Vai ter golpe?

image_pdf

Por Julian Rodrigues*

O aumento da participação de militares no núcleo do governo somado à escalada de declarações extremistas e à ação descontrolada das polícias nos estados seriam o prenúncio de uma ditadura aberta?

Já houve um golpe no Brasil, que começou em 2016. Esse sempre deve ser o pressuposto de qualquer análise.

Estamos diante de um “necrogoverno”. Um governo de destruição do país, que ataca simultaneamente os direitos sociais, o meio-ambiente, as liberdades democráticas e a soberania nacional. A operação Lava-Jato, a destituição de Dilma, a prisão de Lula e a eleição de Bolsonaro inauguraram um Estado de exceção – houve drástica ruptura com o pacto liberal democrático de 1988.

Apesar de muitas contradições e dificuldades, o bolsonarismo logrou consolidar uma aliança que aglutina os interesses do imperialismo, do grande capital (sobretudo do capital  financeiro), da mídia, do agronegócio,  dos setores reacionários das classes médias, do Exército, do sistema de justiça, das polícias militares, das milícias e dos fundamentalistas religiosos.

As elites – auto intituladas “liberais” – precisam do capitão para avançar no desmonte do país e dos direitos dos trabalhadores. E Bolsonaro precisa dos “liberais” para sustentar seu governo e impulsionar a luta contra o “marxismo cultural” e toda a sua agenda obscurantista.

A retirada dos direitos dos trabalhadores, o desmonte das políticas sociais, a privatização/desnacionalização são ações indissociáveis do ataque às artes, à cultura, às ciências, do estimulo do ódio contra as mulheres, à população negra, às LGBTI e também da restrição às liberdades democráticas em geral. Não há “cortinas de fumaça”. Existe uma plataforma unificada – é ela que viabiliza e põe de pé o atual governo.

Claro que há contradições. A mídia corporativa, os bancos, etc prefeririam ter um governo do tipo FHC, Aécio ou Huck, sem verborragias e tosquices medievais. Porém, essa turma sabe que é a tropa de choque bolsonarista que garante e assegura a implantação das reformas anti-povo. Então, tapam o nariz e seguem em frente. Vez ou outra esboçam reações, mais ou menos hipócritas, em relação a algum destempero gritante (como agora no ataque misógino à jornalista da Folha de S. Paulo Patrícia Campos Mello).

Sem ilusões, todavia. O governo é fortíssimo, conta com ampla base de apoio; opera com estratégia, com tecnologia, método e alinhamento orgânico à extrema-direita norte-americana. Nada mais errado do que acreditar que Bolsonaro e família são “burros” ou avaliar que o impeachment é apenas questão de meses.

Sim, estamos diante de um governo que tem um núcleo neofascista. Contudo, o regime político não é fascista nem é uma ditadura aberta. Isso não significa que o clã presidencial, os olavistas e o núcleo duro do bolsonarismo não sonhem com um regime autoritário. Bolsonaro já insinuou que pode ficar mais de oito anos na presidência. Mas nem tudo que se quer, se pode…

Privatizações, reforma da previdência, nova reforma trabalhista, reforma sindical e agora reforma administrativa. O programa ultraliberal de Guedes – e de Rodrigo Maia, o queridinho da galera da tal frente ampla – vai muito bem, obrigado.

Até o momentonão foi preciso restringir ainda mais as liberdades democráticas para impor a agenda das grandes corporações internacionais, do rentismo, da grande mídia – da burguesia brasileira como um todo. Não há, portanto, razão objetiva para que as classes dominantes nacionais e os EUA, apostem, nesse momento, em uma ditadura militar ou assemelhada, que tem custos muito altos. O fechamento total do regime ainda não é necessário.

É muito mais funcional e palatável para a burguesia operar em um ambiente que preserve um mínimo de liberdades democráticas. Os sinais deles, aliás, são outros: estão mandando recados para Bolsonaro de que há limites nas coisas. E, como disse um amigo: “não estão minimamente interessados em dar todo poder para um Napoleão de hospício”.

Isso quer dizer que está descartado um golpe? Não. Se precisar, eles fazem. Retomam a ditadura oldschool. Vide o golpe na Bolívia – estilo tradicional, anos 1970, com pitadas modernas de guerra híbrida comunicacional e mobilização do fundamentalismo religioso. Mas, não é esse o cenário principal no Brasil hoje.

Por último: as Forças Armadas. Um tema complexo, que a esquerda domina pouco, é verdade. Temos dificuldade para analisar com profundidade o seu papel, suas contradições internas, suas pretensões, etc.

A recente “militarização” do núcleo palaciano do governo não deve ser entendida como indício de golpe militar iminente. Por várias razões. A principal delas – na minha opinião – é que não há nem acúmulo, nem unidade estratégica-política-programática no Exército ( muito menos combinação com os EUA) que coloquem, hoje, os militares como protagonistas de um eventual golpe.

Se houver fechamento, não será prioritariamente pela mão deles. E não será do jeito antigo. Reparem em Moro, nas milícias, nas PMs, no Ministério Público e no Judiciário. São outros os atores principais do núcleo neofascista.

