sob ataque de um nacionalismo de direita, no Brasil existe hoje um hoje um estranho casamento entre o neoliberalismo e esse tipo de nacionalismo. A crise de 2008 marcou o fracasso de 40 anos de reformas econômicas neoliberais que prometiam um tempo novo e maravilhoso para o capitalismo.

Oito anos depois, ela se transformou em crise também política. A eleição de Donald Trump e o Brexit indicaram o surgimento, no coração anglo-saxão do neoliberalismo, de uma reação nacionalista de direita. No mundo rico os líderes nacionalistas de direita são chamados de “populistas” e são vistos como uma ameaça à “democracia liberal”, embora, como argumento neste ensaio, eles estão atacando o neoliberalismo e seu projeto, a globalização. No Brasil, o governo Bolsonaro é um governo neofascista que ataca não apenas a democracia, mas também o Estado do bem-estar social, os direitos republicanos e o meio ambiente. No entanto, ao invés de se opor ao neoliberalismo como acontece no Norte, a ele se associa. Como explicar essa confusão que assola tanto o mundo rico quanto o Brasil?

A virada neoliberal – a virada de um regime de política econômica keynesiano ou desenvolvimentista para um regime neoliberal – ocorreu no mundo rico em 1980. No Brasil, ocorreu dez anos mais tarde, em 1990, ano em que o Brasil abriu a sua economia no plano comercial e, logo em seguida, no plano financeiro. No centro do capitalismo, nos quarenta anos seguintes, os resultados da virada neoliberal foram baixo crescimento, alta instabilidade financeira, e radical aumento das desigualdades.

No Brasil, a virada liberal a partir de 1990 resultou em forte desindustrialização, quase-estagnação econômica, e alta instabilidade financeira. Não significou, porém, aumento das desigualdades. Pelo contrário, entre o Plano Real, de 1994, até 2014, o Brasil experimentou grande redução da pobreza e razoável diminuição das desigualdades. Esse bom resultado derivou do Pacto Democrático-Popular que levou o Brasil à transição democrática em 1985, da aprovação de uma Constituição progressista em 1988, do controle da alta inflação inercial em 1994, e da eleição de um governo de centro-esquerda comandado pelo Partido dos Trabalhadores em 2002.

Do desenvolvimentismo ao neoliberalismo

Por que, depois de 50 anos de sucesso do desenvolvimentismo, ocorreu a virada neoliberal? Por que ela fracassou tanto no mundo rico quanto no Brasil? E por que o nacionalismo de direita que derivou desse fracasso se voltou contra o neoliberalismo e a globalização no mundo rico, enquanto no Brasil tratou de se associar ao neoliberalismo?

Para responder a estas questões vou me valer da economia política e da teoria econômica novo-desenvolvimentista que nestes últimos dezoito anos um grupo de economistas brasileiros vem desenvolvendo. Uma teoria que se apoia na teoria keynesiana e na teoria desenvolvimentista clássica, e se contrapõe às teorias liberais: neoclássica e austríaca.

O Novo Desenvolvimentismo considera o mercado uma maravilhosa instituição regulada pelo Estado, que é insubstituível na coordenação dos setores competitivos da economia, mas julga necessária a intervenção do Estado nos setores não-competitivos da economia e nos preços macroeconômicos (taxa de juros, taxa de câmbio, taxa de salários, taxa de inflação e taxa de lucro) que o mercado é incapaz de manter equilibrados ou certos.

Sem uma política macroeconômica ativa, principalmente uma política cambial, é impossível assegurar às boas empresas existentes no território nacional condições de igualdade na competição com as empresas dos demais países. Já as teorias liberais entendem o mercado como uma espécie de mecanismo providencial, capaz de coordenar de maneira quase ótima o sistema econômico, devendo o Estado se limitar a garantir a propriedade e os contratos e a manter as contas públicas equilibradas (deveria também defender a competição contra monopólios e carteis, mas isto é feito apenas retoricamente).

Para o Novo Desenvolvimentismo o capitalismo é desenvolvimentista quando, além da intervenção moderada do Estado, pratica nacionalismo econômico igualmente moderado, e conta com o apoio político de uma coalizão de classes desenvolvimentista, geralmente formada por empresários industriais, trabalhadores e burocracia pública. O capitalismo é liberal quando pratica o laissez faire. Destas definições podemos distinguir no capitalismo duas formas históricas de coordenar as ações dos agentes econômicos e assim organizar o capitalismo: a forma desenvolvimentista e a liberal.

Em todos os países a revolução industrial e capitalista – o momento fundamento na afirmação de uma Nação – aconteceu no quadro do desenvolvimentismo. Em países como o Reino Unido e a França (que realizaram cedo essa revolução industrial), seu capitalismo tornou-se liberal em meados do século XIX, voltou a ser desenvolvimentista no após-guerra, na sua Era Dourada, e regrediu para o neoliberalismo a partir dos anos 1980.

Já nos países que realizaram sua revolução industrial mais tarde, como foi o caso dos EUA, em meados do século XIX, e do Brasil, já no século XX, o capitalismo se tornou liberal respectivamente nos anos 1980 e nos anos 1990.

Hoje somos levados a crer que o capitalismo nos Estados Unidos foi sempre liberal, mas isto é falso. O capitalismo americano só se tornou liberal a partir de 1980. Antes, o peso do republicanismo assim como o nacionalismo econômico foram grandes nos Estados Unidos desde os Founding Fathers; o país manteve elevadas tarifas alfandegárias até 1939, o papel do Estado foi sempre crucial no desenvolvimento tecnológico, e o Banco Mundial, controlado pelos Estados Unidos, foi o maior centro de irradiação do desenvolvimentismo até 1980. Com a dominação neoliberal e individualista que ocorre a partir de então, o republicanismo foi colocado de lado e teve início a crise moral e política, e a divisão radical da sociedade americana, que até os anos 1960 era impressionantemente coesa.

O papel dos economistas

Nesta conversão para o neoliberalismo o papel dos economistas foi importante. Como a ciência econômica é a ciência dos mercados, os economistas tendem a professar o liberalismo econômico. Foi assim com os economistas clássicos, e é hoje assim com os economistas da escola austríaca e os da escola neoclássica. São eles os economistas ortodoxos que, com suas teorias abstratas, hipotético-dedutivas, se sentem legitimados em sua defesa do mercado e de uma ciência pura.

Nos anos 1930, porém, graças à revolução representada pela teoria keynesiana e ao surgimento, na década seguinte, do desenvolvimentismo clássicos, a profissão se tornou pela primeira vez dominantemente desenvolvimentista. E tivemos então os acordos de Bretton Woods e a Era Dourada do capitalismo. Um grande momento de crescimento, estabilidade financeira, impostos fortemente progressivos e diminuição das desigualdades. A partir, porém, da virada neoliberal, a escola neoclássica voltou a ser dominante.

No Brasil, a revolução industrial e capitalista ocorreu entre 1930 e 1980. A renda cresceu extraordinariamente, a uma taxa por habitante de 4% ao ano, a economia brasileira se industrializou, e o catching up se tornou realidade na medida que a distância da renda por habitante brasileira em relação à dos países ricos diminuiu. Os políticos e o economistas brasileiros tinham então como lema a mudança estrutural, a industrialização.

Por outro lado, o fato de nos países centrais a macroeconomia keynesiana – uma teoria desenvolvimentista porque defensora de uma intervenção moderada do Estado – haver se tornado dominante reduziu a pressão da ideologia do laissez faire sobre as elites econômicas e os políticos e economistas brasileiros. Possibilitou também que o centro imperial – que sempre se opusera à industrialização da periferia – abrandasse essa pressão, favorecendo o desenvolvimento do Brasil.

Depois da Era Dourada

A Era Dourada do capitalismo terminou em meados dos anos 1970, quando as economias ricas, principalmente a americana e a britânica, enfrentaram uma crise de baixo crescimento e queda da taxa de lucro.

Surge, então, uma nova e estreita coalizão de classes neoliberal formada por rentistas e financistas – um pacto político informal que contou, naturalmente, com o apoio dos economistas portadores de doutorado nos Estados Unidos e no Reino Unido, os novos intelectuais orgânicos do capitalismo. A nova narrativa neoliberal – formulada por intelectuais eminentes, principalmente economistas – revelou-se uma narrativa forte que criticava os erros cometidos pelos governos desenvolvimentistas anteriores, atendia aos interesses da coalizão financeiro-rentista, e foi propelida pelo colapso do projeto comunista e da União Soviética.

Nos anos 1990 o neoliberalismo se tornou hegemônico – a terra, agora, “era plana”, uma única verdade valia agora para todo o globo terrestre. E continha, naturalmente, uma promessa. As “reformas” trariam ao mundo a prosperidade, a estabilidade e o bem-estar.

Os modelos matemáticos da teoria neoclássica (a principal escola liberal de economia) deram justificativa “científica” para as reformas neoliberais – a liberalização comercial e financeira, as privatizações de monopólios públicos, a desregulação generalizada dos mercados. Reformas que em pouco tempo mudaram o regime de política econômica do mundo rico. O qual, sob o comando dos Estados Unidos, não teve dúvida em procurar impô-las aos países periféricos como o Brasil. Para isso usaram como instrumentos o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial, e a Organização Mundial do Comércio, e se valeram da debilidade desses países causada pela crise da dívida externa dos anos 1980.

O neoliberalismo no Brasil

O Brasil se rendeu à nova verdade em 1990. Nesse ano realizou a reforma comercial, em 1992, a reforma financeira, em 1995, as privatizações dos serviços públicos monopolistas, e, em 1999, a flutuação do Real, que até então obedecia ao regime de minidesvalorizações. Dessa maneira, seu regime de política econômica mudou de desenvolvimentista para liberal. Algo que aconteceu também em toda a América Latina e na África. A grande exceção foram os países do Leste da Ásia, que, como não exportavam commodities, já eram economias voltadas para a exportação de bens manufaturados.

Estava então ocorrendo um processo real de globalização causado pela diminuição dos custos dos transportes e das comunicações, enquanto os países periféricos de renda média como o Brasil estavam fazendo sua transição para a democracia. Os Estados Unidos, exercendo seu papel de líder do Ocidente, transformou os dois fatos em dois projetos: o projeto da “globalização” através do qual todas os mercados nacionais se abririam e os Estados-nação perderiam relevância, e o projeto da “democracia liberal” que tornaria todos os países democráticos independentemente de seu grau de desenvolvimento econômico.

Os dois projetos eram irrealistas e fracassaram. O mundo rico estava certo que seria o grande vitorioso da globalização, mas os verdadeiros vencedores foram a China e, mais recentemente, também a Índia. Quanto à proposta de tornar a democracia liberal dominante no mundo periférico, os Estados Unidos a adotaram em torno de 1980 como uma estratégia para evitar o surgimento de líderes políticos nacionalistas. Também fracassaram. Continuaram a surgir lideres nacionalistas na periferia, e alguns deles, como Lula no Brasil, os Kirchner na Argentina, Erdogan na Turquia, Evo Morales na Bolívia, e Rafael Correa no Equador foram razoavelmente bem-sucedidos. Houve também grandes fracassos como o ocorrido na Venezuela de Chávez e Maduro.

Os países periféricos mais desenvolvidos como o Brasil lograram fazer a transição para uma democracia razoavelmente consolidada, mas o fizeram a partir de suas próprias capacidades. Quando aconteceu o impeachment de Dilma Rousseff em 2016, esse grave ataque à democracia teve o apoio dos Estados Unidos mostrando como é vazia sua proposta de democratização. Muitos países mais pobres, que ainda não completaram sua revolução capitalista, também se tornaram democráticos, mas sua democracia se mostrou instável, antes fruto de uma pressão externa do que de uma demanda interna.

No Brasil, onde a transição democrática ocorreu em 1985, tanto os governos de centro-direita quanto de centro-esquerda não lograram retomar o crescimento que havia sido interrompido em 1980. A transição democrática foi beneficiada pelas crises da dívida externa e da alta inflação inercial iniciadas em 1980, mas o governo Sarney (1985-1990), marcado por um desenvolvimentismo incompetente, foi incapaz de resolver os dois problemas.

A eleição de um governo neoliberal, no final de 1989, marcou o fracasso desse populismo fiscal e a mudança do regime de política econômica para o liberalismo econômico. Desde 1990 esse regime de política econômica é dominante no Brasil.

Nos anos de governo do Partido dos Trabalhadores (2003-2016), ainda que se tenha procurado adotar políticas industriais e se promoveu o aumento necessário naquele momento do salário mínimo, o liberalismo econômico continuou dominante. Houve apenas uma tentativa, em 2011, de retornar ao regime desenvolvimentista, mas foi uma tentativa mal concebida e logo abandonada.

O regime de política econômica liberal que preside o Brasil desde 1990 foi caracterizado pelo populismo econômico – algo diferente do populismo político. O populismo político implica a existência de um líder político que logra estabelecer uma relação direta com o povo sem a intermediação das ideologias e os respectivos partidos políticos. O populismo econômico significa gastar irresponsavelmente mais do que se ganha. Se quem gastar for o país como um todo, haverá déficits crônicos em conta-corrente e o populismo será cambial. Se for o Estado que gasta de forma irresponsável e incorre em déficits públicos crônicos teremos o populismo fiscal.

Em consequência dessas duas formas de populismo, dos dois respectivos déficits, e do fato que a abertura comercial em 1990 desmontou o mecanismo que neutralizava a doença holandesa, o país ficou preso em uma armadilha de juros altos e de câmbio apreciado que tornaram as empresas industriais não-competitivas e inviabilizaram seus investimentos. Em consequência apenas dos déficits públicos, que também se deveu à captura do Estado de um lado por rentistas e financistas e, de outro, por uma burocracia pública privilegiada, a poupança pública que existia nos anos 1980 foi transformada em despoupança, e os necessários investimentos públicos na infraestrutura do país deixaram de ser realizados.

Os resultados econômicos da dominação neoliberal foram lamentáveis para o Brasil. Entre 1980 e 2019 a taxa de crescimento por habitante foi de apenas 0,8% ao ano, enquanto no conjunto dos países periféricos foi de 3%. Nos países ricos, foi de 1,9%. Os bens manufaturados representavam 62% do total das exportações; hoje representam apenas 30%.

Depois da crise de 2008

Eis senão quando a crise financeira global de 2008 joga água fria na ortodoxia liberal. De repente o capitalismo nos países centrais, que desde meados dos anos 1990 comemorava “a grande moderação”, se se via diante de uma crise que a teoria dominante dizia “não poder acontecer”. Os governos, pragmáticos ou sem alternativa, reagiram com forte expansão fiscal. Evitou-se, assim, que a crise assumisse um caráter incontrolável.

Em seguida, porém, os governos se retraíram, voltaram à ortodoxia fiscal, e as economias centrais passaram a crescer lentamente. Quem respondeu de forma radical à quase-estagnação foram os bancos centrais. Os bancos dos Estados Unidos, do Reino Unido, da Europa e do Japão passaram a emitir moeda comprando títulos públicos e privados – e os mercados financeiros usaram um eufemismo para denominar essa emissão: quantitative easing. Não houve, porém, qualquer aumento da inflação.

Ao mesmo tempo, diante da armadilha da liquidez, baixaram mais e mais as taxas de juros, que, no caso do Japão, do Banco Central Europeu e de vários outros países ricos se tornaram negativas. Mas as taxas negativas de juro tiveram pouca influência em aumentar os investimentos e levar os países ricos a crescer. Apenas os Estados Unidos, onde as taxas de crescimento continuaram razoáveis, não recorreram aos juros negativos. Já a Europa foi profundamente abalada pelo equívoco que foi a criação do euro. Um erro tão grande quanto foi um grande acerto ter criado a União Europeia.

Desde 2008 a economia mundial está em “estagnação secular” – uma palavra que não significa zero crescimento, mas demanda agregada frouxa, taxas de juros baixas, e taxas de investimento e de crescimento igualmente baixas. Agora significa também emissão de moeda sem inflação e taxas negativas de juros.

Os rentistas, tanto os pequenos quanto os grandes, estão pagando o custo da crise de 2008 com os juros negativos que já alcançam cerca de um terço dos ativos financeiros das famílias. Os pequenos rentistas e os aposentados protestam; os grandes rentistas estão sendo obrigados a rever sua fé no liberalismo econômico radical que apoiaram nos últimos 40 anos. Um capitalismo que nesse período se tornou um capitalismo financeiro-rentista, estabeleceu o liberalismo econômico como religião, o combate à inflação como the only game in town,e tornou os muito ricos ainda mais ricos. De repente, porém, não obstante a prioridade que sempre deram a taxas nominais de juros relativamente altas e a inflação baixa para lograrem o aumento dos juros reais, estes se tornaram negativos.

Muitos ainda se sentem surpreendidos pelo caráter não inflacionário da emissão de moeda, porque acreditam ainda na fábula conhecida pelo nome de “teoria monetarista da inflação”. Uma teoria que se tornou dominante com a virada neoliberal de 1980, mas os bancos centrais, que são mais comprometidos com a realidade e precisam apresentar resultados, logo a abandonaram. Substituíram a teoria monetarista por uma estratégia pragmática de metas de inflação, e voltaram a aumentar a taxa de juros toda vez que a demanda se aquece e a inflação ultrapassa a meta. Diante deste fracasso teórico, os economistas neoclássicos deixaram de falar na teoria monetarista, literalmente a esqueceram, mas preservaram o coração neoclássico de sua visão da teoria econômica (o modelo do equilíbrio geral e o modelo das expectativas racionais) e sua política macroeconômica – a ortodoxia liberal – voltada para a austeridade fiscal.

A revisão da teoria econômica

Estagnação secular, emissão de moeda sem causar inflação, juros negativos; a economia capitalista e a teoria econômica estão de pernas para o ar. Torna-se hoje necessário rever a teoria econômica. Os neoclássicos com seu liberalismo econômico radical não têm uma explicação. Os desenvolvimentistas keynesianos, que defendem intervenção moderada do Estado na economia, veem confirmada a tendência à insuficiência de demanda que existe no capitalismo, mas isto não explica juros tão baixos.

Os marxistas, que não fazem propostas de política econômica, mas fazem análises muitas vezes instigantes do capitalismo, lembram que a taxa de juros é o preço que os capitalistas ativos estão dispostos a pagar aos rentistas pelo empréstimo do seu dinheiro. Mas nesses termos as taxas de lucro deveriam ter caído para que as taxas de juros tivessem caído como caíram. E não foi isso que aconteceu. As taxas de lucros no capitalismo desenvolvido continuam satisfatórias, não obstante a insuficiência de demanda. Isto é possível porque as grandes empresas não param de realizar fusões e aquisições e seu poder de monopólio é hoje enorme.

Os novos-desenvolvimentistas têm uma explicação: o excesso de capitais, a brutal profusão de capitais que caracteriza hoje o capitalismo financeiro-rentista. John K. Galbraith teve uma intuição desse fato quando, em seu grande livro, O Novo Estado Industrial (1967), afirmou que o capital deixou de ser o fator estratégico de produção porque se tornara abundante e estava sendo substituído pelo conhecimento técnico-organizacional.

Mas a causa maior para a profusão de capitais de hoje é um fato histórico novo: os dois mecanismos que extinguiam os capitais – as grandes crises e as grandes guerras – não acontecem mais desde 1929 e 1945. Desde então o estoque de capitais não para de crescer pela simples acumulação de ativos financeiros. Ativos supostamente líquidos que não são mais expressos na propriedade de fábricas, plantações, edifícios, equipamentos de infraestrutura, de ativos tangíveis, mas através de títulos de crédito dos mais variados tipos.

Um capital móvel, que não tem qualquer valor em si mesmo, que vale pelo que rende a cada momento, serve de base para a financeirização, para o aumento do poder dos financistas e o aumento da participação das empresas financeiras na renda nacional. Um capital que não está mais sujeito à desvalorização que geralmente ocorria devido ao envelhecimento dos empresários e a incompetência dos herdeiros. Nesses capitalismo financeiro-rentista, os herdeiros ou rentistas continuam incompetentes, mas suas empresas não se depreciam mais porque são absorvidas pelas corporações e geridas por administradores profissionais.

Nesse capitalismo os lucros são altos, porque são lucros monopolistas. Não obstante, as empresas investem pouco, porque não existem boas oportunidades de investimento voltados para a expansão da demanda. Tanto assim que elas não reinvestem seus lucros no próprio negócio, ou em algum setor paralelo no qual tenham competência, mas compram suas próprias ações ou distribuem dividendos, deixando o problema da aplicação dos recursos para os acionistas.

O nacionalismo de direita

No mundo rico a crise política do neoliberalismo ou da globalização como projeto tornou-se clara em 2016, oito anos depois da crise global. Como explicar essa crise? As elites neoliberais e seus economistas estão essencialmente equivocados a respeito. Eles dizem que o governo Trump e o Brexit, assim como o nacionalismo de direita em países periféricos como a Polônia e a Hungria são manifestações de um “populismo” que ameaça a democracia liberal.

Eu prefiro entender esses líderes e os movimentos políticos que lhes dão suporte como nacionalistas de direita. São nacionalistas econômicos nos Estados Unidos e no Reino Unidos, nacionalistas também étnicos na Polônia e Hungria; são conservadores porque pretendam falar em nome do povo embora defendem os interesses dos ricos, e porque, no plano comportamental, rejeitam os direitos das mulheres ao seu próprio corpo, os direitos dos LBGTI e dos povos indígenas.

Meu desacordo maior, porém, não é quanto à definição de Trump e do Brexit como populistas, desde que fique claro seu nacionalismo econômico. Meu desacordo é quanto à afirmação que eles estão voltados contra a democracia. Não, eles estão voltados fundamentalmente contra o neoliberalismo, porque nos Estados Unidos e no Reino Unido não foi a democracia que fracassou, mas o projeto neoliberal da globalização. Não apenas porque o grande vitorioso foi a China, mas também porque os políticos nacionalistas se deram conta que podiam contar com o apoio eleitoral dos trabalhadores brancos da baixa classe média que foram os grandes prejudicados pelo neoliberalismo – aqueles cujos salários estagnaram ou mesmo caíram em termos reais.

A democracia nesses países é uma democracia basicamente consolidada porque interessa à grande maioria, inclusive às classes médias, mas interessa principalmente às classes populares para quem o sufrágio universal foi uma grande conquista. Uma sociedade é minimamente democrática quando além de garantir os direitos civis, assegura o voto a todos os cidadãos. A democracia interessa menos às elites financeiro-rentistas e neoliberais, que buscam sempre limitar o poder dos eleitores, mas mesmo elas hesitam em defender a volta a regimes autoritários. Os líderes do nacionalismo de direita não são modelos de políticos democráticos, mas seu nacionalismo tem uma base popular que eles não ignoram.

Os ideólogos neoliberais falam em “ameaça à democracia liberal” porque dão ao sistema econômico e político neoliberal o nome de “democracia liberal”. Esses ideólogos evitam usar a expressão neoliberalismo, e quando a usam, o fazem criticamente, colocando a palavra entre aspas. Em seu lugar, falam o tempo todo em “democracia liberal” que seria a maravilhosa realização da boa sociedade. Uma sociedade que eles entendem como ideal, mas, como sabemos, é uma forma de organização social instável e excludente.

Do medo ao ódio

A reação da direita nacionalista ao neoliberalismo que vemos no mundo rico tem uma base lógica: o fracasso do projeto de globalização. Já a associação da extrema-direita neofacista ao neoliberalismo no Brasil é uma associação oportunista mais difícil de explicar.

A economia brasileira também sofreu o impacto da crise financeira global de 2008, mas a crise atual só começou em 2013 e perdura até hoje. Uma crise de longa duração que começou pelo lado político, mas já então refletia a insatisfação de quase todos com a quase-estagnação econômica iniciada nos anos 1980. Em 2013 aconteceram grandes manifestações populares no Brasil que deram início a essa crise. Elas refletiram a insatisfação da classe média tradicional, tanto do seu ramo burguês como do ramo tecnoburocrático ou gerencial.

No quadro de um sistema econômico quase-estagnado essa classe média foi espremida entre as elites financeiro-rentistas e os trabalhadores. Por um lado, pelos muito ricos, cuja riqueza não parou de aumentar; de outro, pelas classes populares que foram beneficiadas, primeiro pela estabilização da alta inflação inercial em 1994, e, segundo, pelas políticas sociais que o governo Cardoso (1995-2003) e principalmente os governos do PT (2003-2016) adotaram. A liberalização comercial e financeira, as desregulamentações e privatizações, e os altos juros beneficiaram diretamente os muito ricos, enquanto as políticas sociais e o aumento do salário mínimo beneficiaram os trabalhadores e os pobres. Nos dois casos, a alta classe média ou classe média tradicional ficou esquecida.

Ocorre então, no Brasil, um terrível processo de polarização política. A sociedade brasileira, que se unira no início dos anos 1980 para construir uma grande coalizão de classes voltada para a democracia e o desenvolvimento social, de repente se viu tomada pelo ódio que começou nas classes médias. E que tinha como principais objetos o PT e Lula.

Percebi esse fato já em 2014 com grande preocupação. Eu nunca havia visto o ódio na política brasileira. Na crise que antecedeu o golpe militar de 1964, eu vi medo nas classes médias. Medo do comunismo, que o presidente João Goulart não justificava, mas que a Revolução Cubana de 1959 e a radicalização da esquerda brasileira explicavam. Agora, porém, o problema não era o medo, mas o ódio. Ódio que é incompatível com a política e a democracia. A política democrática é a luta entre adversários, não é a luta entre inimigos. A democracia supõe a alternância de poder; o ódio, a supressão, a eliminação do inimigo.

Ao mesmo tempo aconteceram dois grandes escândalos: o escândalo do Mensalão, em 2006 que se estendeu até o julgamento dos principais indiciados em 2012, e os escândalos revelados pela operação Lava Jato a partir de 2014. Em ambos estava envolvido o PT, mas estavam também envolvidos praticamente todos os demais partidos políticos. No entanto, o juiz e a força tarefa de procuradores sediados em Curitiba que conduziram a operação Lava Jato perceberam que além do apoio popular conseguiriam o apoio das elites econômicas se concentrassem seus esforços na acusação e condenação de Lula de forma a inviabilizar sua candidatura à presidência. Foi o que fizeram e tiveram êxito. Só agora está ficando claro para todos que eles não estavam trabalhando pela justiça, mas para sua promoção pessoal.

Alguns anos antes, em 2010, Lula realizara um grande governo e terminara sua presidência de maneira triunfal. Contava então com a aprovação de 84% da população, inclusive das elites econômicas. Mas deixou como herança para Dilma Rousseff uma taxa de câmbio brutalmente apreciada. Esse fato, a imediata redução da taxa de crescimento e mais uma sequência de erros econômicos e políticos praticados pela nova presidência fizeram que já no meio do seu segundo ano de governo ela houvesse perdido todo o apoio das elites econômicas que, nas eleições de 2014, se uniram às classes médias para vencê-la. Foram derrotados.

A vitória do PT então revelou-se, porém, uma vitória de Pirro, porque ao mesmo tempo que a presidente não parava de cometer erros, tornou-se claro nos primeiros dois meses de 2015 que o país estava entrando em grave crise fiscal e gravíssima recessão. E que a crise política assumia um novo aspecto. Constitui-se, então, uma impressionante hegemonia ideológica neoliberal. Algo que eu também nunca havia visto antes. No momento em que o neoliberalismo entrava em profunda crise no mundo rico, se tornava dominante no Brasil

As consequências da crise política e da hegemonia neoliberal foram o impeachment de 2016 e a eleição de Jair Bolsonaro à presidência em 2018. Para lograr o impeachment o então vice-presidente Michel Temer, presidente do PMDB, solicitou a intelectuais liberais que produzissem um plano rigorosamente neoliberal para seu partido, o PMDB, para, assim, lograr o apoio das elites neoliberais financeiro-rentistas. Assim conseguiu o impeachment, e assumiu a presidência. Em seguida, o candidato Jair Bolsonaro, que também nunca foi um neoliberal, mas um político de extrema-direita, anunciou antes das eleições o nome do seu futuro ministro da fazenda, um economista fundamentalista de mercado formado pela Universidade de Chicago, obtendo assim também o apoio das classes médias e das elites.

Temos, assim, no Brasil, um estranho casamento, entre um nacionalista de extrema-direita e o neoliberalismo, enquanto no mundo rico o nacionalismo de direita se opõe ao neoliberalismo. Este último pode ser detestável, mas tem uma lógica; significa o reconhecimento do fracasso do projeto de globalização e a defesa do nacionalismo econômico.

Já no caso do Brasil, a lógica é meramente oportunista. Para o presidente foi uma forma de obter o apoio das elites econômicas. Para estas elites, uma forma de obter as reformas que as interessam – que colocam todo o peso do ajuste necessário nas costas dos assalariados, não importando que em troca o governo possa cometer violências contra direitos civis, a Universidade, o ensino fundamental, a cultura, a saúde e a proteção do ambiente.

Algumas dessas reformas econômicas são necessárias, como a da previdência e a reforma trabalhistas, mas poderiam ter sido menos desfavoráveis aos trabalhadores; outras são meramente neoliberais como foi a emenda constitucional que estabeleceu um teto para despesa pública independente do crescimento da população e do PIB.

Existe alguma perspectiva de que esse quadro sombrio que acabei de descrever tanto no plano mundial quanto no caso do Brasil possa ser superado? É possível pensar em um desenvolvimentismo progressista e ambiental? É possível que parte da alta classe média que tem servido de base para o neoliberalismo, e da baixa classe média branca, que tem servido de base para o nacionalismo de direita, se deem conta do quanto vêm sendo prejudicadas tanto pelo neoliberalismo quanto pelo nacionalismo de direita e se somem às classes populares e os intelectuais progressistas?

As dificuldades maiores, no mundo rico, são a desigualdade crescente, a incapacidade do mercado de regular a economia, e o problema da imigração que leva a baixa classe média branca a se sentir ameaçada e a votar em candidatos de direita. As dificuldades maiores no Brasil são a alta preferência pelo consumo imediato expresso no populismo cambial e no populismo fiscal e a incapacidade crescente das elites econômicas e das classes médias de se identificarem com a Nação dificultando que o país volte a ter um projeto nacional de desenvolvimento. E há uma dificuldade básica: falta ao mundo rico e ao Brasil uma teoria econômica e uma narrativa política que deem conta dos desafios que as sociedades modernas hoje enfrentam – uma sociedade que tende a ser global, mas continua a ser principalmente nacional.

*Luiz Carlos Bresser é professor emérito da Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP).

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