Por DENILSON LUÍS WERLE & RÚRION MELO*
Apresentação à edição brasileira do livro de Jürgen Habermas
O primeiro grande clássico de Jürgen Habermas, Mudança estrutural da esfera pública, foi originalmente publicado em 1962. Exatos trinta anos se passaram para que, em 1992, com outro diagnóstico de tempo e outros meios teórico-conceituais, Jürgen Habermas atualizasse sua reflexão sobre a esfera pública no livro Facticidade e validade, onde elaborou uma complexa teoria discursiva do direito e da democracia.
Transformações políticas, culturais e tecnológicas decisivas, alavancadas em um processo de ascensão e crise tanto da democracia quanto do neoliberalismo, e especialmente a escalada de uma direita autoritária em diferentes regiões do planeta, levaram Jürgen Habermas a publicar, em 2022, o seu mais novo livro, Uma nova mudança estrutural da esfera pública e a política deliberativa. A preocupação crítica recente guarda ao me nos uma similaridade em relação ao clássico de 1962.
Nos dois casos, o diagnóstico das mudanças estruturais da esfera pública está na base de uma teoria crítica da democracia que visa não apenas apontar os potenciais de emancipação presentes no teor normativo de uma política deliberativa mais ou menos inscrita nas práticas e instituições do Estado democrático de direito, mas também compreender os momentos de regressão e os obstáculos diante do pano de fundo das crises enfrentadas pelas sociedades capitalistas democráticas modernas. Afinal, “a teoria democrática e a crítica do capitalismo andam juntas” (p. 99).
A questão que serve de fio condutor dos diagnósticos das mudanças estruturais da esfera pública e está na base da teoria crítica da democracia em Jürgen Habermas consiste em examinar as condições sociais (materiais e simbólicas) e institucionais necessárias para a realização efetiva de práticas de autodeterminação política entre cidadãos livres e iguais que, pelo uso público de sua razão, isto é, pela discussão mediante razões, deliberam e tomam decisões coletivas sobre diversas questões políticas de interesse comum.
Trata-se de uma questão que envolve dimensões teórico-explicativas de diagnóstico do tempo presente, bem como dimensões normativas sobre como entender o uso público da razão – no caso de Jürgen Habermas, entender o que é a política deliberativa. E a esfera pública é a categoria central para responder à questão em suas duas dimensões.
Embora a esfera pública seja um fenômeno social que desempenha diferentes funções nas sociedades capitalistas democráticas modernas – e a obra de 1962 ainda estabelece as bases iniciais para sua compreensão –, no presente livro Jürgen Habermas se volta para a “função que a esfera pública cumpre para salvaguardar a existência da comunidade democrática” (p. 28), mais especificamente se debruça sobre a estrutura midiática modificada pelas inovações tecnológicas como as plataformas da mídia social e coleta de big data e seu impacto sobre o processo político.
A ideia central dessa análise é que a existência de uma comunidade democrática, seu desenvolvimento e relativa estabilidade, podem ser avaliados pelos padrões de sua comunicação pública: a hipótese é a de que quanto mais o uso público da razão, isto é, a discussão mediante razões, livre, inclusiva e reflexiva, estiver presente nas práticas deliberativas e nos procedimentos institucionalizados, maior será o nível de democratização de uma sociedade.
Por isso, não é por acaso que o livro começa com uma breve, porém importante, observação metódica sobre a relação entre teoria normativa e teoria empírica para evitar justamente mal-entendidos sobre o sentido da análise da nova mudança estrutural da esfera pública política e suas consequências sobre a concepção de política deliberativa carregada de pressupostos normativos.
Como Jürgen Habermas já deixou claro em outras ocasiões, não se trata de uma contraposição abstrata e filosoficamente ingênua entre ideal normativo e realidade social. Claro, podemos elaborar um rol de diversos indicadores sobre procedimentos democráticos (liberdades iguais e direitos individuais que incluem a todos os concernidos, iguais direitos de comunicação e oportunidades de participação política, eleições livres, competições entre partidos, complexos parlamentares, regra da maioria, alternância de poder etc.) e suas bases sociais (níveis de escolaridade, indicadores de desenvolvimento humano e de bem-estar, acesso ao saneamento básico, moradia, distribuição de renda e riqueza etc.) para operacionalizar empiricamente um conceito de democracia e avaliar se uma determinada sociedade está ou não se aproximando de uma democracia ideal.
Ou podem ser avaliadas uma série de condições econômicas, sociais e culturais – como faz o próprio Habermas no presente livro, na seção 3 do ensaio inicial – que precisam ser atendidas para que a esfera pública desempenhe suas funções críticas na política deliberativa em democracias capitalistas suscetíveis à crise.
Estes são, sem dúvida, critérios importantes que apontam para situações problemáticas e déficits de uma sociedade democrática, mas não permitem uma abordagem realista para apreender as constelações favoráveis e os obstáculos que impedem a efetivação de potenciais de racionalização já inscritos nas instituições e vigentes na sociedade. “É por isso que […] a política deliberativa não é um ideal elevado a partir do qual teríamos de medir a realidade desprezível, mas sim, nas sociedades pluralistas, um pré-requisito para a existência de qualquer democracia digna deste nome.” (p. 36)
A teoria democrática precisa operar de maneira reconstrutiva, partindo do teor racional das normas e práticas que adquirem validade positiva nos Estados constitucionais democráticos e cujos pressupostos normativos idealizantes estão parcialmente inscritos na práxis social e na consciência dos cidadãos e cidadãs. Nesse sentido, “uma teoria da democracia, portanto, não precisa se submeter à tarefa de formular os princípios de uma ordem política justa por si só, ou seja, construí-los e justificá-los para torná-los pedagogicamente presentes aos cidadãos; em outras palavras, não precisa se entender como teoria projetada normativamente. Em vez disso, sua tarefa consiste muito mais em reconstruir racionalmente tais princípios a partir do direito vigente e das respectivas expectativas intuitivas e das concepções de legitimidade dos cidadãos” (p. 35).
Um dos eixos centrais da análise da Nova mudança estrutural da esfera pública, em que Jürgen Habermas se debruça mais longamente sobre a internet e as mídias sociais para explicar as mudanças específicas na estrutura da comunicação pública e elabora algumas hipóteses sobre seus impactos na função política da esfera pública, consiste justamente em ver as relações entre a nova configuração da vida democrática, promovida pelas mudanças no padrão de comunicação, e a percepção que os cidadãos e cidadãs têm da esfera pública política.
É inegável que a entrada das tecnologias de informação e de comunicação produziram uma “mudança estrutural” de grande escala. Mas, afinal, quais são as consequências do progresso tecnológico da comunicação digitalizada sobre o processo político?
Nas últimas décadas, a resposta a essa pergunta variou entre perspectivas otimistas (que sublinharam aspectos emancipatórios e potencialidades democráticas de sociedades digitalizadas, como difusão da informação, empoderamento dos usuários e ganhos de autonomia, descentralização e horizontalidade em formas de auto-organização política e de mobilização dos cidadãos) e pessimistas (que ressaltaram traços como fragmentação e isolamento, mercantilização, manipulação populista e difusão de fake news, controle algorítmico etc., os quais culminam em uma tendência privatista de despolitização).
Jürgen Habermas reconhece, por um lado, que a internet poderia potencializar os meios para a realização da promessa de inclusão de todos os concernidos nos processos deliberativos de formação pública da opinião. Contudo, de acordo com o diagnóstico mais amplo apresentado no livro, a nova mudança estrutural da esfera pública levada a cabo pelo progresso tecnológico da comunicação digitalizada não tem contribuído com mais vigor para o incremento da qualidade discursiva das deliberações. Muito pelo contrário. “Essa grande promessa emancipatória é hoje abafada, ao menos parcialmente, pelos ruídos selvagens em câmeras de eco fragmentadas e que giram em torno de si mesmas” (p. 61).
O livro procura contribuir com uma reflexão crítica sobre as potencialidades democráticas da internet e das mídias sociais ao lançar luz sobre um processo ambivalente. Se a comunicação digitalizada superou restrições das mídias de massa tradicionais, sempre tuteladas por poderosos conglomerados do mercado da comunicação, bem como transpôs fronteiras nacionais, esse caráter mais inclusivo também foi acompanhado por uma fragmentação radical de interações comunicativas, tornando mais difícil que a formação da opinião, agora efetuada por grupos autorreferidos e organizados em formato de plataforma, pudesse contribuir com a totalidade do processo democrático.
O “perigo da fragmentação da esfera pública, associada ao mesmo tempo a uma esfera pública sem limites”, acaba por formar “circuitos de comunicação que se isolam dogmaticamente uns dos outros” (p. 62). Ou seja, a nova mudança estrutural da esfera pública apresenta tendências imanentes e simultâneas tanto de dissolução de suas fronteiras quanto de fragmentação da formação política da opinião e da vontade.
Embora Jürgen Habermas não negue categoricamente o potencial deliberativo das novas tecnologias, ele se preocupa com o fato de que, ao serem amplamente usadas por uma parcela significativa da população, e também pela pressão que exercem sobre a mídia tradicional, elas têm impacto profundo sobre a percepção da esfera pública e põem em risco um dos pressupostos importantes para o processo deliberativo de uma formação discursiva da opinião pública e tomada de decisão.
A mídia tradicional desempenha um importante papel como “instância de mediação que, na diversidade de perspectivas de situações de vida social e formas culturais de vida, extrai um núcleo de interpretação intersubjetivamente compartilhado entre as visões de mundo concorrentes e assegura que seja aceito racionalmente de modo geral” (p. 69). É claro, não se trata de vê-la como fiador último da objetividade do mundo nem de desconsiderar a presença do poder econômico, suas estratégias seletivas de manipulação, exclusão, mas de reconhecer que a mídia tradicional, “com seu fluxo de informações e interpretações renovadas diariamente, confirma, corrige e complementa a imagem cotidiana vaga de um mundo assumido como objetivo, que mais ou menos todos os contemporâneos presumem que também seja aceito por todos os demais como o mundo ‘normal’ ou válido” (p. 70).
Entre outros riscos, é esse pressuposto de um mundo objetivo comum e, consequente mente, de uma agenda política comum, que é posto em xeque pelas novas tecnologias de comunicação, as quais atualmente fragmentam e dissolvem as esferas públicas: as plataformas digitais funcionam como “câmaras de eco” ou bolhas sociais para “seguidores” de mentalidade semelhante, que se isolam daqueles com opiniões dissonantes.
A novidade dessas tendências resulta do fato de que o progresso tecnológico da comunicação digitalizada foi especificamente construído por um amplo processo de “plataformização da esfera pública”. E isso permitiu que o público consumidor da mídia de massa tradicional assumisse agora o papel de autor dos meios comunicativos com grande potencial difusivo.
Para Jürgen Habermas, as mídias sociais mudam radicalmente o padrão de comunicação porque “capacitam, em princípio, todos os potenciais usuários a serem autores independentes e com igualdade de direitos. A ‘nova’ mídia difere da mídia tradicional na medida em que as empresas digitais usam essa tecnologia para oferecer aos potenciais usuários possibilidades ilimitadas de rede digital como se fossem quadros em branco para apresentarem seu próprio conteúdo comunicativo” (p. 59). No entanto, a despeito de, em princípio, capacitar a autonomia dos usuários de mídia, as novas tecnologias foram sequestradas por grandes empresas quase monopolistas que as projetam e gerenciam principalmente para coletar dados sobre os usuários como base para novas formas de acumulação capitalista.
As mídias sociais corporativas contemporâneas convidam à proliferação de “comunidades” online fortemente competitivas, às vezes antagônicas, que dependem de padrões epistêmicos contraditórios e provavelmente incongruentes. “Esta nova mídia real é formada por empresas que obedecem aos imperativos de valorização do capital e estão entre as corporações ‘mais valiosas’ em todo mundo em termos de seu valor de mercado” (p. 68).
Isso significa que, hoje em dia, as “tendências de despolitização” produzidas pelo alinhamento de política e entretenimento se tornaram muito mais intensas com oferta da mídia social. A plataformização de uma esfera pública que é perpassada por relações de poder e por imperativos de valorização do capital tanto empodera os usuários a participar, de maneira inclusiva e fragmentária, da comunicação digitalizada, quanto propicia as condições para que essa participação se converta em “autoafirmação narcisista e encenação das singularidades” dos próprios concernidos.
Portanto, as mídias sociais modificaram a percepção sobre a esfera pública em parcelas consideráveis da população, alterando o sentido inclusivo que a definia bem como a exigência de universalização de interesses que pudesse abranger todos os cidadãos. Com essa nova mudança estrutural, vemos antes a tendência de uma esfera pública que vira as costas para a percepção tradicional da própria política. Mas, segundo Jürgen Habermas, isso não ocorre em termos críticos e nem, em sua visão, conduz de modo mais claro a um aprofundamento democrático.
Esse processo tem levado à formação de uma “esfera semipública” que se apoia sobre a função representativa de uma “sociedade de singularidades” altamente fragmentada, cuja lealdade encontra eco apenas entre seus próprios destinatários: “Na perspectiva limitada desse tipo de esfera semipública [Halböffentlichkeit], a esfera pública política dos Estados constitucionais democráticos não pode mais ser percebida como um espaço inclusivo para um possível esclarecimento discursivo acerca de pretensões de validade da verdade e da consideração universal de interesses que competem entre si; é precisamente esta esfera pública que surge como inclusiva que, então, é rebaixada para esferas semipúblicas que competem em pé de igualdade” (p. 77).
Dentro da lógica dessas esferas semipúblicas, temas e contribuições não são de antemão passíveis de crítica discursiva. Sobretudo porque a finalidade da comunicação digitalizada em seu interior não é, fundamentalmente, a capacitação de uma deliberação crítica e reflexiva. Embora Jürgen Habermas não exclua que as mídias sociais sejam ocupadas por participantes preocupados em qualificar democraticamente a formação pública da opinião, o formato tecnológico da comunicação digitalizada levanta barreiras para potencialidades democráticas das mídias.
Trata-se menos de deliberar em prol da verdade de enunciados objetivos ou de critérios de correção normativa, e sim de reforçar opiniões ideologicamente convincentes entre os membros de seu próprio público fragmentado – mesmo que isso se erija sobre a difusão de fake news. A regra de inclusividade não leva à universalização da formação da opinião em processos deliberativos voltados a questões que atingem em comum todos os cidadãos, mas sim ao reconhecimento e à aceitação por destinatários que formam esse próprio público. Por isso, não importa, para tais usuários, critérios objetivos acerca da verdade de enunciados ou da correção normativa de normas comuns, já que “fake news não podem mais ser identificadas como tais da perspectiva dos participantes” (p. 78).
Logo, uma comunicação digitalizada voltada a ecoar entre destinatários de esferas semipúblicas tende à deformação generalizada da percepção da esfera pública política. E se, por um lado, isso potencializa o risco de tendências privatistas de despolitização, por outro, quando se procura compreender o diagnóstico do tempo presente, a formação de esferas semipúblicas possui uma força política manifesta. As mídias sociais jogam papel decisivo nas mobilizações e disputas de nossa sociedade cada vez mais digitalizada, em especial quando nos voltamos à emergência do populismo de direita.
Jürgen Habermas se preocupa em adicionar às suas reflexões sobre progresso tecnológico da comunicação digital, especialmente no que diz respeito à “plataformização da esfera pública”, tendências interrelacionadas que são fundamentais para a compreensão da emergência de novos movimentos populistas de direita. E aqui ele reatualiza sua posição em relação a uma ideia central: a difícil compatibilidade entre capitalismo e democracia. Hoje, toda tentativa de manter compromissos entre capitalismo e democracia, tal como aquele estabelecido no período do pós-guerra em países desenvolvidos, tem sido fortemente aba lada pelo neoliberalismo e pela globalização econômica.
Estes compõem condições estruturais de formação de uma cultura política antissistema, uma vez que um número crescente de cidadãos tem sido socialmente excluído na mesma medida em que governos falham em responder de forma eficaz às preferências e interesses de seus eleitores, aprofundando uma crise de legitimação democrática com amplas consequências para uma esfera pública política. E isso permite precisamente a abertura para o surgimento de um “populismo dos excluídos”, que in flama cidadãos radicalizados e turbina com as mídias sociais os seus ataques ao sistema político.
Ora, as condições provocadas pela atual crise do neoliberalismo, uma vez que se sucedem fracassos, por assim dizer, na tentativa de domesticar o capitalismo, geram não apenas desigualdade social, mas também uma grave crise das democracias. Especialmente quando pensamos nas tendências privatistas de despolitização. E nesse ponto Jürgen Habermas novamente reitera o seu modo de fundamentar uma teoria crítica da democracia sem precisar lançar mão de meras distinções entre ideais normativos e realidades empíricas.
No contexto de Facticidade e validade, a defesa de uma democracia radical estava atrelada a um diagnóstico a respeito das lutas sociais que aspiravam ao aprofundamento democrático e cujos motivos práticos poderiam ser intrinsecamente reconstruídos a partir do teor normativo da gramática jurídico-política do núcleo deliberativo de uma circulação do poder em esferas públicas (informais e formais) de um processo político constituído pelo Estado de direito.
Trinta anos depois, Jürgen Habermas demonstra mais preocupação com o enraizamento dessas pressuposições normativas nos processos políticos efetivos. Pois “hoje, os sinais de regressão política são visíveis a olho nu” (p. 56). É possível que, na esteira de uma nova mudança estrutural da esfera pública, os cidadãos ainda sejam capazes de se identificar com o jogo democrático? Para o autor, crises climáticas e migratórias, uma pandemia global e uma guerra capaz de envolver as maiores potências mundiais, imperativos de mercados globalmente desregulamentados, ou seja, mudanças na situação econômica e política mundial, somados ao temor de declínio social descontrolado diante das crescentes desigualdades de renda e riqueza, precarização das relações de trabalho e das condições de vida, assentaram as bases para tendências de despolitização com consequências dramáticas para a democracia.
O problema mais grave, segundo Jürgen Habermas, é que aqueles que perdem a fé na democracia tornam-se alvos fáceis para os populistas de direita que exploram suas frustrações e o potencial antidemocrático resultante. A regressão política visível a olho nu deixa-se mostrar em eventos recentes, como é o caso da invasão do Capitólio em 6 de janeiro de 2021, quando Donald Trump encontrou eco na ira de cidadãos radicalizados – ou na tentativa de golpe cívico-militar ocorrida no Brasil em 8 de janeiro de 2023, quando apoiadores inflamados de Jair Bolsonaro invadiram a Praça dos Três Poderes alegando não reconhecer o resultado legítimo das eleições democráticas que levaram Lula à presidência nesse mesmo ano.
O livro nos convida então a uma reflexão bastante atual sobre os desafios de uma política deliberativa diante de novas tecnologias da informação e de mídias sociais que, no presente contexto, permitem que se faça o jogo de populistas antidemocráticos e autoritários. Pois a nova estrutura midiática que se configurou por intermédio da “plataformização da esfera pública” acabou atingindo imperativos democráticos constitucionais e deturpando o caráter racionalmente inclusivo e deliberativo da formação pública comum da opinião e da vontade.
A “democracia da pós-verdade”, que se normalizou de forma assustadora durante o governo Trump, efetivamente vende desinformação e teorias da conspiração exageradas (como no caso das manifestações anticorona e antivacina), dissemina fake news e, ao mesmo tempo, luta contra a “imprensa mentirosa”. Como ele observa com precisão, a grande mídia é cada vez mais forçada pelas pressões do mercado a imitar as mídias sociais à primeira vista inclusivas e não hierárquicas, mas fundamentalmente lucrativas e com contornos corporativos. Essa tendência, que tem sido aproveitada de maneira perspicaz por governos antidemocráticos, acaba minando, em longo prazo, a receptividade do público a notícias e discussões políticas de interesse comum.
Não se trata absolutamente de pressupor que, pelas mídias sociais, os cidadãos do Estado se tornam marionetes passivas de estratégias populistas. Habermas evita qualquer tipo de determinismo tecnológico ou de ausência de agência política (colocando-se contra a tese de uma “incapacitação do usuário de mídia”). No entanto, as ambivalências da práxis política dos participantes da formação da opinião e da vontade em uma esfera pública atravessada pelo poder econômico, político e cultural, e que se reproduz no formato de bolhas sociais ou “ilhas de comunicação”, precisam ser profundamente esclarecidas: trata-se de compreender o processo dinâmico no qual os cidadãos oscilam entre os papéis de autores de um circuito de comunicação tanto irrestrito quanto extremamente fragmentado, de um lado, e de consumidores que se colocam, em grande medida, à disposição das estratégias do mercado midiático, de outro.
Uma teoria crítica preocupada em diagnosticar a crise da democracia precisa apreender adequadamente a complexa agência da práxis política dos cidadãos na qualidade de usuários de mídias sociais. Habermas pretende, neste livro, contribuir então com um debate muito intenso e rico, sem de modo algum querer esgotá-lo, mas sem deixar de orientar o seu olhar à questão de saber, afinal, de que maneira a promessa emancipatória de uma democracia radical poderia ser mantida junto à plataformização da esfera pública em sociedades cada vez mais digitalizadas.
Trata-se de levantar outra vez hipóteses de pesquisa que ajudem a responder à questão que tem orientado as reflexões de Jürgen Habermas sobre as relações entre moral, política e direito: como é possível atualizar nossa capacidade de agir politicamente, isto é, a condução consciente de nossas vidas em práticas de autodeterminação política e autogoverno por meio do uso público da razão, no contexto de sociedades democráticas plurais e complexas suscetíveis a crises?
*Denilson Luís Werle é professor no Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
*Rúrion Melo é professor do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo (USP).
Referência
Jürgen Habermas. Uma nova mudança estrutural da esfera pública e a política deliberativa. Tradução: Denilson Luís Werle. São Paulo, Unesp, 2023, 126 págs. [https://amzn.to/3YUJ1UP]
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