Isso não quer dizer que a cúpula e a maioria das Forças Armadas não apoiem totalmente o governo ou mesmo que sejam democráticas. Mas, de forma aparentemente paradoxal, elas exercem um papel racionalizador e moderador na bagunça instalada. Não nos deixemos enganar pelas bravatas do tal general Heleno, que sempre foi ligado ao esgoto do Exército e exerce bem menos influência real do que tenta aparentar.

Resumindo: muita calma nessa hora. Mas sem calma demais. Não vai ter golpe amanhã. Muito menos impeachment. A situação é grave, as dificuldades de mobilização são imensas. O bolsonarismo não é uma chuva de verão que passará rápido. O estrago promovido no tecido social e institucional do país é profundo e nos impactará por muitos anos.

Por outro lado, há desgaste crescente – mesmo que limitado – do governo. A economia não vai entregar o que prometem. O mal estar pode crescer. Começam a pipocar lutas e greves, como a heroica paralisação dos petroleiros. Teremos logo, logo eleições municipais, quando se abrirá uma janela maior para contestação de massas à Bolsonaro.

Nosso desafio, de fato, talvez seja acertar mais na análise conjuntural e estrutural, pressuposto para operar a reorganização, fortalecimento e construção de convergências práticas no campo democrático-popular. Ah, e claro: mudar tudo na nossa comunicação – mas isso é tema para outros artigos.

*Julian Rodrigues é professor, jornalista, ativista de DH e LGBTI; militante do PT-SP

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
O segundo choque global da China
06 Dec 2025 Por RENILDO SOUZA: Quando a fábrica do mundo também se torna seu laboratório mais avançado, uma nova hierarquia global começa a se desenhar, deixando nações inteiras diante de um futuro colonial repaginado
2
Simulacros de universidade
09 Dec 2025 Por ALIPIO DESOUSA FILHO: A falsa dicotomia que assola o ensino superior: de um lado, a transformação em empresa; de outro, a descolonização que vira culto à ignorância seletiva
3
A guerra da Ucrânia em seu epílogo
11 Dec 2025 Por RICARDO CAVALCANTI-SCHIEL: A arrogância ocidental, que acreditou poder derrotar a Rússia, esbarra agora na realidade geopolítica: a OTAN assiste ao colapso cumulativo da frente ucraniana
4
Uma nova revista marxista
11 Dec 2025 Por MICHAE LÖWY: A “Inprecor” chega ao Brasil como herdeira da Quarta Internacional de Trotsky, trazendo uma voz marxista internacionalista em meio a um cenário de revistas acadêmicas
5
Raymond Williams & educação
10 Dec 2025 Por DÉBORA MAZZA: Comentário sobre o livro recém-lançado de Alexandro Henrique Paixão
6
A riqueza como tempo do bem viver
15 Dec 2025 Por MARCIO POCHMANN: Da acumulação material de Aristóteles e Marx às capacidades humanas de Sen, a riqueza culmina em um novo paradigma: o tempo livre e qualificado para o bem viver, desafio que redireciona o desenvolvimento e a missão do IBGE no século XXI
7
A crise do combate ao trabalho análogo à escravidão
13 Dec 2025 Por CARLOS BAUER: A criação de uma terceira instância política para reverter autuações consolidadas, como nos casos Apaeb, JBS e Santa Colomba, esvazia a "Lista Suja", intimida auditores e abre um perigoso canal de impunidade, ameaçando décadas de avanços em direitos humanos
8
Norbert Elias comentado por Sergio Miceli
14 Dec 2025 Por SÉRGIO MICELI: Republicamos duas resenhas, em homenagem ao sociólogo falecido na última sexta-feira
9
Asad Haider
08 Dec 2025 Por ALEXANDRE LINARES: A militância de Asad Haider estava no gesto que entrelaça a dor do corpo racializado com a análise implacável das estruturas
10
A armadilha da austeridade permanente
10 Dec 2025 Por PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS: Enquanto o Brasil se debate nos limites do arcabouço fiscal, a rivalidade sino-americana abre uma janela histórica para a reindustrialização – que não poderemos atravessar sem reformar as amarras da austeridade
11
Ken Loach: o cinema como espelho da devastação neoliberal
12 Dec 2025 Por RICARDO ANTUNES: Se em "Eu, Daniel Blake" a máquina burocrática mata, em "Você Não Estava Aqui" é o algoritmo que destrói a família: eis o retrato implacável do capitalismo contemporâneo
12
A anomalia brasileira
10 Dec 2025 Por VALERIO ARCARY: Entre o samba e a superexploração, a nação mais injusta do mundo segue buscando uma resposta para o seu abismo social — e a chave pode estar nas lutas históricas de sua imensa classe trabalhadora
13
Impactos sociais da pílula anticoncepcional
08 Dec 2025 Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA: A pílula anticoncepcional não foi apenas um medicamento, mas a chave que redefiniu a demografia, a economia e o próprio lugar da mulher na sociedade brasileira
14
Benjamim
13 Dec 2025 Por HOMERO VIZEU ARAÚJO: Comentário sobre o livro de Chico Buarque publicado em 1995
15
Violência de gênero: além do binarismo e das narrativas gastas
14 Dec 2025 Por PAULO GHIRALDELLI: Feminicídio e LGBTfobia não se explicam apenas por “machismo” ou “misoginia”: é preciso compreender como a ideia de normalidade e a metafísica médica alimentam a agressão
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES